BIBLIOTECA DIVIDIDA
Já fazia quase
seis meses que estava tentando organizar a minha biblioteca aqui na Santa
Tereza; depois de várias tentativas cheguei à conclusão de que não é questão de
organizar, mas simplesmente um problema de espaço: o conteúdo é maior do que o
continente.
Outro dia,
conversando com o meu amigo Dr. Heitor Rosa, tive a informação de que problema
semelhante está vivendo nosso amigo comum, o ex-Reitor da Universidade Federal
de Goiás, Dr. Joel Pimentel Ulhoa, possuidor de uma biblioteca com mais de
8.000 volumes que não caberia no apartamento para onde ele se mudou.
Depois de
tentar de todas as maneiras conciliar o problema que me afligia resolvi
reformar uma casa que estava desocupada, já há bastante tempo, por motivo da
mudança de seu antigo morador que resolveu ir morar na cidade.
Confesso que
estou parecendo uma “barata tonta” dentro da minha biblioteca, não consigo
escolher quais livros levar para o “anexo” (apelido dado à nova biblioteca);
sento-me em frente às estantes e percorro as suas prateleiras com olhos
curiosos à procura dos “enjeitados”; folheio este e aquele outro; não, este eu
preciso consultar de vez em quando, aquele outro está na fila para ser lido,
enfim, estou me sentindo com a mesma sensação de impotência manifestada pelo
escritor argentino-Espanhol Rodrigo Fresán (A vida encaixotada, Serrote,
Instituto Moreira Sales- São Paulo, 2012).
Fresán
registra no seu diário as dificuldades que enfrentou para mudar de casa, tendo
que encaixotar seus livros para o transporte, no que foi auxiliado pela sua
esposa (Minha mulher enumerou e atribuiu uma letra a cada prateleira de minha
biblioteca); o problema é que ele, Fresán, de vez em quando tirava um dos
livros que já estava encaixotado e passava a folheá-lo (por favor, diz ela,
você está atrapalhando, vá dar umas voltas e volte mais tarde,).
Nesta
voltinha, ele passou em uma livraria e comprou outros dois livros, um deles ele
já possuía e se esquecera (Não faz mal, justifica-se, aquele primeiro era em
capa dura, difícil de manusear na cama e o outro deveria, supôs ele, ser de
muita utilidade no futuro (sic), cujo título não deixa de ser atraente
"Coisas que um neto deve saber").
Vejam comigo
um dos momentos “dramáticos” do diário de Fresán (Chegou o grande e terrível
dia; uma quadrilha toma de assalto o apartamento onde vivi e enfia livros em
caixas numa velocidade espantosa; contemplo as caixas e leio títulos de que
havia esquecido totalmente. É como se os visse pela primeira vez e não consigo
resistir ao impulso de folheá-los pela última vez!).
Diferentemente
do que ocorreu com Frésan, não sofro nenhuma pressão para “descartar” este ou
aquele livro (ele chegara a pensar em fazer algumas doações, para diminuir a
sua quantidade), preciso apenas definir quais ficarão na biblioteca central e
quais deverão ir para a nova “morada”; porém, não sei qual de nós dois sofreu
mais com a mudança.
Na tentativa de ter apoio psicológico nesta
empreitada resolvi mudar o nome da casa; ao invés de “anexo” que embute a
estranha sensação de subordinação, ou seja, os livros que fossem transferidos
para ali não seriam os meus preferidos, passei a denominá-la de “Casa amarela
de livros”, nome mais romântico e, sobretudo com mais personalidade cultural
(ao adentrá-la, antes desta mudança de nome, parecia que era repreendido por
Eça de Queiroz, falando em nome das estantes abarrotadas de livros de e sobre
escritores portugueses): - Por que você nos procura, se somos de segunda
classe? Volte para seus preferidos!
Para
diminuir a sensibilidade dos novos habitantes da “Casa Amarela” meu amigo
jardineiro Décio e eu plantamos ao redor da mesma, vários arranjos de flores e
plantas ornamentais (dois pés de “manacá” me foram presenteados pelos amigos
Átila e Soninha de Freitas, em uma tarde nostálgica quando se despediam da
antiga casa onde moraram por mais de trinta anos).
Ontem,
ao folhear (pela última vez antes de mudá-lo de endereço) o livro “Brecht - Uma
introdução ao teatro dialético” de autoria do jornalista e ensaísta Fernando
Peixoto voltei-me, instintivamente ao meu livro publicado pela Editora Kelps
“Entre o sonho e a realidade, do Brasil dos anos 60 à Rússia dos anos 90” onde
descrevo as discussões que alguns de nós universitários da década de 1960,
promovíamos ao redor de uma “mesa de chope” procurando entender a dialética do
teatro comprometido com a ideologia socialista.
Parece que
impulsionado por uma força irresistível fui à “Casa Amarela” e reencontrei o
livro que procurava “Esta é a minha história, Louis Bodenz, 1948”, na primeira
página vejo minha assinatura tracejada com letras inseguras, seguida da data de
aquisição do mesmo, Curitiba, 8/12/1958; este livro foi um dos meus
contrafortes ao ateísmo; ganhei-o de um colega do banco onde trabalhava que,
por perceber minha incipiente militância política, procurou “proteger-me”. O
livro conta a história de um líder sindical norte-americano pertencente ao
Partido Comunista, que se converteu ao catolicismo.
Vez por outra
ouvimos noticias de que o livro impresso vai acabar; sei não! Não acredito ser
possível sentar-me em frente ao computador e, de repente, pensar em um livro
que li há muitos anos e procurá-lo no arquivo virtual da máquina; aqui, sentado
na minha poltrona, faço minha visão percorrer todos os escaninhos das estantes
e de repente sou atraído nada menos pelo exemplar de um livro publicado em 1902
(Homens e Cousas estrangeiras – José Veríssimo), o pego nas mãos com cuidado e
carinho; sua capa ainda é a original como veio da impressora dos irmãos Garnier
na França.
Se nossa vida
fosse exclusivamente uma busca de momentos de felicidade, creio poder dizer
para mim mesmo, toquei-a com as pontas dos dedos ao folhear aquele livro que já
estava um pouco esquecido e que ao reler algumas das suas páginas,
principalmente seu maravilhoso ensaio sobre Emile Zola, escrito logo depois do
envolvimento daquele escritor com o caso Dreyfus, culminando na publicação em
1898 da carta panfletária (Eu acuso) na imprensa francesa; Veríssimo discute
assuntos que estavam acontecendo!
Continua penosa a mudança, levo três livros
para a Casa Amarela e trago de volta outros dois! Vou conseguir!
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