MINHAS CRÔNICAS

domingo, 16 de fevereiro de 2014

FREUD E CERVANTES, ONDE SE ENCONTRARAM?



                   Sabe-se que Freud foi, desde a infância, um leitor dos clássicos da literatura; quando digo infância não estou exagerando pois, aos nove anos de idade, ele ingressou no “Gymnasium” um dos mais famosos colégios de Viena, cujo currículo tinha uma característica que o diferenciava dos demais congêneres: - respirava-se, nas suas salas de aulas, a atmosfera humanística.
                   Além de serem ministradas as matérias ensinadas nas outras escolas, havia no currículo seis anos para o estudo do grego, oito anos para o latim, além de estudos específicos sobre a história antiga e a literatura, tanta a clássica como a contemporânea. Freud foi o primeiro aluno da sua classe durante todo o curso!
                   Este seu interesse, precoce, pela literatura, facilitou-lhe, de alguma maneira, sua incursão no mundo da mente humana; selecionei um episódio, dos muitos a que tive acesso, para confirmar esta minha assertiva: Sua paixão pela obra de Cervantes, especialmente a clássica “Dom Quixote de La Mancha”, a qual ele leu várias vezes, tendo, inclusive, aprendido o idioma  espanhol para entender melhor o “espírito” da obra.
                   O episódio a que desejo me referir encontrei-o na carta que Freud enviou a sua noiva Martha (fevereiro de 1884), onde ele tenta explicar-lhe seu relacionamento com um jovem de nome Silberstein, seu grande amigo de juventude; lá pelas tantas, ele diz a Martha que os dois se apelidaram, mutuamente, de Berganza e Cipión, nomes tirados, segundo ele,  da obra de Cervantes, quando ambos estudavam espanhol.
         A escritora Marialzira Perestrello, no seu livro “A formação cultural de Freud, 1996”, despertou-me a curiosidade a respeito do assunto ao afirmar que estes nomes foram dados por Cervantes a dois cães que conversavam entre si, no conto “Coloquio de los Perros”.
                   Encontrei, como se encontra um tesouro, o livro “Cervantes - Novelas Ejemplares, Argentina, 1962”, em um sebo sediado na internet; dos seis contos que o compõem dois fazem parte do episódio a que me referi acima: El Casamiento Engañoso e El Coloquio de los Perros; conto o resumo de ambos e espero que meus leitores se surpreendam com algumas conclusões a que chegaram alguns dos biógrafos de Freud.
                   No primeiro conto (Casamiento Engañoso) o narrador (Peralta) conta ao interlocutor (Sr. Alferes), uma história inacreditável: quando estava internado em um hospital em Valadolid, Espanha, dois cachorros (Berganza e Cipion) que estavam deitados debaixo da sua cama, conversavam entre si durante toda a noite.
                   Claro que o Sr. Alferes  não acreditou na história, porém Peralta diz ter provas do que estava dizendo: ”tomei nota de todo o diálogo”  e, ao dizer isto “saco um cartapacio y lo puso en las manos del licenciado – pegou um maço de papel e colocou nas mãos do licenciado” e este leu o que corresponde ao segundo conto (El colóquio de los perros).
                   Este “diálogo” dos cães vem sendo discutido por muitos que se interessam pela obra de Freud e principalmente procuram entender o “leit motiv” para ele enveredar para a nova ciência que ele estava criando – a psicanálise.
                   Ao se ler este conto de Cervantes, que viveu de 1547 a 1616, somos obrigados a intuir que Freud, ao iniciar a sua técnica de “ouvir o paciente no divã do seu consultório”, deve ter se lembrado deste  colóquio descrito de maneira magistral por Cervantes; é interessante observar que um dos cães da história (Berganza) conta sua vida para o outro (Cipion) e este ouve com paciência, com poucas manifestações ou interrupções, como se fora um analista.
                   Quase que no inicio do colóquio Cipion diz a Berganza : “ Fale até que amanheça que eu te escutarei de muita boa vontade, sem te interromper a não ser que sinta necessidade de fazê-lo”, ao que Berganza respondeu: “Pois se posso falar com esta segurança, escuta-me e se você se cansar de ouvir o que estou dizendo, ou me repreenda ou  mande que eu me cale”.
                   Em um determinado trecho da fala de Berganza este começa a divagar sobre vários assuntos e é então chamado à atenção pelo Cipion “Basta Berganza, volte para a senda da história e caminhe por ai”; de vez em quando a narrativa de Berganza ficava monótona e repetitiva, então Cipion chamava-lhe a atenção “Basta, vá em frente, Berganza, porque já entendi”.
                   Um analista ficaria feliz de ouvir este trecho da fala de Berganza:  “Sempre quis falar, para dizer as coisas  que estavam depositadas na minha memória e por estarem ali há muito tempo, acabava as esquecendo. Agora que estou com este don divino de poder falar, vou aproveitar o mais que puder, falarei de tudo de que me recordo, mesmo que seja um pouco confuso”
                   Conte-me, diz Cipion  “tudo o que recordas, procure não pular trechos, na verdade, conte o que quiseres e como quiseres” ao que respondeu Berganza “ agora me vem à memória o que haveria de ter lhe dito no principio da nossa discussão, não só fico maravilhado com o que falo, como também fico espantado pelo que desejo falar”.
                  A pessoa pode nascer gênio, porém, a vida, os estudos e a cultura, moldam sua trajetória, acho que posso, modestamente, concordar com o que disse a Profa. Marialzira Perestrello,  autora do livro que citei acima: Freud, com sua intuição, seguiu mais os escritores do que a medicina organicista. Cervantes foi-lhe mais útil que a anatomia cerebral.



                  



A MODERNIDADE DA CIDADE DE GOIÁS DO INCIO DO SÉCULO 20


       Li, recentemente, os originais do livro que a escritora Elizabeth Fleury, Presidente da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, irá lançar,  muito em breve, com o título, ainda provisório, “Rosarita Fleury, minha mãe”.
            Claro que não tenho permissão para divulgar detalhes do livro, porém, devo dizer que fiquei entusiasmado e,  principalmente emocionado com alguns dos seus trechos, principalmente quando é contada a vida pacata dos habitantes da cidade de Goiás no começo do século passado.
                         As narradoras (Beth e sua mãe) deixaram-me embevecido pela  descrição que fizeram de episódios culturais e políticos daquela época e que moldaram a vida de todos os goianos no presente.
                        Ao ler este fascinante livro, veio-me a lembrança um trecho de outro livro que li  há algum tempo  “A Vida Literária no Brasil 1900, Brtito Broca” e que me chamou a atenção; conta o autor que o nosso querido escritor Hugo de Carvalho Ramos, passando férias na bucólica cidade de Goiás, escreveu à sua irmã  em 24 de maio de 1911, contando-lhe as novidades e, lá pelas tantas, ele diz, textualmente “Este é o modo de viver sensato, natural na opinião de todos, de um rapaz desocupado ou de um estudante em férias: beber qualquer droga inferior que seja no Chat Noir”.
                        Fazendo uma interface com os costumes da cidade de Goiás naquela época em que foi escrita a carta de Hugo de Carvalho Ramos, conforme são desenhados pela Elizabeth e por Da. Rosarita e, diga-se de passagem, por muitos outros cronistas que ali viveram naquela época,  obrigou-me a fazer uma reflexão sobre a possível existência do citado Chat Noir,  naqueles rincões do estado de Goiás, naquela época da carta de Hugo.
                        Para que os meus leitores entendam esta minha surpresa, passo as lhes explicar a origem deste nome, para tanto me recorro a alguns livros da minha biblioteca de onde faremos um ligeiro passeio pelos meandros da história dos costumes e da cultura dos franceses.
                        Leio no livro “Paris Boêmia, Jerrold Seigel” que um cidadão de nome Goudeau , nascido em uma cidade do  interior da França no ano de 1850,  viaja para Paris com a idade de 17 anos na busca de uma carreira literária e, um ano após sua chegada, lança um empreendimento  que viria mudar a vida social e cultural dos parisienses: uma casa mista de café,  literatura e teatro de nome Hydropathes . Rapidamente surgiram outros “cafés” com estas mesmas características, sendo o mais popular e duradouro deles, o Chat Noir (gato preto), localizado em Montmartre.
                        Estes Cafés se multiplicaram durante a fase em que se esvanecia o “Fin de siécle” para dar lugar a “Belle Époque”, época de tensões  provocadas pelas especulações  ousadas de Nietzsche, da conscientização da existência do inconsciente proposta por Freud; época do surgimento dos boêmios que buscavam energias nestes Cafés e nos Cabarés, onde faziam simbiose com a burguesia.
                        No maravilhoso livro “Boêmios, Dan Franck”, o autor faz uma síntese do que ocorria no ambiente cultural dos anos do final do século 19 e inicio do 20 na cidade de Paris, para onde a  intelectualidade do mundo inteiro (pintores,escritores e cantores) acorriam em busca de notoriedade e sobretudo para curtirem a vida; circulavam pelas calçadas e pelos cafés de Montmartre e Montparnasse; não apenas passearam, amaram, brigaram, incomodaram e escandalizaram os donos do p0oder e os adeptos do lugar-comum.
                        Estes personagens usavam, as vezes, roupas extravagantes, organizavam festas inusitadas, puxavam o revólver e provocavam o burguês de mil maneiras, por um motivo essencial, o burguês não gostava deles.
                        No livro de Brito Broca, já citado acima, podemos observar  que este Café “Chat Noir”, devido a sua fama e, também, pela influência que a cultura francesa exercia sobre os nossos costumes no final do século 19 e inicio do século 20, acabou ancorando no Rio de Janeiro com a inauguração de um similar ao parisiense,  pois o que “ os intelectuais, os estetas, como os chamavam o cronista João do Rio, haviam desejado durante muito tempo, fora um cabaré, um cabaré  à moda do Chat Noir.
                        Um dia chegou a noticia: acaba de fundar-se no Rio um  Chat Noir, exatamente nos moldes parisienses, tudo quanto havia de mais rive gauche. Foi  um acontecimento: ia-se ao Chat Noir, como a um supremo prazer de arte, dizia João do Rio; Olavo Bilac que se preocupava com a ideia da morte, escrevia na Gazeta de Noticias que o Chat Noir ia desmoralizar a morte, ainda ontem , disse ele, naquela salinha cheia de desenhos trágicos, vi muito mocinho triste e muito velho anquilosado a ouvir com sorrisos, a apoteose da morte jovial, já temos no Rio um lugar onde se pode confortavelmente rir da morte.
                        Neste ponto volto ao inicio do texto,  como poderia a cidade de Goiás, no inicio do século 20, com as características sociais que conhecemos, não só pelo relato do livro que a escritora Elizabeth Fleury irá publicar muito em breve, mas, também,  pelo que conhecemos por intermédio de muitos outros autores que se preocuparam em desvendar os costumes da população daquela cidade nos primórdios da era republicana no Brasil, abrigar uma boate no estilo da Chat Noir.
                        Será que Hugo de Carvalho Ramos estaria, realmente, frequentando uma Chat Noir em Goiás ou simplesmente ele “desejava” uma boate naquele estilo, onde poderia mudar o rumo das suas férias, como aquele trecho da carta afirma:
“Este é o modo de viver sensato, natural na opinião de todos, de um rapaz desocupado ou de um estudante em férias: beber qualquer droga inferior que seja no Chat Noir”.
                        Assunto para pesquisadores:  teria existido a tal boate em Goiás daquele tempo?

O estranho diário de uma senhora inglesa do século XIX


              Não faz muito tempo li uma resenha do livro “The private diary of a victorian lady – O diário privado de uma senhora da era vitoriana” no London Review of books que aguçou minha curiosidade; adquiri o livro, gostei do que li e resumo-o para meus leitores
                        O livro conta uma verídica e inacreditável história ocorrida no século 19 na Inglaterra, cuja personagem principal é a senhora Isabela Robinson e os  principais coadjuvantes são  o engenheiro Henry Robinson e o médico Edward Lane, sendo que este último  entrou na história porque estava no lugar errado na hora errada.
                        Isabela (já era viúva, 31 anos de idade) casou-se com Henry, em 1844, na cidade de Londres e cinco anos após mudaram-se para Edimburgo (Escócia), onde conheceram Lady Drysdale, cuja filha (Mary), era casada com o médico Dr. Edward; como acontecia, com frequência, na Inglaterra da era Vitoriana, algumas pessoas ricas, que era o caso  da Lady Drysdale, costumavam fazer reuniões( chá das cinco) nas suas casas, quando se reuniam, a convite do anfitrião (ã), uma variada gama de pessoas ligadas à cultura, como escritores, intelectuais livre pensadores, artistas, atrizes para discutirem assuntos culturais.
                        Foi em uma dessas “soirées” que Isabela conheceu o Dr. Edward, quando conversaram animadamente sobre assuntos os mais variados possíveis, desde enfoques sobre a solidão em que ela vivia e discussões a respeito de poesia, literatura, especialmente sobre Lord Byron e Goethe,  música, política, viagens em balões, descrença em Deus, universo e, até sobre medicina, como ela escreveu no seu “Díario” ao voltar para a casa.
                        Por aquela época Isabela percebeu que Henry casou-se com ela apenas pela herança que ela possuía e, principalmente, passa a perceber que seus mundos são completamente distintos, enquanto ela se interessava pela literatura, ele só pensava em negócios, que, aliás, trazia-lhes enorme conforto material, pois possuíam outras casas em outros locais da Inglaterra e na Itália, com cinco empregados domésticos, verdadeiro luxo na época, tendo em vista que apenas 1,2% dos 10 milhões de habitantes da Inglaterra em 1867 ganhava mais que 300 libras por ano e apenas 50 mil pessoas, que era o casa deles, ganhavam mais de 1.000.
                        Isabela era dez anos mais velha que Dr. Edward e, segundo ela mesmo escreve no seu “Diário”, não era uma moça bonita, no entanto isto não impediu que ela se apaixonasse por ele, principalmente pela afinidade cultural que percebera; com o tempo estes seus encontros deixaram de ser estritamente culturais e passaram para o idílio definitivo, narrado por ela no “Diário” com riqueza de detalhes.

                        No ano de 1856 Isabela teve que ser internada para se tratar de uma  difteria e nos momentos de delírio febril “entregou” o que guardava no seu consciente, Henry que já estava desconfiado, vasculhou suas gavetas e encontrou o “Diário”, onde ficava provada a sua infidelidade.
Incontinente ele entrou com pedido de divórcio junto à Corte de divórcios e causas matrimoniais; era muito difícil se conseguir o divorcio naquela época, o homem deveria provar adultério da esposa, e a mulher, além  de adultério do marido, deveria provar que teria recebido duas graves ofensas (agressão física, por exemplo); Henry alegou que a esposa cometera adultério e como evidência apresentou o “Diário” de Isabela.
                        No dia 14 de junho de 1858 a Corte se reuniu para julgar o caso, com grande presença de público e da imprensa; o advogado de Henry solicita que seja aceito como evidência do adultério, contrariando a tese da defesa, o “Diário” de Isabela ; após discussões entre defesa e acusação, a Corte aceitou o “Diário” como peça do processo; o Presidente da Corte pediu que as mulheres presentes no auditório se retirassem porque haveria passagens no Diário não agradáveis para os ouvidos das senhoras.
                        O advogado de Henry passou a indicar algumas passagens (entradas) do “Diário” a serem lidas pelo serventuário – Dia 7 de outubro de 1854, quando Isabela e Edward se beijaram pela primeira vez e ( ...) 16/10,  “Fomos de carruagem para a estação e no caminho ele agarrou-me nos seus braços e tivemos indecente e carinhosa intimidade” (...).
                        Várias testemunhas foram invocadas por ambas as partes, inclusive o médico Edward que, aliás, negou, com veemência, o adultério, porém, nenhuma delas acrescentou nada que pudesse provar ou descartar os fatos registrados no “Diário”; como ultima cartada, a defesa alegou “insanidade mental da ré”, afirmando que tudo o que ela escrevera no “Diário” era invenção da sua mente doentia, carente de afeição matrimonial e intoxicada pela sua leitura de ficções literárias.
                        Finalmente a Corte concluiu pela absolvição de Isabela, por falta de provas concretas de adultério e negou o divorcio.
                                                Houve grande cobertura da imprensa, com as devidas cautelas para não trazer detalhes do “Diário” que pudessem provocar constrangimento para as famílias; o jornal Saturday Review, publicou um ensaio sobre o livro Madame Bovary de Flaubert, cuja heroína, pretensamente, foi o modelo seguido por Isabela.
                        Por incrível que possa parecer, as mais famosas mulheres retratadas como adúlteras nas novelas escritas no século 19 (Bovary-Flaubert; Anna Karenina-Tolstoi; Therése Raquin-Zola), morreram por suas próprias mãos, Isabela teve um abscesso em um dedo e morreu de septicemia em 1887, com 70 anos de idade.


VIENA - A VISÃO DO TURISTA E A DO HISTORIADOR

               

Quando estive em Viena no inicio da década de 1970 animava-me, exclusivamente, o aspecto turístico da viagem; estava envolvido com as imagens coloridas dos filmes musicais que assistira quando criança e adolescente.
                     Procurei “reencontrar” os seus decantados bosques, embalar-me, se possível pessoalmente, com as valsas de Strauss, principalmente o “Danúbio Azul” e o “Canto dos bosques de Viena”; procurei vestígios da “Família Trap” e, com as ilusões dos meus olhos de sonhador, admirar as águas azuis do rio Danúbio. 
                     Tinha um encontro marcado com Sissi, a Imperatriz,  no Palácio de Schonbrunn; precisava certificar, pessoalmente, o local onde morara a família de Dona Leopoldina, ex-esposa do nosso Imperador Dom Pedro I e ver as pinturas que retratavam nossos antepassados.
                   Não conheci Viena! Naquela época não conhecia sua história, suas artes e sua literatura; principalmente não percebi, com os olhos curiosos do historiador que ainda não era, que Viena ainda mostrava sinais da destruição provocada pela segunda guerra mundial, terminada há menos de três décadas.
                   A partir da década de 1980, voltei várias vezes a Viena, agora, embora ainda turista, com visão mais humanística da vida que nos rodeia; cada reencontro, escudado nas leituras que iam sendo acumuladas pela maturidade intelectual, trouxe-me sedimentação de cultura.
                    Certa feita, sentado a uma mesa de um café situado na Ringstrasse, enquanto saboreava um cappuccino, folheava um livro que adquirira em uma livraria nas imediações, escrito por um americano de nome Carl Schorske (Fin-de-siécle Vienna - Politics and Culture - Viena fim de século, política e cultura); inteirei-me de alguns fatos ligados a esta tão importante via publica.
                  Após a revolução de 1848, as forças liberais que assumiram o governo de Viena, embalados pelas ideias do modernismo que assolavam a Europa, resolveram construir esta via que circunda a chamada parte velha de Viena; para muitos historiadores esta construção representou uma mudança estética e política da cidade.
                  Viena foi, possivelmente, o ultimo bastião europeu das fortificações ao redor de uma esplanada de construções que serviam como centro administrativo do Império e que se mantinha isolado dos seus subúrbios, como mostra um mapa de 1844, inserido no citado livro.
                 No lugar desta fortificação construiu-se a Ringstrasse e optou-se, ao longo da sua extensão, pela construção de uma série de edifícios públicos com vários estilos arquitetônicos, como o neogótico, neobarroco, neorrenascentista e neoclássico.
                A leitura daquele livro levou-me, em outra oportunidade, década de 1990, a procurar o local onde frequentavam, no final do século 19 e inicio do 20, os escritores e os poetas austríacos.
               O café Griensteidl, localizado na Michaelerplatz, tem uma história inacreditável, digna de ser mencionada, senão vejamos: foi inaugurado em 1847 dentro do espírito de todos os “Wienerkaffeehaus”; ali o freguês pode permanecer o dia todo, consumindo apenas água, aliás, gratuita e renovável por garçons sempre simpáticos; funcionou até 1897, portanto durante cinquenta anos e foi reaberto em 1990 e continua com as mesmas características de antigamente, como pude constatar pessoalmente.  
              Do mesmo modo que ocorria no Rio de Janeiro em datas semelhantes, onde um grupo de intelectuais da época (Olavo Bilac, Guimarães Passos, Emilio de Menezes. José do Patrocínio, Bastos Tigres, dentre outros) frequentavam as confeitarias Pascoal e Colombo, situadas as ruas Gonçalves Dias e Ouvidor, respectivamente (O Rio de Janeiro do meu tempo, Luiz Edmundo, Ed. Conquista, 1957) também em Viena os intelectuais escolhiam os cafés para os seus encontros, o Griensteidl era o preferido por um grupo, autodenominado Jung wien (jovens de Viena).
           Arthur Schinitzel, médico por insistência do pai, porém, com a mente toda voltada para a literatura, era o timoneiro deste grupo que incluía, dentre outros, o escritor e ensaísta Alfred Polgar, o poeta, contista e romancista Peter Altenberg, o poeta, ensaísta e jornalista Karl Kraus e o romancista de primeira grandeza, premio Nobel de Literatura, Herman Broch.
          No final do século 19 e inicio do 20, Viena era considerada a cidade com melhor padrão de vida da Europa, era o centro de arte moderna e da cultura, era o período do Império Austro-Húngaro, quando sua população triplicou, passando de 730.000 em 1880 para 2.100.000 em 1910.
        Daquele grupo habituée do café Griensteidl, Schinitzel era, de longe, o de maior talento, tendo sido um dos precursores do romance realista em língua alemã, haja vista o seu livro “Crônica de uma vida de mulher” (Ed. Record, 2008).
        Por ter estudado psiquiatria, interessou-se pela hipnose, tendo, inclusive antecipado ideias a serem preconizadas por Freud na descoberta da psicanálise.
       Em 1983, conforme anotação que fiz na folha de rosto, veio-me às mãos o livro “A Morte de Virgilio” (Ed. Nova Fronteira, 1982 - Hermann Broch), como vimos, pertencente ao grupo de Schinitzel; abandonei-o por considerá-lo com linguagem hermética e de difícil leitura, provavelmente ainda traumatizado pela tentativa de ler, sem sucesso e na mesma época, o livro Ulisses de James Joyce, ambos com estrutura semelhante: monólogo intimo; pretendo voltar a enfrentá-los!
       

  


VILA DA SAUDADE

Muitos anos depois, já com os cabelos embranquecidos pela neve do tempo, o “menino” voltou à Vila da Saudade; chegou com a predisposição de reencontrar a sua alma nas reentrâncias do passado do qual ele participou como sujeito de algumas ações.
               Sentou-se na pedra que teimava em permanecer no mesmo lugar e de onde costumava mergulhar nas águas barrentas e velozes do ribeirão; olhou para o lado da antiga casa que continuava de pé e sentiu, estranhamente, que sua vista procurava visualizar algo que não mais existia. Uma lágrima rolou pelo seu rosto, com suavidade, em direção da comissura labial, esquentando-lhe o rosto e salgando-lhe a boca, outra e mais outra acompanharam o percurso daquela primeira.
                Um choro convulsivo sequenciou aquela tímida manifestação de emoção. Fechou os olhos e, em lapsos de tempo, uma miríade de acontecimentos desfilou, repentinamente, pelo seu pensamento; parecia, pela facilidade com que ele encontrava para programar aqueles reencontros, que os fatos e os personagens estavam acomodados em uma prateleira com as respectivas catalogações; bastava, tão somente, identificar o que desejava ver e com quem desejava conversar. Estava ao alcance das mãos.
               Caminhou solitário pelas ruas, tentando identificar, entre as pessoas que caminhavam, pelo menos um rosto, qualquer rosto, que lhe trouxesse de volta o passado. Viu, assentado em um toco de madeira localizado na calçada de uma casa, uma figura humana que lhe causou forte impressão. Era muito idoso, seu rosto, seus cabelos e principalmente o seu olhar perdido no horizonte denunciavam o seu grupo etário.
               O “menino” se aproximou com cautela; tentou identificá-lo, porém, não foi capaz. Não resistiu à tentação, assentou-se no chão, ao seu lado; só agora verificou que o homem idoso nem percebera a sua presença; parece que dormia, tocou sua mão que estava pendente, aparentemente procurando o cão que estava deitado ao seu lado.
               Tocou-a com cuidado, preocupado em não assustá-lo; o homem idoso movimentou a cabeça e só agora o “menino” percebeu que ele não estava dormindo.
                           - Quem está aqui? Perguntou o ancião,com voz compassada e sem força.
                           O “menino” ainda tentou se identificar, porém, verificou que seria inútil.
               - Sou um antigo morador da Vila da Saudade, gostaria de conversar sobre o nosso passado.
              - Qual passado a que você está se referindo; na minha idade esta expressão não tem muito sentido.
              - Quando falo em passado estou querendo dizer que gostaria de conversar com o senhor sobre a nossa vida passada, sobre a vida dos antigos habitantes da Vila da Saudade.
                - Não me provoques, não me peça para voltar ao passado; falemos do presente, mesmo porque meu  tempo hábil para falar do futuro já esgotou. O meu presente ainda é vida, que é o que vale. Para dizer a verdade, não estou seguro se estou realmente vivendo, pois, pelo que entendo, viver não é só deixar passar as horas, desperdiçando o tempo, sem contar com um dos sentidos mais importantes da comunicação. A minha hora veio, passou e não volta mais!
                 Aconselham-me a descansar; não passo mal, apenas estou velho, isto é, deixei de ser moço, ultrapassei a transição; veio o crepúsculo, a luz diminuiu e desfez o contorno das coisas reais que um dia gostei de ver. Meu entendimento confunde luz com penumbra, tudo é prenúncio de noite; a deficiência chegou, sem antes passar pelo estágio de piora, instalou de maneira brusca e definitiva, negativando o otimismo. Parece que as minhas horas da tarde chegaram sem convite e até sem aviso; parece, pela óptica do meu amor próprio, que chegaram cedo.
              - O senhor se sente aborrecido com as circunstâncias da sua vida?
              - Não, nunca me sinto aborrecido, tenho, como ultima instância, a minha própria companhia; quanto às circunstâncias, vivo com as minhas. Não procuro, nem ao menos contorná-las, vivi meu tempo, assim como os habitantes da Vila da Saudade viveram a deles. Não tente trazê-los de volta, não invoque as suas presenças, deixe-os na paz que merecem.
               Tudo o que eu falar não mais corresponderá à realidade daqueles dias, não posso falar por você, pois nada sei a seu respeito, nem ao menos a sua idade.
               Quanto você está dizendo? Feliz a idade sua, conheci-a, recordo muito bem, foi antes da presença desta neblina; conheci-a antes disto, quando pelas manhãs, independente do local onde morava, todas as neblinas, de todos os dias, eram azuis, havia, ainda, a bruma que envolvia todo o horizonte, por detrás da névoa havia, sempre, o brilho do sol; época ditosa da infância.
               Depois... depois, aquele círculo divertido e principalmente feliz, se converteu, para nós que deixávamos de ser crianças, em um caminho que, progressivamente, começou a se estreitar, até alcançar um desfiladeiro, que é onde me encontro.
                Este caminho você percorrerá, plante flores no seu itinerário, o perfume que emanará deste canteiro, servirá como guia e encantamento para seus dias de possível angústia. Quando você encontrar espinhos, sublime-os e repita para você mesmo:
             - Aqui deveria haver flores, afaste os espinhos e colha as flores!
              Perdoe-me, mas vou ter que me recolher, a disciplina me obriga a permanecer aqui no sol apenas o tempo estipulado para minha segurança; amanhã, talvez, estarei aqui de volta, se isto acontecer e se você se dispuser de tempo e paciência, voltaremos a conversar mais um pouco.
              Lembre-se, o tempo que passou não volta mais!







PARA ONDE VÃO AS NOSSAS LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA? FREUD EXPLICA!

                   
                
                Outro dia, passeando com minha neta Marília pelos jardins da Santa Tereza, vii o entusiasmo com que ela observava os detalhes do mundo que a rodeava, ali uma flor mais saliente e perfumada, acolá a escultura da “Deusa do Cerrado” que as mágicas mãos do artista Luiz Olinto a colocou em destaque; quase  de frente à nossa casa, um pássaro, no caso um “João de barro”, sentou-se em um arbusto bem perto de nós; para todas as coisas havia o questionamento: o que é isto? O que é aquilo? Por quê? Por quê?
            Fiquei imaginando: quando ela crescer, do que se lembrará? Ficarão vestígios destes momentos? Muitos, ou a maioria deles, será esquecida, será como se não houvessem existido; para onde irão estas lembranças? Algumas delas, poucas, poderão ser recuperadas com o auxilio de um adulto que as presenciou e tentará ajudar com narrativas do acontecido.
            Segundo Freud estas lembranças ficarão armazenadas no inconsciente, esperando a oportunidade de serem recuperadas, agora com a ajuda da ciência que ele inventou e que denominou de psicanálise; antes que possa ser mal entendido, preciso dizer que não tenho formação psicanalítica, sou apenas um modesto estudioso do assunto.
            Em uma oportunidade estive na casa onde Freud morou por muitos anos, em Viena, Bergasse 19, onde é hoje um museu; confesso que fiquei emocionado ao adentrar a sala que lhe servia de consultório, dentre tantos detalhes à vista do visitante (tesouros antigos que cobrem mesas, paredes recobertas de quadros, vitrines), chama a atenção o divã, onde se deitava o paciente para a consulta e a sua mesa de trabalho, sobre a qual pode se observar algumas estatuetas de deuses da Grécia, Roma, Egito e das Índias, peças arqueológicas adquiridas nas suas incursões em lojas de antiguidades.
            É sabido que Freud gostava de discutir com seus pacientes a razão da sua coleção de antiguidades, dando explicação entre as diferenças psicológicas que existem entre o consciente e o inconsciente; enquanto que o nosso consciente sofre o desgaste da vida cotidiana, o inconsciente permanece quase que inalterável, dizia ele, acrescentando: - como aquelas estatuetas que foram recuperadas em escavações arqueológicas, muitas delas não imagináveis pelo seu descobridor.
            Freud dizia para alguns de seus interlocutores que ele era, também, um arqueólogo, só que ao invés de utilizar os instrumentos manuais próprios daqueles profissionais (enxada, pás, picareta), utilizava com seus pacientes histéricos, em substituição à tradicional anamnese médica, outro método de investigação que era capaz de fazê-los falar sobre os sintomas que os atormentavam; naquela fase inicial de suas investigações Freud assumiu a hipótese, perigosa para a época, da etiologia sexual da histeria.
            Para tentar convencer seus pacientes e, principalmente a classe médica da época, sobre esta sua teoria, utilizava-se de metáforas, dentre elas, destaco a que utilizou na sua famosa conferência “Etiologia da Histeria” proferida em 1896, que provocou tanta reação, às vezes agressiva, por parte da classe médica que lotou o auditório da Sociedade Médica de Viena para ouvi-lo.
            Acho, disse ele: - que poderá haver outro meio de se chegar à etiologia da histeria, sem o auxilio consciente do paciente, pois sabemos que o dermatologista poderá diagnosticar a sífilis pelas características visuais de uma lesão, embora o paciente possa negar o contato sexual com um paciente infectado; na histeria ocorre o mesmo, podemos descobrir as suas causas a partir de sintomas, aparentemente sem importância para o paciente, porém esclarecedores para o médico conhecedor da nova técnica que estou propondo, a psicanálise.
            Para que possam entender este novo método de investigação, recorro a uma nova comparação: Suponhamos que um explorador chegue a um determinado lugar, onde existe algumas ruínas, restos de muros, fragmentos de colunas e algumas lápides com inscrições inelegíveis; ele pode simplesmente interrogar alguns habitantes da região, obter informações sobre aquelas ruínas e sua história, tomar notas das respostas e prosseguir sua viagem.
            No entanto ele poderá, se tiver alguns instrumentos úteis para o trabalho de arqueologia, fazer outra coisa: conseguir auxilio de alguns habitantes do local e fazer um trabalho de escavações e descobrir, a partir das ruínas  que eram vistas, o que estava sepultado; se tiver êxito na empreitada, os descobrimentos se explicam por si mesmos ( os restos de muros eram o recinto de um palácio, os fragmentos das colunas, poderiam pertencer a um templo, as inscrições nas lápides, poderiam ser um novo alfabeto de um idioma, cuja tradução poderia indicar insuspeitados dados sobre o ocorrido no passado e em comemorações dos quais foram erigidos aqueles monumentos).
            O que mais escandalizou o auditório foi a sua afirmação final: “A causa da histeria está escondida no inconsciente e o seu conteúdo será, necessariamente, sexual e acontecido na fase infantil e que foi apagado do consciente pela tendência defensiva contra uma penosa recordação inconsciente”.
            Felizmente, a maioria dos acontecimentos ocorridos na infância e que ficou escondida no inconsciente, não são traumáticos, podendo ser, pelo contrário, até bastante prazerosos, se recuperados.



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COMO O VISCONDE DE TAUNAY “DESCOBRIU” OS PERSONAGENS DO SEU LIVRO “INOCÊNCIA”.


               Visconde de Taunay ou Alfredo d’Escragnolle Taunay (1842-1899) foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira de Letras; nasceu no Rio de Janeiro, tendo publicado várias dezenas de livros, além de incontável numero de artigos em jornais e revistas da época, versando sobre reminiscências, crítica literária e artística, biografias e música; foi político atuante (deputado por Goiás e depois senador do Império) e militar (participou na linha de frente da Guerra contra o Paraguai).
               Após a morte de Dom Pedro II, a quem dedicava a mais absoluta veneração, passou a viver, quase que exclusivamente, para os trabalhos literários, tendo escrito, nos últimos anos de vida, dois romances que passaram incólumes pela prova do tempo: “A Retirada da Laguna” e “Inocência”, este último com mais de 35 edições.
              A inspiração para ele escrever “Inocência” vamos encontrar no seu livro póstumo (Visões do Sertão, 1928), onde  narra sua volta para o Rio de Janeiro em 1867, após a retirada da Laguna, atravessando, neste percurso, os Estados de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo, em lombo de cavalos.
                          Leiam comigo alguns excertos do que ele escreveu naquele livro:
            “...Nesse dia 1 de julho de 1867, à margem do rio Sucuriú, vi um anão mudo, gracioso e ágil nos movimentos, que me serviu de personagem (Tyco) no meu romance “Inocência”, inclusive seu chapéu de palha furado...”.
              “... Foi na “fazenda do Vau”, a mais importante da região. A dona, uma desconsolada viúva, anêmica e parecendo desgostosa com a vida, não nos acolheu mal; tinha uns filhos, o mais velho, devia em breve casar com uma prima, provavelmente, também caquética como o noivo. Foi daí que tirei o assunto para o romance “Inocência”, cuja heroína eu iria encontrar alguns passos além...Aliás, nesse sertão, próximo de Santana do Paranayba, foi que colhi os tipos mais salientes do livro. Na casa do Sr. Manoel Coelho achei o eterno doente das solidões, queixando-se da falta de médicos, agarrando-se a curandeiros. Foi ele o “pai” de Inocência, o Pereira...”
               “...Numa vivenda, bem à beira do caminho, morada de um tal João Garcia, foi que vi o tipo que se transformou em Inocência. Estava eu com muita fome, parei e pela porta escancarada, vi um homem a uma mesa, devorando um prato que me pareceu delicioso.
                 - O Sr. não convida alguém varado de fome? Com todo prazer é só desapear e vir comer.
                 Um gostoso refogado de carne de porco com cebolas e farinha de milho; repeti abundantemente.
                Após saciar minha fome o homem interpelou-me:
                - Por que o patrício não teve escrúpulo de sentar-se à minha mesa?
                - Por que deveria? Perguntei, sem entender.
                - É, replicou-me a custo, aqui é casa de morfético; levei susto, porém, como recuar? Dali a pouco entrava na sala uma moça na primeira flor dos anos, tão resplandecente de beleza, que fiquei de boca aberta. -  Então, acha minha neta Jacinta bonita? A pobrezinha da inocente já esta com o mal;  Jacinta tornou-se a Inocência; não fiz desta, no entanto, uma infeliz morfética. Do avô tirei o personagem “leproso”, o Mineiro, e lhe dei o nome verídico, Sr. Pereira...”.
                  Para patentear, mais uma vez, a capacidade de observação do criador de Inocência, vale destacar o diálogo entre um dos seus personagens, o capataz da “fazenda do Vau”, chamado senhor Pereira, que no romance tornou-se, como dissemos acima, o pai da personagem principal do romance, a Inocência, com o curandeiro Cirino:
                 “Quem se queixava de engasgues era o capataz de uma fazenda chamada  “ do Vau”, distante umas boas cinquenta léguas.
                - Sr. doutor, disse o enfermo, a minha vida é um continuo lidar de sofrimentos. Estou com este mal vai fazer cinco anos no São João, por sinal que me veio com uma grande dor do estômbago. Vezes há que não posso engolir nada, sem, beber muitos golos de água, de maneira que me encharco todo e fico que mal me mexo de um lugar para outro.
                 - E a dor, perguntou Cirino, ainda a sentes?
                 - Toda a vida, o que me aflege mais é que há comidas então que não me passam a goela...É um fastio dos meus pecados, boto uns pedacinhos no bucho e parece-me que dentro tenho um bolo que me está a subir e descer pela garganta.”
                  Nós que lidamos com a Doença de Chagas sabemos que estas queixas são, praticamente, as mesmas apresentadas pelos doentes portadores de megaesôfago chagásico.
                Meu colega e amigo, Dr. Ulisses Meneghelli, Prof. da Faculdade de Medicina  da USP-Ribeirão Preto, foi quem, pela primeira vez, chamou a atenção para esta curiosidade, em publicação na Revista Goiana de Medicina em 1992.
                    Este diálogo, ao lado de mostrar a sensibilidade do autor de “Inocência” em captar detalhes que poderiam passar despercebidos ou pouco valorizados para um leigo em medicina, como ele era, deixou a nossa comunidade científica ligada aos estudos da doença de Chagas, absolutamente perplexa.
                   Sabem por quê? A doença de Chagas foi descoberta, cientificamente, em 1909 e este diálogo foi perpetrado em 1867; o mais interessante: hoje sabemos que a região onde Taunay encontrou este personagem do seu romance, era zona endêmica da Doença de Chagas.