MINHAS CRÔNICAS

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

VOLTA AO PASSADO

Se você quiser voltar ao passado, faça-o com cuidado.
A marcha do tempo é irrecorrível; aquela imagem guardada na sua retina pode ter sofrido deformação!...
“Entre o sonho e a realidade”
H. Moreira.
Existe uma lenda, cultivada pelos habitantes de uma pequena aldeia de nome Saanemoser, situada nos Alpes suíços, nas imediações da cidade de Berna, cujos dizeres são o seguinte:
“Se alguém cospe no rio, quem sabe, talvez a saliva desça através de vários outros cursos d’água até o rio Reno e daí até o mar do Norte”.
Bem em frente da nossa casa, a outrora tão conhecida pensão Santo Antônio, passava um pequeno ribeirão onde, junto com meu irmão Henio, eu pescava, nadava, lavava o rosto de manhã cedo e minha mãe lavava nossas roupas.
Nosso cuspe para onde poderia ir?
Analisando o inconsciente dos suíços pode-se subentender que o desejo manifestado na lenda encobre uma incessante procura dos antepassados.
No meu caso, a viagem seria bem menor; provavelmente a saliva iria até o rio Muzambo e ancoraria nas suas barrancas, muito provavelmente em uma das suas lagoas, nas imediações do povoado de Harmonia, local onde nasceu meu pai e onde viviam meus avós.
Creio ser preciso, no meu caso, rediscutir a afirmativa de Jung de que os avós, por especial atavismo, podem exercer mais ascendência sobre os netos do que o pai e a mãe”; tive pouco ou quase nenhum relacionamento com minha avó Dita (meu avô eu não conheci).
Apesar da proximidade com Gaspar Lopes, cerca de 10 quilômetros, guardo poucas recordações de Harmonia; das minhas lembranças sobressai, altaneiramente, a ponte de ferro, hoje sob as águas da represa de Furnas e que foi construída para dar passagem à estrada de ferro Rede Mineira de Viação na sua viagem rumo às estações de Areado, Movimento, Engenheiro Trompowsky e Monte Belo.
Uma das poucas imagens que tenho gravada da minha avó Benedita ou “Vó Dita” pode representar algum simbolismo: vejo-a sentada em um tamborete na frente da sua casa de adobe, fumando um cachimbo de barro; sua pele era morena escura, rosto quase quadrado, salientando o músculo zigomático, voz baixa, quase que evitando sair entre os lábios grossos e sem delicadeza.
A expressão do rosto, dominado pela tristeza dos seus olhos, não transmitia vivacidade, cabelos escorridos e com a textura grossa, denunciando a possível origem cafuza.
Não sei se é verdade, meu pai dizia que ela nascera no estado do Rio de Janeiro, era, portanto, segundo ele, “carioca”.
Até quando consegui descobrir, parece que os pais dela vieram de Portugal, região de “Trás os Montes”; como ela foi aportar, sozinha, em Harmonia, só Deus sabe.
De todos os meus tios, irmãos do meu pai, o mais ligado a nós era o tio Zé Francisco, possuidor de um pequeno sitio nas imediações da estação de Harmonia, local onde existia, segundo me disse um dia, o Hildebrando, telegrafista da estação, a maior reta de toda a Rede Mineira de Viação.
Tio Zé casou-se várias vezes, sempre devido ao falecimento das seguidas esposas.
Quase perto do final da sua existência, visitei-o em sua casa em Alfenas; continuava a mesma figura alegre e comunicativa, apesar de contar, naquela época, com mais de 95 anos de idade.
“Como estão seus filhos, tio Zé?
“Morreram muitos; fulano, por exemplo, morreu de velho!”
Meu pai, Antonio Moreira, mais conhecido como Nico guarda-chaves, possuía muitos traços fisionômicos do tio Zé Francisco: rosto de pele encardida, não só pela exagerada exposição ao sol, como principalmente pelo DNA da minha avó Benedita; cabelos um pouco encaracolados, penteados para trás, deixando antever uma pequena “entrada” para uma possível calvície que, de resto, nunca aconteceu.
Seus olhos eram vivos e acompanhavam as expressões da face quando conversava; rosto liso, sem barba ou bigode. Fechava, paradoxalmente, um pouco os olhos para tentar enxergar algum objeto mais diminuto.
Contava-nos, com ar de galhofa, que certa vez estava sentado na plataforma da estação de Gaspar Lopes “lendo” um jornal, para impressionar um amigo; por não saber ler, não observou que o mesmo estava de “cabeça para baixo”. Ao ser questionado pelo citado amigo para aquela situação, respondeu, sem perder a pose:
“Já li, agora estou dislendo!”
Outro dia, revendo uma antiga fotografia da minha primeira comunhão, feita na frente da igreja de Gaspar Lopes, reconheci alguns amigos de infância (Alirio, José Victor, João Batista, dentre outros); senti muita saudade. Lembrei-me, como se fora uma associação de idéias, do leiloeiro das festas da igreja, gritando até a rouquidão:
- Quanto me dão por este cartucho?
Vamos ajudar a igreja do padre Albertino.
Quem dá mais?
Vamos agora leiloar este molho de canas de açúcar para a meninada. Quanto nos oferece o Mário Moreira, o rei de Gaspar Lopes?
Não me peçam para declinar o nome deste homem, que apesar do seu pouco aculturamento, conseguia contagiar a todos, sabia respeitar a maior cultura da minha mãe, deixando-a orientar-nos no caminho da educação.
Sinto orgulho de ser filho do Nico guarda-chaves de Gaspar Lopes!

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