MINHAS CRÔNICAS

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

DISCUSSÕES SOBRE O COTIDIANO EM UM CAFÉ EM VIENA

Sei que faz muitos anos, porém, não consigo me lembrar do ano, sei que era primavera pela abundância de flores em todos os jardins; sentamos, Marília e eu, a uma das mesas que estava vaga, pedimos dois cappuccinos e dois apfelstrudel (bolo de maçã, nozes e queijo) e passamos a observar a movimentação de gente que desfilava no que restou da calçada que havia sido invadida pelo café.
O local, café Landtmann, situado na Ringstrasse (avenida circular de mais ou menos quatro quilômetros de extensão que circula a parte velha de Viena), que havia sido recomendado por um médico amigo residente em Salzburg, a quem havíamos visitado na semana anterior.
Conversávamos sobre as impressões da viagem e principalmente sobre a experiência de termos hospedados no pitoresco hotel Singer encravado nas montanhas alpinas e das nossas aventuras pelos seus arredores.
Um jovem casal de namorados estava sentado a uma mesa na nossa vizinhança; trocavam, em uma língua não inteligível para nós ambos, possivelmente juras de amor; o idílio foi interrompido pela chegada de um senhor mais idoso que trajava uma típica vestimenta tirolesa (calção verde e branco, sustentado por um suspensório, camisa branca, meias de cor verde, compridas até abaixo do joelho, botas de cano curto e na cabeça um chapéu, também verde, encimado por uma pena, possivelmente de pavão, vermelha).
Era um senhor com idade, provavelmente, acima de 75 anos; seu porte físico era avantajado, principalmente à custa de um ventre bastante volumoso, seu rosto, muito vermelho, deixava saliente parte das suas bochechas, uma vez que usava costeleta, ou suíça, como gostam de nominá-la, muito larga, emendando com um vasto bigode que sobrava nas suas duas extremidades, como se fora duas barbatanas brancas.
Pareceu-nos, à primeira vista, tratar-se do pai da mocinha, pela maneira carinhosa e com tanta intimidade que a tratou; com o “genro” ele foi mais parcimonioso nos gestos, embora não faltassem os sinais de gentileza mútua.
Sentou-se e, como por encanto, passaram a conversar em inglês, parece que com a intenção de deixar-nos à vontade para participar das discussões, pois, com a sua chegada, passamos a “fazer parte da mesa vizinha” procurando inteirar, na verdade bisbilhotar, o que faziam e o que conversavam.
- Onde está a mamãe? Perguntou a mocinha (confirmando, portanto, nossa hipótese de ser ela a filha)
- Só Deus sabe, agora inventou de fazer um curso de francês, além de outro para aprender a manusear o computador.
- Não te falei que ela era a filha? Dificilmente me engano, disse à Marília, tentando exibir meus conhecimentos de Sherlock Holmes.
- É pode ser, mas acho estranho este homem tão idoso, andando sozinho sem a mulher, acho que ele está com alguma dificuldade de relacionamento em casa; depois, do jeito que ele falou, me pareceu que está muito distante da esposa!
- Mister Fritz, o senhor não quer ir almoçar conosco? Descobrimos um restaurante situado bem perto daqui, indicado por um amigo, onde servem um Wiener Schinitzel de carne de porco extraordinário.
- Boa idéia, porém, prefiro com carne de frango ou de peru!
Tomaram, cada um deles, um cálice de champanha e se foram, sem antes se despedirem, com um gesto cordial, dos novos e imprevistos confidentes.
- Não te falei? Ele nem se preocupou em telefonar para a mulher.
- Aliás, a bem da verdade, nem a filha se preocupou com a mãe!
Esta cena e principalmente este diálogo, seriam improváveis na Viena no final do século XIX, como nos conta Allan Janik (A Viena de Wittgenstein, Ed. Campus, 1991):
“O lar de um homem era o seu castelo, o pai de família era o avalista da ordem e da segurança e, como tal, possuía autoridade absoluta. O lar era o refúgio do mundo lá fora, um lugar onde não se permitia a entrada dos detalhes do mundo cotidiano”.
Ficamos com as nossas dúvidas, porém, não por muito tempo, pois o café havia esfriado e resolvemos procurar um lugar para almoçar, se possível um Wiener Schinitizel de peru; antes que algum curioso nos pergunte, escolhemos um restaurante bem distante do escolhido pelos nossos “novos amigos”.
A vida é a arte do encontro; quem sabe, algum dia, voltaremos a encontrar o Mister Fritz, se possível, para alegria de Marília, bem contente com a Miss Fritz.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial