ROSARITA FLEURY – CONTINUA VIVA NOS SONHOS QUE CRIOU PARA SEUS PERSONAGENS
Goiânia, porque não dizer
o estado de Goiás, está vivendo uma semana que ficará inolvidável na sua
memória cultural; foram relançados na noite de ontem, sob o patrocínio do
governo do estado, dois extraordinários romances da falecida e sempre presente
escritora Rosarita Fleury: Elos da Mesma Corrente e Sombras em Marcha.
Tive a ventura de
conhecer pessoalmente a Da. Rosarita! Apesar de haver certa aproximação
familiar (minha mulher é irmã do esposo de Elizabeth Fleury, sua filha), só
tive oportunidade de visitá-la em sua residência uma única vez, nos idos de
1968. Naquele dia ela dedicou-me o seu livro “Elos da mesma corrente”;
lembro-me que conversamos sobre suas lides literárias; mais ouvia suas
histórias do que propriamente falava das minhas.
Quando a instiguei a fazer comparação entre o seu estilo literário e o
da escritora inglesa Jane Austen, principalmente no livro que hoje é
considerado um dos maiores clássicos da literatura inglesa “Orgulho e
Preconceito”, Da. Rosarita não fugiu do assunto, porém se recusou a aceitar a
semelhança.
Do que me lembro
daquela discussão (a memória começa a trair-me, afinal já se passaram mais de
40 anos!), lembro-me que falamos, dentre tantos outros assuntos, sobre a coincidência de temas (neste seu romance Jane descreve a sociedade rural
inglesa, entrelaçando personagens e sentimentos); Da. Rosarita, com a modéstia
que lhe era peculiar, não aceitou a comparação; não tenho a argúcia de Austen,
disse ela, tentando encerrar este assunto.
Insisti: - Quem irá
definir se a senhora tem argúcia serão seus leitores de agora e os do futuro;
por outro lado a senhora descreve neste seu livro o ambiente rural de Goiás e
por extensão do Brasil, com maestria incomum, segurando o leitor do começo ao
final do livro, com a expectativa de se inteirar do seu epílogo.
Embora não seja a proposição
deste texto, gostaria de opinar nesta “fictícia discussão”; Da. Rosarita não
disse, porém, pela sua inteligência e perspicácia, sei que ela poderia ainda
acrescentar como um dos diferenciais entre o seu estilo e o de Jane Austen: ela,
Da Rosarita, não tratava os seus personagens com ironia, como fazia Austen.
Ficou-me, daquela
visita, a imagem de uma pessoa extremamente modesta, de prosa agradável e de
espírito superior, com a capacidade de deixar no interlocutor a sensação de que
tinha muitas mais coisas para dizer.
Tenho observado na
imprensa várias manifestações a respeito deste acontecimento (relançamento dos
livros), principalmente alusões à premiação Julia Lopes de Almeida que foi
concedida ao primeiro deles (Elos da mesma corrente) pela Academia Brasileira
de Letras em 1959.
Como já havia planejado,
voltei a ler os dois livros, o de Rosarita e o de Jane Austen; embora a época e
os ambientes das narrativas sejam, como se poderia imaginar, diferentes (a zona
rural da Inglaterra no inicio do século 19 e zona rural de Goiás em meados do
século 20), convido os leitores a fazerem este exercício de comparação,
verificarão “elos da mesma corrente” que os interligam.
Não faz muito tempo
tive a oportunidade de discutir com a escritora Elizabeth Fleury, por sinal
membro da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, alguns aspectos da vida
de Dona Rosarita, principalmente no que concerne ao este seu premiado livro
“Elos da Mesma Corrente”.
Procurava, naquela
oportunidade, descobrir algumas curiosidades a respeito da produção daquele
livro, hoje considerado um dos clássicos da literatura goiana.
A maioria das
informações que serão aqui divulgadas é inédita, portanto, sinto emoção e
alegria por trazer ao conhecimento dos leitores alguns acontecimentos da vida
desta grande escritora goiana, orgulhosamente, para nós, pertencente aos
quadros da Academia Goiana de Letras.
Conta-me Elizabeth
que a mãe gostava de dizer que desde criança sempre sonhou escrever um romance,
por ouvir relatos de tias e avós a respeito de acontecimentos em fazendas de
escravos; sua mente de criança registrou as estórias fantásticas contadas pelo
negro Salu, escravo alforriado pelo seu avô.
Uma curiosidade
interessante: seu primeiro projeto de livro, na realidade, foi “Sombras em
Marchas”, porém, teve que interrompê-lo pela impossibilidade de viajar ao
estado de Mato Grosso, palco da trama, a fim de pesquisar; aliás, diga-se de
passagem, que em 1970 ela conseguiu fazer a viagem e então completou aquele
livro, lançando-o em 1985.
Diante do impasse
foi encorajada pelo esposo a escrever o que seria a segunda parte daquele
primeiro projeto, uma vez que a trama deste, “Elos da mesma corrente”, se
desenvolve exclusivamente em Vila Boa de Goiás, facilitando, portanto, a sua
execução, até porque ela, no seu intimo, já o havia resenhado.
Quando começou a escrever o romance Da. Rosarita estava com menos de
quarenta anos de idade, morava em Araguari, onde o esposo era engenheiro da
estrada de ferro Goiás; por se sentir muito sozinha (conta-me Elizabeth)
resolveu dar asas à imaginação e iniciou os originais do livro; utilizava-se de
uma maquina Olivetti e trabalhava no
período da tarde (quando as crianças estavam na escola) e de madrugada.
Ela afirmava, como
sempre acontece com o escritor ficcionista, que os fatos e personagens do
romance, não guardavam nenhuma semelhança com pessoas vivas ou mortas, porém,
muitos parentes que leram o livro na época do seu lançamento se achavam
retratados no mesmo.
A este respeito o autor do livro “Casas de Família”, Denis Tillinac,
escreveu na página de rosto: “A família Aubac não existe. Nem os ambientes, os
personagens e as situações evocadas neste romance. Nada, entretanto, foi
inventado...”.
De fato, conhecendo
(como conhece sua filha) os fatos reais, podem-se verificar algumas
coincidências: a fazenda Santa Tereza, que pertenceu aos avós da autora, local
onde ela passava algumas férias escolares, ganhou, no romance, o nome de Santa
Lúcia, aliás, é necessário acrescentar que o Dr. Gerônimo, seu esposo e primo,
por ser 13 anos mais velho, lembrava-se de muitos detalhes que ela olvidava,
inclusive, reconstruiu, para ela, a planta da fazenda, facilitando, portanto, que
os personagens “circulassem” pelas veredas com maior facilidade.
Tenho minhas dúvidas, porém; acho que o personagem “nêgo José” do
romance poderia ser superponível ao antigo nego Salú, escravo do avô da autora;
bem, de toda maneira, pode-se parafrasear Oscar Wilde: “A arte imita a vida”.
Depois de escrito o romance (três anos de trabalho intelectual), a
grande dificuldade foi a impressão; cinco anos de lutas e muitas
contrariedades, pois a mesma foi feita na oficina gráfica da Estrada de Ferro
Goiás, no sistema de linotipia (linha por linha), com infindáveis idas e vindas
entre Araguari e Goiânia, onde ela passou a residir a partir de 1954, dos
“bonecos” dos capítulos.
Finalmente, em 1958, cansados, ela e o esposo, de corrigirem os
originais, resolveram “fechar os olhos” para os erros e, em junho de 1958, o
livro foi lançado no Bazar Oió, com grande expectativa do meio cultural.
Da. Rosarita, em uma oportunidade, voltou à antiga fazenda Santa Tereza,
ficou decepcionada com o que viu; até o rio Fartura onde, provavelmente, ela
mergulhou quando criança, já estava quase seco...
No entanto, se naquele dia ela fosse escrever novamente o romance, como
grande ficcionista que foi, tenho certeza que ela recriaria todas as fantasias,
reconstruiria a casa da fazenda, faria a água voltar a correr no rio Fartura e
voltaria a embalar os sonhos dos seus leitores!
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