MINHAS CRÔNICAS

quarta-feira, 4 de maio de 2011

BISBILHOTANDO O DIÁRIO DE QUEM JÁ MORREU

Hoje em dia não é muito comum, porém, no final do século 19 e até a metade do século 20, era presente o costume de se possuir um “Diário”; quase todas as mocinhas, principalmente na época da adolescência, possuíam o seu amigo e confidente diário, onde anotavam, desde as peripécias escolares até “relatos daquele primeiro encontro”; ah! Quantos olhos amorteceram a poder de lágrimas, porém, que fora a vida, se nela não houvera lágrimas?

Poucas pessoas tinham acesso a este segredo,guardado debaixo do colchão, no fundo do velho guarda-roupa ou naquele baú que pertenceu aos antepassados e cuja chave era escondida em lugares inacessíveis ao irmão bisbilhoteiro.

A literatura, geralmente os livros encontrados em “sebos”, está repleta de “diários” de escritores e, quem se aventura como eu, a “garimpar” nas estantes empoeiradas e normalmente mal iluminadas, arriscando cair de escadas para alcançar as prateleiras mais altas, encontra algumas preciosidades que muitas vezes nos emocionam.

Tenho na minha biblioteca uma bela coleção destes exemplares; contemplo-os e “converso” com alguns deles, se a “lombada” me lembrar um título que me trouxe, tempos passados, a alegria de lê-lo, busco-o e, devagarzinho, às vezes mudando as páginas com carinho e cuidado para não rasgá-las, revivo, pelo menos em parte, as emoções de quem as escreveu.

Em uma oportunidade, o senhor Luiz Português, um grande amigo que me fora apresentado pelo Dr. Joffre Marcondes de Rezende e que era proprietário da hoje extinta livraria-sebo Ornabi, localizada à rua Benjamin Constant, nas imediações da Praça da Sé, a qual eu visitava sempre que tinha oportunidade de ir a São Paulo, telefonou-me, avisando, por saber do meu interesse por este tipo de livro, que ele conseguira dois livros muito interessantes e que iria guardá-los, para quando eu voltasse à sua livraria.

O primeiro deles é um exemplar de “As confissões de Jean-Jacques Rousseau – Tradução de Wilson Lousada para a Ed. José Olympio, 1948” e o outro é “A Corte de Luiz XIV, Memórias de um cortesão – Saint Simon, tradução de Miroel Silveira e Isa S. Leal para a Ed. José Olympio, 1944”

O livro de Rousseau é uma obra extraordinária, com quase 600 páginas de encantamento, são cinquenta anos da sua vida, contada no formato de um diário, que foi iniciado em 1764, quando ele contava 52 anos de idade, concluído em 1778 e publicado, pela primeira vez, em 1782, após sua morte.

Rousseau hoje está meio esquecido do meio literário, provavelmente, pelo hermetismo da sua obra, porém, ao ler estas “Confissões” somos surpreendidos pelo autodesnudamento do seu caráter, carregado de complexos, que o levou, inclusive, ao desequilíbrio psíquico no final da vida; transparece, também, o homem vaidoso que lhe adveio de um complexo de inferioridade que nunca o abandonou.

O outro livro, “A Corte de Luiz XIV – Memórias de um cortesão” trata-se, na verdade, de uma seleção de trechos mais interessantes dos Diários de Saint Simon que era constituído de 21 volumes, pois, seria impossível resumir obra tão avultosa em apenas um livro com pouco mais de 450 páginas.

Somos transportados, pelo ritmo sonoro da pena do escritor francês, para o interior da Corte Francesa do final do século 17, com descrição das roupas, de personagens, tanto dos pertencentes à realeza como dos cortesãos e, principalmente, dos hábitos de vida daquela época, não deixando, inclusive, de incluir nestas reminiscências, algumas indiscrições e, principalmente, relatos de prevaricações de figuras poderosas.

Saint Simon foi um observador privilegiado das movimentações da Corte, pois a frequentava com assiduidade, participava, inclusive, de reuniões no interior do aposento do Rei, na companhia de vários elementos da realeza, onde se ouviam músicas, jogavam-se bilhares,acompanhadas de refrescos, segundo seus relatos; suas descrições são fidedignas e, também, mordazes.

Saint Simon influenciou, segundo consta, com o seu estilo e maestria da escrita grandes escritores; os últimos parágrafos do seu “Diário” explicam este fascínio que exerceu sobre Tolstoi, Flaubert e Proust, dentre outros:

“Deverei finalmente falar do estilo, de sua negligência, das repetições próximas demais das mesmas palavras, às vezes dos sinônimos multiplicados, sobretudo da obscuridade que nasce com frequência da extensão das frases, talvez de algumas repetições, etc.”

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