MINHAS CRÔNICAS

sábado, 10 de outubro de 2009

DUELO DA INTELIGÊNCIA – Um advogado (Rui Barbosa) versus um médico (Ernesto Carneiro Ribeiro).

Pelo que se depreende da leitura, não só de livros literários como de compêndios sobre a história do Brasil, no século dezenove e inicio do século vinte, era muito comum as discussões, através da imprensa, de assuntos polêmicos. Na maioria das vezes os debates acabavam desaguando para a procura, entre os contendores, de possíveis erros de português na redação do que se estava discutindo.
Normalmente as discussões eram de alto nível; algumas vezes, no entanto, dependendo do polemista, o terreno se tornava movediço, com utilização de termos não apropriados e até mesmo sarcásticos e virulentos, como ocorreu no debate entre os escritores Julio Ribeiro e Sena Freitas, a respeito do romance A Carne.
Um dos momentos maravilhosos destas polêmicas ocorreu entre dois baianos: o jurista Rui Barbosa e o médico, filólogo e professor de português, Ernesto Carneiro Ribeiro.
O inusitado desta questão foi que um fato político tornou-se um caso literário, principalmente um caso de discussão sobre a gramática portuguesa.
Epitácio Pessoa era ministro da justiça do governo de Campos Sales quando, em 1899, Epitácio incumbiu o Professor Clovis Bevilaqua de redigir o projeto do nosso código civil o que mereceu a imediata contestação de Rui Barbosa, alegando que havia sido exigida pressa na sua realização, que não devia ser feito por uma única pessoa e, além de tudo, o encarregado da tarefa não possuía suficiente conhecimento do vernáculo.
Como as discussões deveriam ser apressadas para que o código pudesse ser aprovado ainda no governo de Campos Sales, surgiram, como se poderia esperar, muitos erros gramaticais na redação da colcha de retalhos que se tornou o aludido projeto original.
Para tentar sanar este “pormenor”, foi solicitado o auxilio do respeitabilíssimo Prof. Carneiro para que revisasse o texto, tanto a parte gramatical como a literária; deram-lhe o prazo de cinco dias!
Aprovado na câmara, o projeto foi enviado para o senado, onde uma comissão, presidida por Rui Barbosa já estava de prontidão, aguardando-o; segundo alguns historiadores, Rui estava magoado por não ter sido ele o encarregado de elaborar o projeto original, portanto estava em suas mãos a oportunidade de provar o que afirmara no inicio, sobre a competência do jurista Clovis Bevilaqua.
Ao final de três dias, Rui apresentou duzentas e dezessete folhas manuscritas que se transformou, depois de editado pela Imprensa Nacional, em um livro de 560 páginas, com o seguinte título: Parecer do senador Rui Barbosa sobre a redação do projeto do código civil.
Para surpresa geral, ao invés de criticar os aspectos jurídicos do Código, Rui usou toda sua inteligência para mostrar que o mesmo estava mal redigido, com erros de linguagem, cacofonias, etc.
Para dar uma idéia da profundidade das observações, refiro-me a um único exemplo: ao corrigir a redação do artigo 1503, §65, Rui trouxe à baila uma discussão que se prolongou por 16 páginas, sobre a oportunidade de trocar o adjetivo possessivo pelo pronome (... passa a seus herdeiros ... passa-lhe aos herdeiros).
Com esta postura, para muitos considerada como elitista, Rui não conseguiu agradar aos políticos (não era um homem realista) e tampouco aos escritores (purista da linguagem sem necessidade).
Como não poderia deixar de ser, surgiu na imprensa inúmeros artigos, alguns apoiando o famoso jurista, porém, a maioria de contestação, principalmente da parte dos políticos e dos deputados que aprovaram o texto e, também, do jurista Bevilaqua, autor do projeto.
Finalmente, no dia 26 de outubro, o Prof. Carneiro se manifestou através do Diário do Congresso, publicando sua resposta: “Ligeiras observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa”; No dia 11 de novembro, em discurso memorável no Senado, Rui dissecou o projeto, acusando-o, dentre outras coisas, de anomalia jurídica.

Logo em seguida, veio à luz uma das mais extraordinárias peças do saber gramatical, padrão imorredouro de arte pela beleza da forma, denominada a Réplica, que provavelmente nunca será igualada em nossas letras, porém, desencadeou um verdadeiro drama no espírito do Prof. Carneiro, levando-o a afirmar: “Vou responder a Rui, embora isto me custe à vida”.
Somente em 1905 o Prof. Carneiro respondeu a réplica de Rui, com uma tréplica, contida em volume de mais de novecentas páginas, intitulado “Redação do projeto do código civil e a réplica do Dr. Rui Barbosa”.
Apenas para nos ater ao exemplo que citamos acima, na pagina 591 da sua tréplica, o Prof. Carneiro, insiste na discussão sobre o uso do possessivo e do pronome, utilizando 11 páginas para reafirmar seu ponto de vista.
Segundo consta, Rui Barbosa pensou em “dar uma tunda no Carneiro”, porém, desistiu da idéia, tendo em vista que este havia sido seu mestre nos bancos escolares da Bahia e também, segundo alguns, porque o assunto estava tomando conta das suas atividades funcionais e literárias.
Finalmente, durante a campanha eleitoral de 1919, quando Rui, indo à Bahia, numa hora de emoção, confraternizou-se com o antigo mestre em encontro emocionante, abraçaram-se entre lágrimas e aplausos.

1 Comentários:

  • Às 4 de dezembro de 2017 às 00:30 , Blogger Darth Versus disse...

    Quanto se conhece o nível elevado que eram as discussões políticas nessa época e se vê hoje o deputado Jean Wyllys dizendo que se o mundo fosse acabar amanhã ele iria transar com todo mundo e usar todas as drogas possíveis, dentre outras coisas ditas e feitas por deputados e senadores; dá vontade é de chorar.

     

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