MINHAS CRÔNICAS

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

A NEUROCIÊNCIA E A LITERATURA



         



                        Um paciente que não via há bastante tempo, voltou ao meu consultório; fizemos festa pelo reencontro, pareceu-me mais envelhecido, porém mantinha a mesma capacidade de diálogo de antigamente, sua memória continuava, como era antes, atenta aos detalhes, com lembrança de alguns acontecimentos os quais eu não mais recordava (estavam arquivados no meu inconsciente, segundo Freud).
                        Falamos, como se poderia esperar, da sua cirurgia (felizmente curativa) a que o submeti há mais de 20 anos; falamos da família, dos filhos e netos e finalmente entramos no assunto da atual consulta: - Estou aqui porque há algo que me tem incomodado durante todos estes anos; embora o senhor tenha retirado o meu ânus para curar o câncer que ali estava localizado, continuo com a sensação de que o mesmo está no mesmo lugar!
                        Dei-lhe o aconselhamento psicológico que julguei pudesse ajudá-lo, porém, fiquei com a sensação de que não consegui convencê-lo; marquei um retorno para dali a uma semana (aproveitaria para dar uma revisada no assunto); despedimos e voltou à minha lembrança alguns casos semelhantes a este que tive a oportunidade de ver na minha vida de cirurgião.
                        Aqui na biblioteca da Santa Tereza, na procura de bibliografia a respeito do assunto, descobri a história do médico Silas Weir Mitchel (1829/1914), conhecido como o “médico de nervos” do Hospital Lane. em Philadélphia-USA; depois de ter participado, como médico, da guerra civil americana, tornou-se famoso por algumas descobertas na área da medicina e posteriormente como escritor e poeta.
                        Durante sua labuta nas enfermarias dos hospitais que atendiam os soldados feridos, Mitchel teve oportunidade de examinar uma grande quantidade de pacientes que sofreram amputação de membros, principalmente das pernas; atento observador, uma das queixas destes pacientes chamou-lhe a atenção: muitos deles referiam que apesar de saberem que estavam sem as pernas, tinham a nítida sensação de que as mesmas continuavam no mesmo lugar, alguns referiam, inclusive, dores nas pernas que não mais existiam; a este fenômeno ele denominou de “membro fantasma”.
                        Após o término da guerra, estas observações de Mitchel caíram no esquecimento, principalmente porque a medicina não tinha uma explicação lógica e material para o fenômeno e principalmente porque ele mudou o rumo da sua vida; abandonou a medicina, tornando-se um escritor de romances e poesias, muito lido na época (década de 1860), principalmente após a publicação de seu conto “O Caso de George Dedlow” onde ele narra na 1ª. pessoa a história de um soldado que perdeu as pernas e os braços em uma batalha e passa a sentir os “membros fantasmas”.
                        Somente no final do século 19, William James, publicou o artigo (clássico na medicina) ”A conscientização da perda do membro” retirando o assunto da esfera sobrenatural; foi preciso outra guerra (2ª. guerra mundial) para que o neurologista J. Babinski, examinando vários soldados amputados, descrevesse sua versão (hoje definitiva) sobre a “sensação física dos membros fantasmas”.                   
                          Envolvido com estas pesquisas sobre o assunto, lembrei-me de dois acontecimentos literários que voltei a consultar, um deles referente ao poeta norte-americano Walt Withman (1819/1892) e o outro ao escritor, também norte-americano, Herman Melville (1819/1891), cujo romance “Moby-Dick” acabei lendo recentemente, graças à recomendação do meu amigo e confrade da Academia Goiana de Letras, Dr. Eurico Barbosa.
                        Withman foi, e alguns acham que ainda é, o maior poeta norte-americano; é considerado o “pai do verso livre”, tendo escrito apenas um livro “Leaves of Grass- Folhas de relva”, com muitas reedições durante sua vida, quando ele acrescentava, sempre, mais e mais poemas; no formidável filme “Sociedade dos poetas mortos”, aparece alguns personagens citando seus poemas.
                        Pois bem, Withman enfrentou os conceitos vigentes da época (Descartes afirmava que o cérebro era completamente separado do corpo) ao proclamar a fusão da alma com o corpo, alma e mente são apenas nomes diferentes para as mesmas coisas e são inseparáveis um do outro, dizia ele nos seus versos (naquela época os cientistas acreditavam que nossos sentimentos originavam no cérebro e o corpo era apenas matéria inerte).
                        Hoje a neurociência dá razão a Withman ao confirmar que as emoções podem ser geradas no corpo, antes do cérebro - “Nossa matéria está emaranhada com o espírito, quando você corta o corpo, você também corta o alma, dizia ele”; analisando o fenômeno do membro fantasma, segundo Withman, podemos concluir: A mente continua pensando na parte da perna que o corpo perdeu, preserva para o homem a consciência do que não mais existe. 
                        Com respeito à novela Moby-Dick, escrita 12 anos antes do cirurgião Mitchel falar sobre o assunto, o autor Melville descreve uma cena inacreditável: O velho marinheiro Ahab perdeu uma perna (comida pela baleia) e vai ao carpinteiro para encomendar uma perna de marfim. Ao descrever como desejava o artefato ele diz ao carpinteiro – Continuo sentindo minha antiga perna, invisível e ininterrupta, como se fosse um fantasma, portanto, faça uma perna para meus olhos e a outra, a fantasma, continuará sendo sentida pela minha alma.
                        O paciente voltou ao consultório, como combinado; perguntou-me: Você tem a resposta?
Simplesmente recitei-lhe estes versos do poema “Folhas de relva” de Walt Whitman:
                        Uma criança disse: - O que é a relva? [Trazendo um tufo em suas mãos];
                        O que dizer a ela?... Sei tanto quanto ela o que é a relva.





 

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