MINHAS CRÔNICAS

quarta-feira, 1 de junho de 2011

A CONVERSA ESTAVA ANIMADA NA VARANDA DA FAZENDA

A conversa estava animada, principalmente depois que distribui algumas latinhas de cerveja entre os convidados e o prato com pedaços de picanha, chegada na gordura, rodava de mão em mão.

Conheço bem a vida do roceiro, convivi com ele durante meu tempo de criança, acompanhei, empoleirado nos carros de bois, algumas das suas dificuldades existenciais; aspirei o pó das estradas e me encharquei na lama dos facões provocados pelas enxurradas nos caminhos dos ermos sem fim; sei que existe diferença entre o que o menino via e o que o homem sentia, porém, a raciocinar com Jung, tudo aquilo foi incorporado ao meu inconsciente.

Gosto de ouvi-los contando leréias, sinto sinceridade nas suas afirmações e, principalmente, não vejo grandes diferenças entre o caboclo do Tocantins e Goiás e o do interior de Minas Gerais; todos mantêm suas tradições e suas superstições, independente da “chegada” do progresso, da era global nas suas vizinhanças, provocada pela televisão.

O Seu Chico da Isabé, um dos presentes na rodada de churrasco, é o protótipo desta afirmação; fala das suas coisas, às vezes fantásticas, sem a preocupação de saber se o interlocutor está, ou não, acreditando no que ele diz; “puxo-lhe” a língua e ele não se faz de rogado, conta seus “causos médicos” sem se preocupar com a presença de dois esculápios.

São estórias fantásticas, algumas delas ele diz ter presenciado; outras, ouviu do seu finado pai; estira as pernas até encostá-las, de leve, no corpo do seu fiel amigo Bismarque; este, olha-o com indisfarçável satisfação e deita, acomodando o focinho sobre as duas patas dianteiras; parece que adrede combinado, fixa os olhos no patrão e aguarda o momento de ouvir as suas costumeiras leréias.

- Como eu tava dizendo, tem muitas doenças que a sua medicina não consegue curar, uma delas é o “mau-olhado”, que nós da roça apelidamos de “quebranto”; às vezes é fácil pegar este mal, porém, é muito difícil ficar livre dele, principalmente se a coisa aconteceu “sem mais nem menos”, às vezes, só de elogiar uma criança já é o bastante para receber a carga negativa.

Se a criança desembestar a chorar sem precisão, ficar manhosa, mesmo depois de algumas corrigendas com uns tapinhas no traseiro; não quer comer; se já andava, agora recusa e quer colo sem parar é quase certo que pegou “mau olhado”; para ter certeza coloca-se três brasas num copo de água – se forem para o fundo...tem, caso contrário...não

Quando apresento meus netos para alguma pessoa eu já alerto: cuidado! se for elogiar, repita esta oração: - “Benza Deus o neto do Seu Chico da Isabé”; se acontecer da pessoa elogiar e não repetir isto, quem tiver a criança no colo deverá dizer : -“Beija no c.. dela”; este palavrão é dito com a maior tranquilidade, sem se preocupar com a presença de mulheres e crianças e todos riem, não se sabendo se faz parte do ritual da reza ou foi acrescentado pelo narrador.

Agora, se a criança já pegou o “mau olhado”, benzer com folhas de arruda, fazendo cruzes nas suas costas e no seu peito e repetir: - “Zóio mau que te viu, com esses mesmos eu tiro; três pessoas distintas da Santíssima Trindade, num só Deus verdadeiro; vai pras águas sargadas e não faz mar a ninguém. Amém”

Seu Chico da Isabé é, realmente, um grande contador de estórias, não há como não participar das suas narrativas; ele movimenta as mãos, pisca o olho com malicia, às vezes se levanta para representar melhor a movimentação do personagem que descreve; de vez em quando olha para o Bismarque, parece que esperando uma manifestação e este abana o rabo a lhe informar que deve continuar no mesmo ritmo, pois, pelas reações, a platéia está aprovando.

O nosso povo do sertão continua sua labuta diária, parece que indiferente aos acontecimentos que afligem a nós citadinos; sua sabedoria de vida permite-lhes que enfrentem as dificuldades com estoicismo, às vezes zombando de nós que vivemos na cidade e que assustamos com a presença de uma “simples” cascavel.

A conversa estava boa, porém, amanhã é outro dia, todos têm seus deveres e chegava a hora de recolher; despedimos com uma “batida do copo de Whisky com a lata de cerveja”; vejo os faróis da motocicleta dobrando o espigão e a família do Ramirinho também nos deseja boa noite e vão para seus quartos; ficamos, Hélio Junior e eu, mais algum tempo, analisando os acontecimentos da viagem.

Sinto que a figura de meu irmão, que morou aqui por muitos anos, traz de volta minha saudade dos tempos de dificuldades que passamos juntos nestas bibocas; cada momento não é igual ao precedente e não será repetido no futuro; olho o céu e falo para mim mesmo:

Céu estrelado do Tocantins

Miríade de luzes cintilantes

Plantei energia no seu solo

Colhi saudade quando fui retirante!

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