VILA DA SAUDADE
Muitos
anos depois, já com os cabelos embranquecidos pela neve do tempo, o “menino”
voltou à Vila da Saudade; chegou com a predisposição de reencontrar a sua alma
nas reentrâncias do passado do qual ele participou como sujeito de algumas ações.
Sentou-se na pedra que teimava
em permanecer no mesmo lugar e de onde costumava mergulhar nas águas barrentas
e velozes do ribeirão; olhou para o lado da antiga casa que continuava de pé e
sentiu, estranhamente, que sua vista procurava visualizar algo que não mais
existia. Uma lágrima rolou pelo seu rosto, com suavidade, em direção da
comissura labial, esquentando-lhe o rosto e salgando-lhe a boca, outra e mais
outra acompanharam o percurso daquela primeira.
Um choro convulsivo sequenciou
aquela tímida manifestação de emoção. Fechou os olhos e, em lapsos de tempo,
uma miríade de acontecimentos desfilou, repentinamente, pelo seu pensamento;
parecia, pela facilidade com que ele encontrava para programar aqueles reencontros,
que os fatos e os personagens estavam acomodados em uma prateleira com as
respectivas catalogações; bastava, tão somente, identificar o que desejava ver
e com quem desejava conversar. Estava ao alcance das mãos.
Caminhou solitário pelas ruas,
tentando identificar, entre as pessoas que caminhavam, pelo menos um rosto,
qualquer rosto, que lhe trouxesse de volta o passado. Viu, assentado em um toco
de madeira localizado na calçada de uma casa, uma figura humana que lhe causou
forte impressão. Era muito idoso, seu rosto, seus cabelos e principalmente o
seu olhar perdido no horizonte denunciavam o seu grupo etário.
O “menino” se aproximou
com cautela; tentou identificá-lo, porém, não foi capaz. Não resistiu à
tentação, assentou-se no chão, ao seu lado; só agora verificou que o homem
idoso nem percebera a sua presença; parece que dormia, tocou sua mão que estava
pendente, aparentemente procurando o cão que estava deitado ao seu lado.
Tocou-a com cuidado, preocupado
em não assustá-lo; o homem idoso movimentou a cabeça e só agora o “menino”
percebeu que ele não estava dormindo.
- Quem está aqui? Perguntou o ancião,com voz compassada e
sem força.
O “menino” ainda tentou se identificar, porém,
verificou que seria inútil.
- Sou um
antigo morador da Vila da Saudade, gostaria de conversar sobre o nosso passado.
- Qual passado
a que você está se referindo; na minha idade esta expressão não tem muito
sentido.
- Quando falo
em passado estou querendo dizer que gostaria de conversar com o senhor sobre a
nossa vida passada, sobre a vida dos antigos habitantes da Vila da Saudade.
- Não me
provoques, não me peça para voltar ao passado; falemos do presente, mesmo
porque meu tempo hábil para falar do
futuro já esgotou. O meu presente ainda é vida, que é o que vale. Para dizer a
verdade, não estou seguro se estou realmente vivendo, pois, pelo que entendo,
viver não é só deixar passar as horas, desperdiçando o tempo, sem contar com um
dos sentidos mais importantes da comunicação. A minha hora veio, passou e não
volta mais!
Aconselham-me a descansar; não passo
mal, apenas estou velho, isto é, deixei de ser moço, ultrapassei a transição;
veio o crepúsculo, a luz diminuiu e desfez o contorno das coisas reais que um
dia gostei de ver. Meu entendimento confunde luz com penumbra, tudo é prenúncio
de noite; a deficiência chegou, sem antes passar pelo estágio de piora,
instalou de maneira brusca e definitiva, negativando o otimismo. Parece que as
minhas horas da tarde chegaram sem convite e até sem aviso; parece, pela óptica
do meu amor próprio, que chegaram cedo.
- O senhor se
sente aborrecido com as circunstâncias da sua vida?
- Não, nunca me sinto aborrecido,
tenho, como ultima instância, a minha própria companhia; quanto às
circunstâncias, vivo com as minhas. Não procuro, nem ao menos contorná-las,
vivi meu tempo, assim como os habitantes da Vila da Saudade viveram a deles.
Não tente trazê-los de volta, não invoque as suas presenças, deixe-os na paz
que merecem.
Tudo o que eu falar não mais
corresponderá à realidade daqueles dias, não posso falar por você, pois nada
sei a seu respeito, nem ao menos a sua idade.
Quanto
você está dizendo? Feliz a idade sua,
conheci-a, recordo muito bem, foi antes da presença desta neblina; conheci-a
antes disto, quando pelas manhãs, independente do local onde morava, todas as
neblinas, de todos os dias, eram azuis, havia, ainda, a bruma que envolvia todo
o horizonte, por detrás da névoa havia, sempre, o brilho do sol; época ditosa
da infância.
Depois... depois, aquele círculo
divertido e principalmente feliz, se converteu, para nós que deixávamos de ser
crianças, em um caminho que, progressivamente, começou a se estreitar,
até alcançar um desfiladeiro, que é onde me encontro.
Este caminho você percorrerá,
plante flores no seu itinerário, o perfume que emanará deste canteiro, servirá
como guia e encantamento para seus dias de possível angústia. Quando você
encontrar espinhos, sublime-os e repita para você mesmo:
- Aqui deveria haver flores,
afaste os espinhos e colha as flores!
Perdoe-me, mas vou ter que me
recolher, a disciplina me obriga a permanecer aqui no sol apenas o tempo
estipulado para minha segurança; amanhã, talvez, estarei aqui de volta, se isto
acontecer e se você se dispuser de tempo e paciência, voltaremos a conversar
mais um pouco.
Lembre-se, o tempo que passou não
volta mais!
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