COMO O VISCONDE DE TAUNAY “DESCOBRIU” OS PERSONAGENS DO SEU LIVRO “INOCÊNCIA”.
Visconde de Taunay ou Alfredo d’Escragnolle
Taunay (1842-1899) foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira de
Letras; nasceu no Rio de Janeiro, tendo publicado várias dezenas de livros,
além de incontável numero de artigos em jornais e revistas da época, versando
sobre reminiscências, crítica literária e artística, biografias e música; foi
político atuante (deputado por Goiás e depois senador do Império) e militar
(participou na linha de frente da Guerra contra o Paraguai).
Após a morte de Dom
Pedro II, a quem dedicava a mais absoluta veneração, passou a viver, quase que
exclusivamente, para os trabalhos literários, tendo escrito, nos últimos anos
de vida, dois romances que passaram incólumes pela prova do tempo: “A Retirada
da Laguna” e “Inocência”, este último com mais de 35 edições.
A inspiração para
ele escrever “Inocência” vamos encontrar no seu livro póstumo (Visões do
Sertão, 1928), onde narra sua volta para
o Rio de Janeiro em 1867, após a retirada da Laguna, atravessando, neste
percurso, os Estados de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo, em lombo
de cavalos.
Leiam comigo alguns
excertos do que ele escreveu naquele livro:
“...Nesse dia 1 de
julho de 1867, à margem do rio Sucuriú, vi um anão mudo, gracioso e ágil nos
movimentos, que me serviu de personagem (Tyco) no meu romance “Inocência”,
inclusive seu chapéu de palha furado...”.
“... Foi na “fazenda
do Vau”, a mais importante da região. A dona, uma desconsolada viúva, anêmica e
parecendo desgostosa com a vida, não nos acolheu mal; tinha uns filhos, o mais
velho, devia em breve casar com uma prima, provavelmente, também caquética como
o noivo. Foi daí que tirei o assunto para o romance “Inocência”, cuja heroína
eu iria encontrar alguns passos além...Aliás, nesse sertão, próximo de Santana
do Paranayba, foi que colhi os tipos mais salientes do livro. Na casa do Sr.
Manoel Coelho achei o eterno doente das solidões, queixando-se da falta de
médicos, agarrando-se a curandeiros. Foi ele o “pai” de Inocência, o
Pereira...”
“...Numa vivenda,
bem à beira do caminho, morada de um tal João Garcia, foi que vi o tipo que se
transformou em Inocência. Estava eu com muita fome, parei e pela porta
escancarada, vi um homem a uma mesa, devorando um prato que me pareceu
delicioso.
- O Sr. não
convida alguém varado de fome? Com todo prazer é só desapear e vir comer.
Um gostoso
refogado de carne de porco com cebolas e farinha de milho; repeti
abundantemente.
Após saciar minha fome o homem
interpelou-me:
- Por que o
patrício não teve escrúpulo de sentar-se à minha mesa?
- Por que deveria?
Perguntei, sem entender.
- É, replicou-me a
custo, aqui é casa de morfético; levei susto, porém, como recuar? Dali a pouco
entrava na sala uma moça na primeira flor dos anos, tão resplandecente de
beleza, que fiquei de boca aberta. -
Então, acha minha neta Jacinta bonita? A pobrezinha da inocente já esta
com o mal; Jacinta tornou-se a Inocência; não fiz desta, no entanto, uma infeliz morfética. Do avô
tirei o personagem “leproso”, o Mineiro, e lhe dei o nome verídico, Sr.
Pereira...”.
Para patentear,
mais uma vez, a capacidade de observação do criador de Inocência, vale destacar o diálogo entre um dos seus personagens, o
capataz da “fazenda do Vau”, chamado senhor Pereira, que no romance tornou-se,
como dissemos acima, o pai da personagem principal do romance, a Inocência, com
o curandeiro Cirino:
“Quem se queixava
de engasgues era o capataz de uma fazenda chamada “ do Vau”, distante umas boas cinquenta
léguas.
- Sr. doutor,
disse o enfermo, a minha vida é um continuo lidar de sofrimentos. Estou com
este mal vai fazer cinco anos no São João, por sinal que me veio com uma grande
dor do estômbago. Vezes há que não
posso engolir nada, sem, beber muitos golos de água, de maneira que me encharco
todo e fico que mal me mexo de um lugar para outro.
- E a dor,
perguntou Cirino, ainda a sentes?
- Toda a vida, o
que me aflege mais é que há comidas então que não me passam a goela...É um
fastio dos meus pecados, boto uns pedacinhos no bucho e parece-me que dentro
tenho um bolo que me está a subir e descer pela garganta.”
Nós que lidamos
com a Doença de Chagas sabemos que estas queixas são, praticamente, as mesmas
apresentadas pelos doentes portadores de megaesôfago chagásico.
Meu colega e
amigo, Dr. Ulisses Meneghelli, Prof. da Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão Preto, foi quem, pela
primeira vez, chamou a atenção para esta curiosidade, em publicação na Revista
Goiana de Medicina em 1992.
Este diálogo,
ao lado de mostrar a sensibilidade do autor de “Inocência” em captar detalhes
que poderiam passar despercebidos ou pouco valorizados para um leigo em
medicina, como ele era, deixou a nossa comunidade científica ligada aos estudos
da doença de Chagas, absolutamente perplexa.
Sabem por quê?
A doença de Chagas foi descoberta, cientificamente, em 1909 e este diálogo foi
perpetrado em 1867; o mais interessante: hoje sabemos que a região onde Taunay
encontrou este personagem do seu romance, era zona endêmica da Doença de
Chagas.
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