MINHAS CRÔNICAS

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

A MÃE DE SERAFIM ARCANJO FICOU SEM A LUZ DA VIDA

Ninguém sabia ao certo como Serafim Arcanjo e sua mãe vieram parar no Rio Muzambu, muito menos, por que vieram para este povoado tão distante dos grandes centros; sabia-se, no entanto, que não tinham muitos amigos, vivendo quase que isolados em uma casa de construção rústica e já em mal estado de conservação, localizada quase que na saída do pequeno lugarejo.
Serafim e sua mãe não trabalhavam, viviam à custa, segundo diziam, de uma pensão deixada pelo pai que morrera em uma briga há mais de dez anos; esta ultima informação, aliás, incompleta porque não ficou esclarecida a razão da briga, foi colhida por Da. Donana que se encarregou de contar para Da. Negrinha do Sr. Oscar e esta fez a gentileza de “bater com a língua nos dentes” para quem lhe perguntasse.
Quando chegaram ao Rio Muzambu Serafim ainda era um garoto, com idade ao redor de cinco ou seis anos; sua mãe, segundo asseverava Da. Neguinha, provavelmente ainda desgostosa com a perda do marido, vivia todo o seu tempo disponível envolvida com religião, aliás, com Deus, pois professava uma estranha, no dizer de Da. Neguinha, crença de só acreditar no Criador e no seu próximo retorno à terra e, em nada mais.
A mãe de Serafim aparentava ter pouco mais de 20 anos de idade, era alta e magra, andava com os ombros um pouco inclinados para frente do corpo, seus olhos aparentavam cansaço e seus cabelos eram curtos; vivia tão absorvida com a sua “estranha” religião que não tinha tempo para ver, tão perto de si, a manifestação viva da presença de Deus naquela criança que vivia ao seu redor sem ser vista e, sobretudo, sem o carinho materno e que procurava o afeto que lhe era negado, na casa dos vizinhos.
As pessoas que viviam lá para trás do morro do Marmelo e que desejassem vir ao Rio Muzambu eram obrigadas a passar em frente da casa de Serafim e sua mãe; quase sempre o menino estava “brincando” de se esconder atrás de alguma elevação, em cima de uma árvore ou dentro de um buraco, para jogar pedras nos transeuntes.
Não é preciso dizer que isto incomodava todo mundo; reclamavam para a mãe do Serafim e esta se defendia dizendo que não dava conta de corrigi-lo e achava que a sua presença na sua vida era uma provação que Deus a submetia para testar sua adoração; nestas horas ela invocava o exemplo de Abraão que aceitou entregar seu filho ao sacrifício para provar seu amor ao Senhor; a diferença entre os dois episódios, dizia ela, no meu caso, ao invés de entregar o filho, suportava calada todas as suas travessuras.
Da. Neguinha um dia bem que teve coragem de alertá-la que, na verdade, quem suportava a maior carga das travessuras do Serafim eram os vizinhos e não ela, a mãe; - a senhora está enganada, respondeu a mãe de Serafim, quem suporta os xingamentos dos vizinhos, calada, sou eu!
O tempo passou, os ombros da mãe de Serafim ficaram cada vez mais inclinados, levando, de roldão, também o tórax; sei, pelo que aprendi com George Sand, que não se deve revelar a idade da inteligência de uma mulher, nem tampouco a idade dos seus pensamentos, porém, como não lhes disse o nome desta mulher, ouso dizer que nesta fase da sua vida ela aparentava ter mais de 60 anos de idade; Serafim, dezesseis.
Foi justamente por esta época, quando Serafim já havia crescido o suficiente para ser mais alto que sua mãe, que ele deixou a sua casa, deixou o Rio Muzambu e nunca mais ninguém deu noticias do seu paradeiro; sua mãe, aparentemente, aceitou o acontecimento como se fora uma imposição Divina, não chorou e nunca reclamou para as vizinhas, porém, daí em diante os dias e os anos passaram tão rapidamente na sua vida, que pareciam instantes; o céu do seu cotidiano era sempre nublado e hostil, seus ombros desmoronaram pelo peso da tristeza, olhava a vida pela fresta da janela, sem coragem de deixar a esplendecência de a luz ocupar o escuramento da sua alma.
Da. Neguinha do Sr. Oscar foi quem observou, pela primeira vez, e deu a noticia para outras pessoas:
- Acho que a mãe do Serafim não está “batendo bem da cabeça”, ontem eu a vi tomando banho na chuva, praticamente sem nenhuma roupa; outro dia o velho João Vital me disse que ao passar perto da sua casa, ouviu que ela o chamava – Espera por mim, não te vás, por favor! Ao olhá-la, observou que ela estava quase nua; por estar bêbado e ser surdo, não ouviu o que ela continuou falando!
Naquele dia, ao entrar em casa, a mãe de Serafim ainda teve um momento de possível lucidez: - Que será que eu tenho? Tenho medo de fazer alguma coisa horrível, não quero cometer uma apostasia!
Deitou, enterrou a cabeça no travesseiro e procurou ajuda com o Criador para enfrentar o fato de muitas pessoas, iguais a ela, têm que viver e morrer sozinhas, mesmo estando rodeadas por uma multidão; nunca mais ela percebeu que existe uma hora em que o céu se torna mais azul e as estrelas ainda mais reluzentes, o ar fica umedecido pela suavidade da brisa, as folhas de um pequeno e, aparentemente, insignificante arbusto, se encarregam, com seu sussurro cheio de mistério, de entoar a melodia que lhes foi segredada pelo Divino Criador.

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