MINHAS CRÔNICAS

sábado, 3 de março de 2012

VISCONDE DE TAUNAY (1843–1899)

Visconde de Taunay ou Alfredo d’Escragnolle Taunay foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras, nasceu no Rio de Janeiro, tendo publicado várias dezenas de livros, além de incontável numero de artigos em jornais e revistas da época, foi político atuante (deputado por Goiás e depois senador do Império), militar (participou, na linha de frente, da Guerra contra o Paraguai).

Após a morte de Dom Pedro II, a quem dedicava a mais absoluta veneração, passou a viver, quase que exclusivamente, para os trabalhos literários, tendo escrito nos últimos anos de vida, milhares de páginas sobre polêmicas, reminiscências, crítica literária e artística, biografias, música, além de dois romances.

De todo o seu acervo, cabe destacar dois romances que passaram incólumes pela prova do tempo: A Retirada da Laguna e Inocência, este último com mais de 35 edições; o leit motiv para escrever o primeiro deles foi a sua participação no episódio militar, que passou para a história como um dos mais heróicos de todas as batalhas travadas pelo valoroso exército do Império Brasileiro, a guerra contra as forças do Paraguai e que ficou conhecido como a Retirada da Laguna.

A inspiração para ele escrever Inocência vamos encontrar no seu livro póstumo “Visões do Sertão – Ed. Cia. Melhoramentos de São Paulo, 2ª. edição, 1928”, onde narra sua volta para o Rio de Janeiro em 1867, após a retirada da Laguna, atravessando, neste percurso, os Estados de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo, em lombo de cavalos.

Leiam alguns excertos do que ele disse:

“...Nesse dia 1 de julho de 1867, à margem do rio Sucuriú, vi um anão mudo, gracioso e ágil nos movimentos, que me serviu de personagem (Tyco) no meu romance Inocência, inclusive seu chapéu de palha furado...”

“... Foi na fazenda do Vau, a mais importante da região. A dona, uma desconsolada viúva, anêmica e parecendo desgostosa com a vida, não nos acolheu mal; tinha uns filhos, o mais velho, devia em breve casar com uma prima, provavelmente, também caquética como o noivo. Foi daí que tirei o assunto para o romance Inocência, cuja heroína eu iria encontrar alguns passos além...Aliás, nesse sertão, próximo de Santana do Paranayba, foi que colhi os tipos mais salientes do livro. Na casa do Sr. Manoel Coelho achei o eterno doente das solidões, queixando-se da falta de médicos, agarrando-se a curandeiros. Foi ele o “pai” de Inocência, o Pereira...”

“...Numa vivenda, bem à beira do caminho, morada de um tal João Garcia, foi que vi o tipo que se transformou em Inocência. Estava eu com muita fome, parei e pela porta escancarada, vi um homem a uma mesa, devorando um prato que me pareceu delicioso.

- O Sr. não convida alguém varado de fome? Com todo prazer é só desapear e vir comer.

Um gostoso refogado de carne de porco com cebolas e farinha de milho; repeti abundantemente.

Após saciar minha fome o homem interpelou-me:

- Por que o patrício não teve escrúpulo de sentar-se à minha mesa?

- Por que deveria? Perguntei, sem entender.

- É, replicou-me a custo, aqui é casa de morfético; levei susto, porém, como recuar? Dali a pouco entrava na sala uma moça na primeira flor dos anos, tão resplandecente de beleza, que fiquei de boca aberta. Então, acha minha neta Jacinta bonita? A pobrezinha da inocente já esta com o mal. Jacinta tornou-se a Inocência; não fiz desta, no entanto, uma infeliz morfética. Do avô tirei o personagem “leproso”, o Mineiro, e lhe dei o nome verídico, Sr. Pereira...”.

Para patentear, mais uma vez, a capacidade de observação do criador de Inocência, vale destacar o diálogo entre um dos seus personagens, o capataz da fazenda do Vau, chamado senhor Pereira, que no romance tornou-se, como dissemos acima, o pai da personagem principal do romance, a Inocência, com o curandeiro Cirino:

“Quem se queixava de engasgues era o capataz de uma fazenda chamada do Vau, distante umas boas cinqüenta léguas.

- Sr. doutor, disse o enfermo, a minha vida é um continuo lidar de sofrimentos. Estou com este mal vai fazer cinco anos no São João, por sinal que me veio com uma grande dor do estômbago. Vezes há que não posso engolir nada, sem, beber muitos golos de água, de maneira que me encharco todo e fico que mal me mexo de um lugar para outro.

- E a dor, perguntou Cirino, ainda a sentes?

- Toda a vida, o que me aflege mais é que há comidas então que não me passam a goela...É um fastio dos meus pecados, boto uns pedacinhos no bucho e parece-me que dentro tenho um bolo que me está a subir e descer pela garganta.”

Nós que lidamos com a Doença de Chagas sabemos que estas queixas são, praticamente, as mesmas apresentadas pelos doentes portadores de megaesôfago chagásico.

Meu colega e amigo Dr. Ulisses Meneghelli, Prof. da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto foi quem, pela primeira vez, chamou a atenção para esta curiosidade, em publicação na Revista Goiana de Medicina em 1992.

Este diálogo, ao lado de mostrar a sensibilidade do autor em captar detalhes que poderiam passar despercebidos ou pouco valorizados para um leigo em medicina, como ele era, deixou a nossa comunidade científica ligada aos estudos da doença de Chagas, absolutamente perplexa.

Sabem por que? A doença de Chagas foi descoberta, cientificamente, em 1909 e este diálogo foi perpetrado em 1867; o mais interessante: hoje sabemos que a região onde Taunay encontrou este personagem do seu romance, era zona endêmica da Doença de Chagas.

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