FREUD E CERVANTES, ONDE SE ENCONTRARAM?
Sabe-se que Freud foi, desde a infância, um leitor dos clássicos da
literatura; quando digo infância não estou exagerando pois, aos nove anos de idade,
ele ingressou no “Gymnasium” um dos mais famosos colégios de Viena, cujo
currículo tinha uma característica que o diferenciava dos demais congêneres: -
respirava-se, nas suas salas de aulas, a atmosfera humanística.
Além
de serem ministradas as matérias ensinadas nas outras escolas, havia no
currículo seis anos para o estudo do grego, oito anos para o latim, além de
estudos específicos sobre a história antiga e a literatura, tanta a clássica
como a contemporânea. Freud foi o primeiro aluno da sua classe durante todo o
curso!
Este
seu interesse, precoce, pela literatura, facilitou-lhe, de alguma maneira, sua
incursão no mundo da mente humana; selecionei um episódio, dos muitos a que
tive acesso, para confirmar esta minha assertiva: Sua paixão pela obra de
Cervantes, especialmente a clássica “Dom Quixote de La Mancha”, a qual ele leu
várias vezes, tendo, inclusive, aprendido o idioma espanhol para entender melhor o “espírito” da
obra.
O
episódio a que desejo me referir encontrei-o na carta que Freud enviou a sua
noiva Martha (fevereiro de 1884), onde ele tenta explicar-lhe seu
relacionamento com um jovem de nome Silberstein, seu grande amigo de juventude;
lá pelas tantas, ele diz a Martha que os dois se apelidaram, mutuamente, de
Berganza e Cipión, nomes tirados, segundo ele,
da obra de Cervantes, quando ambos estudavam espanhol.
A escritora
Marialzira Perestrello, no seu livro “A formação cultural de Freud, 1996”,
despertou-me a curiosidade a respeito do assunto ao afirmar que estes nomes
foram dados por Cervantes a dois cães que conversavam entre si, no conto
“Coloquio de los Perros”.
Encontrei,
como se encontra um tesouro, o livro “Cervantes - Novelas Ejemplares,
Argentina, 1962”, em um sebo sediado na internet; dos seis contos que o compõem
dois fazem parte do episódio a que me referi acima: El Casamiento Engañoso e El
Coloquio de los Perros; conto o resumo de ambos e espero que meus leitores se
surpreendam com algumas conclusões a que chegaram alguns dos biógrafos de
Freud.
No
primeiro conto (Casamiento Engañoso) o narrador (Peralta) conta ao interlocutor
(Sr. Alferes), uma história inacreditável: quando estava internado em um
hospital em Valadolid, Espanha, dois cachorros (Berganza e Cipion) que estavam
deitados debaixo da sua cama, conversavam entre si durante toda a noite.
Claro
que o Sr. Alferes não acreditou na
história, porém Peralta diz ter provas do que estava dizendo: ”tomei nota de
todo o diálogo” e, ao dizer isto “saco
um cartapacio y lo puso en las manos del licenciado – pegou um maço de papel e
colocou nas mãos do licenciado” e este leu o que corresponde ao segundo conto
(El colóquio de los perros).
Este
“diálogo” dos cães vem sendo discutido por muitos que se interessam pela obra
de Freud e principalmente procuram entender o “leit motiv” para ele enveredar
para a nova ciência que ele estava criando – a psicanálise.
Ao se
ler este conto de Cervantes, que viveu de 1547 a 1616, somos obrigados a intuir
que Freud, ao iniciar a sua técnica de “ouvir o paciente no divã do seu consultório”,
deve ter se lembrado deste colóquio
descrito de maneira magistral por Cervantes; é interessante observar que um dos
cães da história (Berganza) conta sua vida para o outro (Cipion) e este ouve
com paciência, com poucas manifestações ou interrupções, como se fora um
analista.
Quase
que no inicio do colóquio Cipion diz a Berganza : “ Fale até que amanheça que
eu te escutarei de muita boa vontade, sem te interromper a não ser que sinta
necessidade de fazê-lo”, ao que Berganza respondeu: “Pois se posso falar com
esta segurança, escuta-me e se você se cansar de ouvir o que estou dizendo, ou
me repreenda ou mande que eu me cale”.
Em um
determinado trecho da fala de Berganza este começa a divagar sobre vários
assuntos e é então chamado à atenção pelo Cipion “Basta Berganza, volte para a
senda da história e caminhe por ai”; de vez em quando a narrativa de Berganza
ficava monótona e repetitiva, então Cipion chamava-lhe a atenção “Basta, vá em
frente, Berganza, porque já entendi”.
Um
analista ficaria feliz de ouvir este trecho da fala de Berganza: “Sempre quis falar, para dizer as coisas que estavam depositadas na minha memória e
por estarem ali há muito tempo, acabava as esquecendo. Agora que estou com este
don divino de poder falar, vou aproveitar o mais que puder, falarei de tudo de
que me recordo, mesmo que seja um pouco confuso”
Conte-me,
diz Cipion “tudo o que recordas, procure
não pular trechos, na verdade, conte o que quiseres e como quiseres” ao que
respondeu Berganza “ agora me vem à memória o que haveria de ter lhe dito no
principio da nossa discussão, não só fico maravilhado com o que falo, como
também fico espantado pelo que desejo falar”.
A
pessoa pode nascer gênio, porém, a vida, os estudos e a cultura, moldam sua
trajetória, acho que posso, modestamente, concordar com o que disse a Profa.
Marialzira Perestrello, autora do livro
que citei acima: Freud, com sua intuição, seguiu mais os escritores do que a
medicina organicista. Cervantes foi-lhe mais útil que a anatomia cerebral.
1 Comentários:
Às 10 de dezembro de 2021 às 08:19 ,
Unknown disse...
Passados oito anos leio com imensa alegria este blog. Sou um admirador de Cervantes e Freud, dois dos maiores observadores que nossa espécie criou. Encontrei a carta mencionada no livro Correspondências de Amor e outras cartas - Ed. Nova Fronteira/RJ de 1982. É uma carta de 07 de fevereiro daquele ano, muito bonita, onde ele fala de seu amigo Silberstein e deste "pacto canino" de infância e adolescência, mas que se transformara com o passar dos anos, como aliás ocorre com todos nós e todas as nossas amizades desta época. Só um homem intuitivo e brilhante como Freud poderia aproveitar de forma tão criativa o tesouro que a literatura nos oferece ao expor o ser humano de forma tão verdadeira. Obrigado por este texto.
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