MINHAS CRÔNICAS

domingo, 16 de fevereiro de 2014

FREUD E CERVANTES, ONDE SE ENCONTRARAM?



                   Sabe-se que Freud foi, desde a infância, um leitor dos clássicos da literatura; quando digo infância não estou exagerando pois, aos nove anos de idade, ele ingressou no “Gymnasium” um dos mais famosos colégios de Viena, cujo currículo tinha uma característica que o diferenciava dos demais congêneres: - respirava-se, nas suas salas de aulas, a atmosfera humanística.
                   Além de serem ministradas as matérias ensinadas nas outras escolas, havia no currículo seis anos para o estudo do grego, oito anos para o latim, além de estudos específicos sobre a história antiga e a literatura, tanta a clássica como a contemporânea. Freud foi o primeiro aluno da sua classe durante todo o curso!
                   Este seu interesse, precoce, pela literatura, facilitou-lhe, de alguma maneira, sua incursão no mundo da mente humana; selecionei um episódio, dos muitos a que tive acesso, para confirmar esta minha assertiva: Sua paixão pela obra de Cervantes, especialmente a clássica “Dom Quixote de La Mancha”, a qual ele leu várias vezes, tendo, inclusive, aprendido o idioma  espanhol para entender melhor o “espírito” da obra.
                   O episódio a que desejo me referir encontrei-o na carta que Freud enviou a sua noiva Martha (fevereiro de 1884), onde ele tenta explicar-lhe seu relacionamento com um jovem de nome Silberstein, seu grande amigo de juventude; lá pelas tantas, ele diz a Martha que os dois se apelidaram, mutuamente, de Berganza e Cipión, nomes tirados, segundo ele,  da obra de Cervantes, quando ambos estudavam espanhol.
         A escritora Marialzira Perestrello, no seu livro “A formação cultural de Freud, 1996”, despertou-me a curiosidade a respeito do assunto ao afirmar que estes nomes foram dados por Cervantes a dois cães que conversavam entre si, no conto “Coloquio de los Perros”.
                   Encontrei, como se encontra um tesouro, o livro “Cervantes - Novelas Ejemplares, Argentina, 1962”, em um sebo sediado na internet; dos seis contos que o compõem dois fazem parte do episódio a que me referi acima: El Casamiento Engañoso e El Coloquio de los Perros; conto o resumo de ambos e espero que meus leitores se surpreendam com algumas conclusões a que chegaram alguns dos biógrafos de Freud.
                   No primeiro conto (Casamiento Engañoso) o narrador (Peralta) conta ao interlocutor (Sr. Alferes), uma história inacreditável: quando estava internado em um hospital em Valadolid, Espanha, dois cachorros (Berganza e Cipion) que estavam deitados debaixo da sua cama, conversavam entre si durante toda a noite.
                   Claro que o Sr. Alferes  não acreditou na história, porém Peralta diz ter provas do que estava dizendo: ”tomei nota de todo o diálogo”  e, ao dizer isto “saco um cartapacio y lo puso en las manos del licenciado – pegou um maço de papel e colocou nas mãos do licenciado” e este leu o que corresponde ao segundo conto (El colóquio de los perros).
                   Este “diálogo” dos cães vem sendo discutido por muitos que se interessam pela obra de Freud e principalmente procuram entender o “leit motiv” para ele enveredar para a nova ciência que ele estava criando – a psicanálise.
                   Ao se ler este conto de Cervantes, que viveu de 1547 a 1616, somos obrigados a intuir que Freud, ao iniciar a sua técnica de “ouvir o paciente no divã do seu consultório”, deve ter se lembrado deste  colóquio descrito de maneira magistral por Cervantes; é interessante observar que um dos cães da história (Berganza) conta sua vida para o outro (Cipion) e este ouve com paciência, com poucas manifestações ou interrupções, como se fora um analista.
                   Quase que no inicio do colóquio Cipion diz a Berganza : “ Fale até que amanheça que eu te escutarei de muita boa vontade, sem te interromper a não ser que sinta necessidade de fazê-lo”, ao que Berganza respondeu: “Pois se posso falar com esta segurança, escuta-me e se você se cansar de ouvir o que estou dizendo, ou me repreenda ou  mande que eu me cale”.
                   Em um determinado trecho da fala de Berganza este começa a divagar sobre vários assuntos e é então chamado à atenção pelo Cipion “Basta Berganza, volte para a senda da história e caminhe por ai”; de vez em quando a narrativa de Berganza ficava monótona e repetitiva, então Cipion chamava-lhe a atenção “Basta, vá em frente, Berganza, porque já entendi”.
                   Um analista ficaria feliz de ouvir este trecho da fala de Berganza:  “Sempre quis falar, para dizer as coisas  que estavam depositadas na minha memória e por estarem ali há muito tempo, acabava as esquecendo. Agora que estou com este don divino de poder falar, vou aproveitar o mais que puder, falarei de tudo de que me recordo, mesmo que seja um pouco confuso”
                   Conte-me, diz Cipion  “tudo o que recordas, procure não pular trechos, na verdade, conte o que quiseres e como quiseres” ao que respondeu Berganza “ agora me vem à memória o que haveria de ter lhe dito no principio da nossa discussão, não só fico maravilhado com o que falo, como também fico espantado pelo que desejo falar”.
                  A pessoa pode nascer gênio, porém, a vida, os estudos e a cultura, moldam sua trajetória, acho que posso, modestamente, concordar com o que disse a Profa. Marialzira Perestrello,  autora do livro que citei acima: Freud, com sua intuição, seguiu mais os escritores do que a medicina organicista. Cervantes foi-lhe mais útil que a anatomia cerebral.



                  



1 Comentários:

  • Às 10 de dezembro de 2021 às 08:19 , Blogger Unknown disse...

    Passados oito anos leio com imensa alegria este blog. Sou um admirador de Cervantes e Freud, dois dos maiores observadores que nossa espécie criou. Encontrei a carta mencionada no livro Correspondências de Amor e outras cartas - Ed. Nova Fronteira/RJ de 1982. É uma carta de 07 de fevereiro daquele ano, muito bonita, onde ele fala de seu amigo Silberstein e deste "pacto canino" de infância e adolescência, mas que se transformara com o passar dos anos, como aliás ocorre com todos nós e todas as nossas amizades desta época. Só um homem intuitivo e brilhante como Freud poderia aproveitar de forma tão criativa o tesouro que a literatura nos oferece ao expor o ser humano de forma tão verdadeira. Obrigado por este texto.

     

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