DO RIO DE JANEIRO A GOIÁS – 1896 (A viagem era assim)
Quando pesquisei para escrever a biografia de Couto de Magalhães (Couto de
Magalhães, o último desbravador do Império, Ed. Kelps. Goiânia 2005),
constatei, consultando documentos da época, a enorme dificuldade para se fazer
a viagem do Rio de Janeiro a Goiás (ano de
1863); denominei o feito de Couto de Magalhães
de uma epopeia.
A escritora Maria Paula Fleury de Godoy publicou em 1961 (1ª. edição) um
opúsculo, com o título que gravei acima; trata-se, também, da narrativa de uma
epopéia: diário da viagem empreendida por sua mãe, carregando dois filhos
menores, um deles a própria autora, entre o Rio de Janeiro e Goiás, no ano de
1896, Sra. Augusta de Faro Fleury Curado, por sinal, avó da escritora Augusta
de Faro Fleury de Melo, membro da Academia Goiana de Letras.
Para que se possa, realmente, conceituar a façanha, é necessário um breve
sumário biográfico daquela extraordinária mulher, cuja personalidade, plasmada
em princípios católicos, permitiu que criasse seus oito filhos na antiga Goiás
do inicio do século passado, na hoje famosa chácara Bauman, orientando-os, ao
lado do esposo, no caminho da cultura e da religião.
Augusta era filha do Conselheiro André Augusto de Pádua Fleury; nasceu em Curitiba, durante o tempo em que o pai
era o Presidente daquela Província; depois se mudaram para o Rio de Janeiro; na
adolescência foi aluna interna de colégio, em Paris, onde descobre o piano e a
pintura. Enfim, era uma jovem-mulher, requintada, com cultura e conforto
material; em 1893 casou-se com seu primo Sebastião Fleury Curado, viveram cerca
de três anos no Rio de Janeiro e depois se mudaram para a cidade de Goiás.
Este preâmbulo foi necessário para que se possa entender o desprendimento e,
sobretudo, a coragem desta jovem ao se decidir acompanhar
o marido em uma viagem que se antevia tão cheia de percalços, levando a
tiracolo duas crianças, seus filhos.
Antes de transcrever alguns trechos daquele diário, acho necessário dar, em
rápidas pinceladas, uma visão do que foi aquela viagem que teve a duração de 58
dias; do Rio de Janeiro até Uberaba foram de trem de passageiros; até Araguari,
parte em vagão descoberto (transporte de cargas) e seis quilômetros a pé; ali
descansaram por vinte dias. O resto da viagem (33 dias) foi feita a cavalo e em
bangüê.
Deixo que ela mesma conte, por intermédio de algumas páginas do seu diário,
cujo texto completo, repleto de lirismo e coragem, foi publicado no livro da
sua filha, acima citada.
“23 de agosto de 1896, Rio de Janeiro - Madrugada triste, céu sem estrelas.
Aglomerado de povo na estação de ferro, a comprar bilhetes. Quando voltar?...
Só Deus sabe. Meu coração sangrava de dor, ir para tão longe! Quantas lágrimas
derramadas na escuridão do carro de praça... Partimos, as crianças dormiam...
Dia 24 de agosto – São Paulo, depois de 15 horas de trem, noite mal dormida;
dia seguinte, 5 horas da manhã, estação da Luz, rumo a Ribeirão Preto; dia 26,
Uberaba, bela cidade, carros e muito luxo, só se anda de vestido de seda,
embora em ruas não calçadas e com pó vermelho; dia 28 Uberabinha; dia 29
Araguari, onde ficamos por vinte dias; dali para frente a cavalo e banguê,
este, muito incômodo, joga, como um bote no mar. É uma espécie de gavetão de
cômoda, teto de couro, tudo isto puxado por dois burros, um na frente e outro
atrás, de repente o burro da frente deitou-se, levei grande susto, comecei a
chorar e a rezar; neste primeiro dia caminhamos três léguas, faltavam 72.
Dia 19 setembro - Chuva torrencial, ficamos debaixo da tolda, acordamos as
crianças, roncavam os trovões, vento fortíssimo, querendo arrancar os panos da
tolda, invasão da água, colocamos o André na rede, Maria Paula no meu colo; Dia
21 setembro- atracamos em Goiás! Joãozinho deu um tiro para cima e os camaradas
responderam: Viva Goiás! Dia 1 de outubro - Passamos por Caldas Novas; é uma
cidadezinha, riacho corre no centro, às 4 da tarde continuamos a viagem, mais
chuva, tive que tomar “Parati” para não resfriar, fiquei com uma verve
extraordinária! Dia 8 outubro - dia do meu aniversário! Ganhei um ramalhete de
flores e meu Sebastião abraçou-me muito, acampamos perto de uns ciganos, não
dormi, com medo dos ciganos roubarem meus filhinhos, André com febre; Dia 18
outubro - passamos por Curralinho (sete léguas de Goiás); chegada a Goiás (20
outubro); levantamos com chuva, ao meio dia chegamos em “Areias”, depois de
termos descido a Serra Dourada. Ali almoçamos e mudamos de roupa, estávamos
completamente molhados, vesti o roupão (amazonas) da minha sogra (Joãozinho
havia ido buscar no dia anterior); passamos pelo povoado do rio Bacalhau,
avistamos a capelinha de Santa Bárbara. Pedi a Deus que nos abençoasse.
O bangüê quase vira ao entrarmos na cidade de Goiás, já estava escuro.
Muitos curiosos perguntando: - quem ia no banguê, era um doente? A cidade é toda cercada de morros, no centro
o Rio Vermelho. Agora, até a volta, e que Deus nos proteja”.
Augusta de Faro Fleury
Curado nunca mais saiu da cidade de Goiás, tendo falecido em 1929, quinze anos
antes do esposo.