MINHAS CRÔNICAS

sábado, 15 de fevereiro de 2014

FREUD E CERVANTES, ONDE SE ENCONTRARAM?



                   Sabe-se que Freud foi, desde a infância, um leitor dos clássicos da literatura; quando digo infância não estou exagerando pois, aos nove anos de idade, ele ingressou no “Gymnasium” um dos mais famosos colégios de Viena, cujo currículo tinha uma característica que o diferenciava dos demais congêneres: - respirava-se, nas suas salas de aulas, a atmosfera humanística.
                   Além de serem ministradas as matérias ensinadas nas outras escolas, havia no currículo seis anos para o estudo do grego, oito anos para o latim, além de estudos específicos sobre a história antiga e a literatura, tanta a clássica como a contemporânea. Freud foi o primeiro aluno da sua classe durante todo o curso!
                   Este seu interesse, precoce, pela literatura, facilitou-lhe, de alguma maneira, sua incursão no mundo da mente humana; selecionei um episódio, dos muitos a que tive acesso, para confirmar esta minha assertiva: Sua paixão pela obra de Cervantes, especialmente a clássica “Dom Quixote de La Mancha”, a qual ele leu várias vezes, tendo, inclusive, aprendido o idioma  espanhol para entender melhor o “espírito” da obra.
                   O episódio a que desejo me referir encontrei-o na carta que Freud enviou a sua noiva Martha (fevereiro de 1884), onde ele tenta explicar-lhe seu relacionamento com um jovem de nome Silberstein, seu grande amigo de juventude; lá pelas tantas, ele diz a Martha que os dois se apelidaram, mutuamente, de Berganza e Cipión, nomes tirados, segundo ele,  da obra de Cervantes, quando ambos estudavam espanhol.
         A escritora Marialzira Perestrello, no seu livro “A formação cultural de Freud, 1996”, despertou-me a curiosidade a respeito do assunto ao afirmar que estes nomes foram dados por Cervantes a dois cães que conversavam entre si, no conto “Coloquio de los Perros”.
                   Encontrei, como se encontra um tesouro, o livro “Cervantes - Novelas Ejemplares, Argentina, 1962”, em um sebo sediado na internet; dos seis contos que o compõem dois fazem parte do episódio a que me referi acima: El Casamiento Engañoso e El Coloquio de los Perros; conto o resumo de ambos e espero que meus leitores se surpreendam com algumas conclusões a que chegaram alguns dos biógrafos de Freud.
                   No primeiro conto (Casamiento Engañoso) o narrador (Peralta) conta ao interlocutor (Sr. Alferes), uma história inacreditável: quando estava internado em um hospital em Valadolid, Espanha, dois cachorros (Berganza e Cipion) que estavam deitados debaixo da sua cama, conversavam entre si durante toda a noite.
                   Claro que o Sr. Alferes  não acreditou na história, porém Peralta diz ter provas do que estava dizendo: ”tomei nota de todo o diálogo”  e, ao dizer isto “saco um cartapacio y lo puso en las manos del licenciado – pegou um maço de papel e colocou nas mãos do licenciado” e este leu o que corresponde ao segundo conto (El colóquio de los perros).
                   Este “diálogo” dos cães vem sendo discutido por muitos que se interessam pela obra de Freud e principalmente procuram entender o “leit motiv” para ele enveredar para a nova ciência que ele estava criando – a psicanálise.
                   Ao se ler este conto de Cervantes, que viveu de 1547 a 1616, somos obrigados a intuir que Freud, ao iniciar a sua técnica de “ouvir o paciente no divã do seu consultório”, deve ter se lembrado deste  colóquio descrito de maneira magistral por Cervantes; é interessante observar que um dos cães da história (Berganza) conta sua vida para o outro (Cipion) e este ouve com paciência, com poucas manifestações ou interrupções, como se fora um analista.
                   Quase que no inicio do colóquio Cipion diz a Berganza : “ Fale até que amanheça que eu te escutarei de muita boa vontade, sem te interromper a não ser que sinta necessidade de fazê-lo”, ao que Berganza respondeu: “Pois se posso falar com esta segurança, escuta-me e se você se cansar de ouvir o que estou dizendo, ou me repreenda ou  mande que eu me cale”.
                   Em um determinado trecho da fala de Berganza este começa a divagar sobre vários assuntos e é então chamado à atenção pelo Cipion “Basta Berganza, volte para a senda da história e caminhe por ai”; de vez em quando a narrativa de Berganza ficava monótona e repetitiva, então Cipion chamava-lhe a atenção “Basta, vá em frente, Berganza, porque já entendi”.
                   Um analista ficaria feliz de ouvir este trecho da fala de Berganza:  “Sempre quis falar, para dizer as coisas  que estavam depositadas na minha memória e por estarem ali há muito tempo, acabava as esquecendo. Agora que estou com este don divino de poder falar, vou aproveitar o mais que puder, falarei de tudo de que me recordo, mesmo que seja um pouco confuso”
                   Conte-me, diz Cipion  “tudo o que recordas, procure não pular trechos, na verdade, conte o que quiseres e como quiseres” ao que respondeu Berganza “ agora me vem à memória o que haveria de ter lhe dito no principio da nossa discussão, não só fico maravilhado com o que falo, como também fico espantado pelo que desejo falar”.

                  A pessoa pode nascer gênio, porém, a vida, os estudos e a cultura, moldam sua trajetória, acho que posso, modestamente, concordar com o que disse a Profa. Marialzira Perestrello,  autora do livro que citei acima: Freud, com sua intuição, seguiu mais os escritores do que a medicina organicista. Cervantes foi-lhe mais útil que a anatomia cerebral.

1 Comentários:

  • Às 20 de fevereiro de 2019 às 04:18 , Blogger Luiz Carlos Vaz disse...

    Hélio
    tive a grata satisfação de me encontrar com o Diálogo de los Perros há algum tempo. Esta semana comprei mais um exemplar desse livro para presentear um amigo, psicanalista, e procurei referências na internet sobre um fato que ouvi em uma palestra (que me levou a conhecer a obra) de que Freud teria trocado correspondência com um amigo e estes se alcunhavam pelo nome dos cães de Cervantes. Acabei, com prazer, encontrando esse teu texto. Saber alguma coisa sobre isso?
    Nesse tempo em que os blogs saíram de moda, tive a grata satisfação de encontrar esse teu. O meu já quase abandonei...
    Um abraço
    Vaz
    editor do blog
    http://velhaguardacarloskluwe.blogspot.com/

     

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