MINHAS CRÔNICAS

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

TESTEMUNHO DE UM CIRURGIÃO – Encontro com Dom Fernando Gomes dos Santos.

Neste ano que findou o ex-arcebispo da Arquidiocese de Goiânia, Dom Fernando Gomes dos Santos completaria, se vivo fosse, 100 anos de idade.
No desempenho da minha profissão de médico tenho tido a oportunidade de me aproximar de muitas pessoas da vida cultural, econômica, religiosa, política e social de Goiás, Dom Fernando foi uma destas personalidades; um momento de dificuldade existencial motivou este evento.
Lembro-me como se fosse hoje do nosso encontro, era final do mês de maio do ano de 1985, recebi telefonema da enfermeira e minha colega no Hospital das Clínicas da Fac. de Medicina da UFG, Maria Aparecida Veloso, solicitando-me que fosse ao Hospital Santa Helena examinar Dom Fernando que ali estava internado.
Conhecia-o pelas suas ações pastorais e sociais, porém, nunca havia tido a oportunidade de me aproximar daquele homem corajoso nas suas posições e ações e, sobretudo, com uma áurea de defensor dos mais fracos e indefesos; de alguma maneira, que não consigo explicitar, nasceu, naquele primeiro encontro, uma grande empatia entre médico-paciente, que foi fundamental para a continuidade do tratamento que lhe propus.
Na minha vida de estudante em Curitiba nos idos anos de 1957-64 participei, como quase toda a juventude estudantil daquela época, das lutas políticas, com forte militância na esquerda, principalmente nos anos que antecederam à revolução de 1964; tínhamos grande afinidade com uma parcela importante da igreja católica, principalmente depois do Concilio Ecumênico Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII; Dom Fernando viveu, como sabemos, intensamente os ensinamentos emanados daquela encíclica Papal.
Pena, para mim, que aquela ocasião não era propicia para discutirmos estes assuntos e tentarmos fazer uma interface entre as suas posições e as minhas, na época, um pouco descrente com a mãe Igreja Católica; era o tempo em que comecei a “ouvir” Alceu de Amoroso Lima na procura de ajuda para vencer minhas dificuldades espirituais.
Foram dias de grande tensão, pois sabia, pelo diagnóstico da sua doença, que estava diante de um quadro clínico desafiador; nosso primeiro diálogo define toda sua personalidade:
- O senhor terá que se submeter a uma intervenção cirúrgica.
- Por quê?
- O senhor está com uma lesão no intestino que necessita ser retirada.
- Os senhores médicos julgam que tudo podem, até mesmo agredir o corpo humano com o bisturi; no entanto, nada sabem. Não tenho a menor preocupação em saber se trata de uma lesão maligna ou benigna; só quero saber do que vou ser operado. O resultado final pertence a Deus!
Alguns dias após este diálogo, infelizmente, estive presente nas exéquias de Dom Fernando; justamente 72 horas após a intervenção cirúrgica, ele que estava apresentando evolução pós-operatória sem nenhuma intercorrência (deambulando e se alimentando), fez uma grave arritmia de miocárdio, que já se apresentava com quadro de arteriosclerose, seguida de parada cardíaca.
Durante as mais de quatro horas em que permaneci ao seu lado na câmara mortuária, no interior da Catedral Metropolitana de Goiânia ouvindo os cânticos, orações e, sobretudo, os sermões, senti emoção ao presenciar tamanha demonstração de carinho por parte da população de Goiânia e lamentei o fato de que nosso “encontro” tenha acontecido somente naquela oportunidade, em momento de tanta dificuldade para ele.
Aprendi com a vivência na minha profissão a assumir uma postura de humildade perante o corpo humano, deixando sempre para o Criador a palavra final; daquela vez não foi diferente: quando os acontecimentos médicos encaminhavam para um desenlace feliz, surge a fatalidade, mostrando as nossas reais limitações.
Hoje, 25 anos depois daquela semana que deixou marcas indeléveis na minha vida profissional, continuo envolvido com o pensamento de Alceu de Amoroso Lima na procura de minha afirmação nos ensinamentos da Igreja Católica; costumo repetir o que Amoroso Lima disse para sua filha, madre Maria Teresa, abadessa do Mosteiro de Santa Maria, em uma das suas cartas que, diariamente e por mais de 30 anos, ele lhe enviava:
- Eu creio e isto me basta!
A crença, a fé, não pressupõe, obrigatoriamente, a presença da razão; por não podermos demonstrar a existência de Deus por meios de fácil entendimento direto da razão não prova a sua inexistência. Muitas manifestações sobre o mundo material, tidas como verdadeiras, podem não ser racionais; para ficarmos em um exemplo, gostaria de lembrar que boa parte do que os físicos nucleares dizem é verdadeiro e, principalmente, pode ser comprovado, porém, não achamos, de sã consciência, razoável que uma partícula nuclear possa passar por dois orifícios diferentes ao mesmo tempo.
Como conclusão, podemos afirmar que a ciência negocia com certos artigos de fé, como qualquer outra forma de conhecimento; o escritor Richard Dawkins, no seu livro “Deus, um delírio”, declara que a ciência está livre do principal vicio da religião, que é a fé, esquecendo-se ele que, sustentar que na obra de um cientista não existem pressupostos que não sejam baseados em evidência é, seguramente, o reflexo de uma fé cega, aquela que não sente o tremor da duvida.
A fé não pode ser tida como um saber, afirma Hannah Arendt; bem o contrário, resulta de um engajamento que opera para além das categorias da razão, ou contra a própria razão; quando Deus lhe pede que sacrifique o filho, Abrãao conserva sua fé em Deus, apesar do absurdo e da crueldade dessa demanda.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial