MINHAS CRÔNICAS

domingo, 16 de fevereiro de 2014

VILA DA SAUDADE

Muitos anos depois, já com os cabelos embranquecidos pela neve do tempo, o “menino” voltou à Vila da Saudade; chegou com a predisposição de reencontrar a sua alma nas reentrâncias do passado do qual ele participou como sujeito de algumas ações.
               Sentou-se na pedra que teimava em permanecer no mesmo lugar e de onde costumava mergulhar nas águas barrentas e velozes do ribeirão; olhou para o lado da antiga casa que continuava de pé e sentiu, estranhamente, que sua vista procurava visualizar algo que não mais existia. Uma lágrima rolou pelo seu rosto, com suavidade, em direção da comissura labial, esquentando-lhe o rosto e salgando-lhe a boca, outra e mais outra acompanharam o percurso daquela primeira.
                Um choro convulsivo sequenciou aquela tímida manifestação de emoção. Fechou os olhos e, em lapsos de tempo, uma miríade de acontecimentos desfilou, repentinamente, pelo seu pensamento; parecia, pela facilidade com que ele encontrava para programar aqueles reencontros, que os fatos e os personagens estavam acomodados em uma prateleira com as respectivas catalogações; bastava, tão somente, identificar o que desejava ver e com quem desejava conversar. Estava ao alcance das mãos.
               Caminhou solitário pelas ruas, tentando identificar, entre as pessoas que caminhavam, pelo menos um rosto, qualquer rosto, que lhe trouxesse de volta o passado. Viu, assentado em um toco de madeira localizado na calçada de uma casa, uma figura humana que lhe causou forte impressão. Era muito idoso, seu rosto, seus cabelos e principalmente o seu olhar perdido no horizonte denunciavam o seu grupo etário.
               O “menino” se aproximou com cautela; tentou identificá-lo, porém, não foi capaz. Não resistiu à tentação, assentou-se no chão, ao seu lado; só agora verificou que o homem idoso nem percebera a sua presença; parece que dormia, tocou sua mão que estava pendente, aparentemente procurando o cão que estava deitado ao seu lado.
               Tocou-a com cuidado, preocupado em não assustá-lo; o homem idoso movimentou a cabeça e só agora o “menino” percebeu que ele não estava dormindo.
                           - Quem está aqui? Perguntou o ancião,com voz compassada e sem força.
                           O “menino” ainda tentou se identificar, porém, verificou que seria inútil.
               - Sou um antigo morador da Vila da Saudade, gostaria de conversar sobre o nosso passado.
              - Qual passado a que você está se referindo; na minha idade esta expressão não tem muito sentido.
              - Quando falo em passado estou querendo dizer que gostaria de conversar com o senhor sobre a nossa vida passada, sobre a vida dos antigos habitantes da Vila da Saudade.
                - Não me provoques, não me peça para voltar ao passado; falemos do presente, mesmo porque meu  tempo hábil para falar do futuro já esgotou. O meu presente ainda é vida, que é o que vale. Para dizer a verdade, não estou seguro se estou realmente vivendo, pois, pelo que entendo, viver não é só deixar passar as horas, desperdiçando o tempo, sem contar com um dos sentidos mais importantes da comunicação. A minha hora veio, passou e não volta mais!
                 Aconselham-me a descansar; não passo mal, apenas estou velho, isto é, deixei de ser moço, ultrapassei a transição; veio o crepúsculo, a luz diminuiu e desfez o contorno das coisas reais que um dia gostei de ver. Meu entendimento confunde luz com penumbra, tudo é prenúncio de noite; a deficiência chegou, sem antes passar pelo estágio de piora, instalou de maneira brusca e definitiva, negativando o otimismo. Parece que as minhas horas da tarde chegaram sem convite e até sem aviso; parece, pela óptica do meu amor próprio, que chegaram cedo.
              - O senhor se sente aborrecido com as circunstâncias da sua vida?
              - Não, nunca me sinto aborrecido, tenho, como ultima instância, a minha própria companhia; quanto às circunstâncias, vivo com as minhas. Não procuro, nem ao menos contorná-las, vivi meu tempo, assim como os habitantes da Vila da Saudade viveram a deles. Não tente trazê-los de volta, não invoque as suas presenças, deixe-os na paz que merecem.
               Tudo o que eu falar não mais corresponderá à realidade daqueles dias, não posso falar por você, pois nada sei a seu respeito, nem ao menos a sua idade.
               Quanto você está dizendo? Feliz a idade sua, conheci-a, recordo muito bem, foi antes da presença desta neblina; conheci-a antes disto, quando pelas manhãs, independente do local onde morava, todas as neblinas, de todos os dias, eram azuis, havia, ainda, a bruma que envolvia todo o horizonte, por detrás da névoa havia, sempre, o brilho do sol; época ditosa da infância.
               Depois... depois, aquele círculo divertido e principalmente feliz, se converteu, para nós que deixávamos de ser crianças, em um caminho que, progressivamente, começou a se estreitar, até alcançar um desfiladeiro, que é onde me encontro.
                Este caminho você percorrerá, plante flores no seu itinerário, o perfume que emanará deste canteiro, servirá como guia e encantamento para seus dias de possível angústia. Quando você encontrar espinhos, sublime-os e repita para você mesmo:
             - Aqui deveria haver flores, afaste os espinhos e colha as flores!
              Perdoe-me, mas vou ter que me recolher, a disciplina me obriga a permanecer aqui no sol apenas o tempo estipulado para minha segurança; amanhã, talvez, estarei aqui de volta, se isto acontecer e se você se dispuser de tempo e paciência, voltaremos a conversar mais um pouco.
              Lembre-se, o tempo que passou não volta mais!







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