MINHAS CRÔNICAS

sábado, 10 de outubro de 2009

MUTIRÃO, MUCHIRÃO, PUCHIRÃO E TRAIÇÃO (treição)

(Ajuntamento de trabalhadores para limpar uma roça, plantar, derrubar o mato, enfim, uma ajuda completa a um amigo necessitado de mão de obra; depois vem a compensação: o pagode. (Bariani Ortêncio, Dicionário do Brasil Central- Gráfica Diarte, Goiânia,1983).




Lembro, até com certos detalhes, de alguns mutirões que tive a oportunidade de ver no meu tempo de criança.
Meu tio, irmão de meu pai, possuía um pequeno sítio nas imediações do lugarejo onde vivíamos, localizado nas vizinhanças do rio Muzambo e do trajeto da Rede Mineira de Viação, no sul de Minas Gerais; costumava, juntamente com meus irmãos, visitá-lo com alguma frequência, e até, no período de férias escolares, passar alguns dias por aquelas paragens, principalmente percorrendo as misteriosas brenhas das imediações da sede.
Dentre todas as atividades da roça, uma chamava a nossa atenção pela grande movimentação de pessoas e, principalmente, pelos preparativos que antecediam o acontecimento; era o chamado mutirão.
Tio Zé Francisco, semelhantemente aos seus vizinhos, possuía algumas cabeças de gado, porcos, além de cultivar a terra para plantações de arroz, feijão e, principalmente, milho; como suas condições financeiras não lhe permitiam contratar empregados utilizava, com muita freqüência, o chamado mutirão, expediente que aliava a mão de obra dos vizinhos à festa proporcionada pelo ajuntamento de grande número de conhecidos em ambiente de alegria e franca camaradagem.
Algumas vezes, tio Zé era surpreendido: sem que ele soubesse, seus vizinhos, geralmente comandados por um amigo mais “chegado”, faziam os preparativos em surdina e, no dia aprazado, chegavam de surpresa para o mutirão de traição ou treição.
Em dia previamente combinado, a peonada apontava no espigão da serra junto com o raiar do dia; alguns já chegavam cantando, outros provocando brincadeiras com os conhecidos que iam encontrando, todos eles carregando, às costas, seus instrumentos de trabalho: uma enxada ou uma foice roçadoura, dependendo se o combinado era capina de roça, colheita de grãos ou roçagem de pasto.
Se o mutirão era de traição, chegavam sem fazer barulho e, ao sinal de comando, iniciava-se uma algazarra ensurdecedora, à maneira de uma serenata: fogos de rojões, viola, cantoria e, principalmente, o ruído proporcionado pelo bate-bates, às vezes uma centena de foices, umas nas outras.
Se acontecia de um companheiro chegar com a foice com o gavião sem mostra de uso, era motivo de folgança da caipirada:
- Peão que ombreia foice ainda novata de corte, só vai ter direito ao café-com-duas-mãos (café com mistura), vai sobrar boião prá nóis!
- Mão sem calo é fazer doce de cidra sem ralo!
- Vamos permitir que ele experimente o quentão e “tarveis” a dança...
Concomitantemente com a chegada dos companheiros, as mulheres da casa, também em sistema de mutirão com as vizinhas, já estavam de pé se movimentando na cozinha, preparando a matula para o desjejum que, normalmente, consistia em carne seca ou de porco, retirada aos pedaços (pelota) de uma lata de querosene com mais da sua metade preenchida com gordura de porco, expediente que permitia conservá-la por longo período de tempo; jogava-se dentro de um enorme tacho de cobre, já previamente esquentando no fogão
A peonada, sentada ao redor da casa, não arredava pé enquanto não fosse servido o cheiroso “mata fome”, normalmente na forma de sanduíche com o “pão-de–intaliano-redondo”; quase sempre a bóia era regada com uma boa pinguinha, servida em canequinhas de alumínio ou de esmalte; nestas horas, mostrando o espírito de alegria que contagiava o ambiente, alguém abraçava uma viola, iniciava o ponteio das suas cordas e dava o tom; um outro, mais desinibido, toma a iniciativa e principia a cantoria de uma toada, que era seguida, em coro, pelos demais.
Cornélio Pires, famoso folclorista paulista que passou quase toda sua vida escrevendo sobre “nossos caipiras”, conseguiu registrar algumas destas cantorias (Cornélio Pires, Conversas ao pé do fogo, 1921)
Eu quero bem minha foice
ela corta satisfeita...
João Lino vai fazê festa
Bem no tempo da coieita
E o coro respondia:
João Lino vai fazê festa
Bem no tempo da coieita.

De repente, parece que obedecendo a um comando, os cantadores pegavam seus instrumentos de trabalho e se dirigiam para o serviço; normalmente alguém comandava a distribuição da peonada, formando em linha, como se fora um movimento de infantaria, com três segmentos, ponta direita, esquerda e o grupo do meio.
Ao sinal da voz de comando iniciavam-se, todos ao mesmo tempo, o serviço e a cantoria em coro, comandada pelo mestre de toadas; um indivíduo encarregado de distribuir a pinga corria, de uma extremidade a outra da linha, passando a mesma canequinha de boca em boca
Havia, entre os três grupos, disputas para ver quem andava mais depressa no seu eito; se acontecesse que as pontas, pela rapidez com que trabalhavam, “fechassem” a turma do meio, os perdedores ficavam com a “porca” (troféu fictício, sem relação com o animal que lhe dá o título).
O almoço era servido no próprio local do serviço, quando todos procuravam uma sombra, geralmente perto de um regato; comia-se muito bem; fazia-se o quilo e alguns aproveitavam para dar uma pequena cochilada; depois o serviço continuava até o fim da tarde, quando todos paravam, independente de terem terminado toda a tarefa ou não.
Voltavam para a sede, com a mesma alegria da ida, quando, então era servido o jantar, geralmente uma galinhada, mandioca, feijão e carne de porco, regado a uma boa pinguinha; junto a uma fogueira improvisava-se o “arrasta-pé”, conhecido como pagode e os violeiros cantadores entoavam suas modas e seus desafios.
Meu amor é pequenino
Do tamanho dum botão;
De noite eu trago nos braços,
De dia no coiração.
A festa ia até de madrugada porque, no dia seguinte, sempre era domingo!




0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial