MINHAS CRÔNICAS

sexta-feira, 29 de junho de 2012

DO RIO DE JANEIRO A GOIÁS – 1896 (A viagem era assim)

 

Quando pesquisei para escrever a biografia de Couto de Magalhães (Couto de Magalhães, o último desbravador do Império, Ed. Kelps. Goiânia 2005), constatei, consultando documentos da época, a enorme dificuldade para se fazer a viagem do Rio de Janeiro a Goiás (ano de 1863); denominei o feito de Couto de Magalhães de uma epopeia.
A escritora Maria Paula Fleury de Godoy publicou em 1961 (1ª. edição) um opúsculo, com o título que gravei acima; trata-se, também, da narrativa de uma epopéia: diário da viagem empreendida por sua mãe, carregando dois filhos menores, um deles a própria autora, entre o Rio de Janeiro e Goiás, no ano de 1896, Sra. Augusta de Faro Fleury Curado, por sinal, avó da escritora Augusta de Faro Fleury de Melo, membro da Academia Goiana de Letras.
Para que se possa, realmente, conceituar a façanha, é necessário um breve sumário biográfico daquela extraordinária mulher, cuja personalidade, plasmada em princípios católicos, permitiu que criasse seus oito filhos na antiga Goiás do inicio do século passado, na hoje famosa chácara Bauman, orientando-os, ao lado do esposo, no caminho da cultura e da religião.
Augusta era filha do Conselheiro André Augusto de Pádua Fleury; nasceu em Curitiba, durante o tempo em que o pai era o Presidente daquela Província; depois se mudaram para o Rio de Janeiro; na adolescência foi aluna interna de colégio, em Paris, onde descobre o piano e a pintura. Enfim, era uma jovem-mulher, requintada, com cultura e conforto material; em 1893 casou-se com seu primo Sebastião Fleury Curado, viveram cerca de três anos no Rio de Janeiro e depois se mudaram para a cidade de Goiás.
Este preâmbulo foi necessário para que se possa entender o desprendimento e, sobretudo, a coragem desta jovem ao se decidir acompanhar o marido em uma viagem que se antevia tão cheia de percalços, levando a tiracolo duas crianças, seus filhos.
Antes de transcrever alguns trechos daquele diário, acho necessário dar, em rápidas pinceladas, uma visão do que foi aquela viagem que teve a duração de 58 dias; do Rio de Janeiro até Uberaba foram de trem de passageiros; até Araguari, parte em vagão descoberto (transporte de cargas) e seis quilômetros a pé; ali descansaram por vinte dias. O resto da viagem (33 dias) foi feita a cavalo e em bangüê.
Deixo que ela mesma conte, por intermédio de algumas páginas do seu diário, cujo texto completo, repleto de lirismo e coragem, foi publicado no livro da sua filha, acima citada.
“23 de agosto de 1896, Rio de Janeiro - Madrugada triste, céu sem estrelas. Aglomerado de povo na estação de ferro, a comprar bilhetes. Quando voltar?... Só Deus sabe. Meu coração sangrava de dor, ir para tão longe! Quantas lágrimas derramadas na escuridão do carro de praça... Partimos, as crianças dormiam...
Dia 24 de agosto – São Paulo, depois de 15 horas de trem, noite mal dormida; dia seguinte, 5 horas da manhã, estação da Luz, rumo a Ribeirão Preto; dia 26, Uberaba, bela cidade, carros e muito luxo, só se anda de vestido de seda, embora em ruas não calçadas e com pó vermelho; dia 28 Uberabinha; dia 29 Araguari, onde ficamos por vinte dias; dali para frente a cavalo e banguê, este, muito incômodo, joga, como um bote no mar. É uma espécie de gavetão de cômoda, teto de couro, tudo isto puxado por dois burros, um na frente e outro atrás, de repente o burro da frente deitou-se, levei grande susto, comecei a chorar e a rezar; neste primeiro dia caminhamos três léguas, faltavam 72.
Dia 19 setembro - Chuva torrencial, ficamos debaixo da tolda, acordamos as crianças, roncavam os trovões, vento fortíssimo, querendo arrancar os panos da tolda, invasão da água, colocamos o André na rede, Maria Paula no meu colo; Dia 21 setembro- atracamos em Goiás! Joãozinho deu um tiro para cima e os camaradas responderam: Viva Goiás! Dia 1 de outubro - Passamos por Caldas Novas; é uma cidadezinha, riacho corre no centro, às 4 da tarde continuamos a viagem, mais chuva, tive que tomar “Parati” para não resfriar, fiquei com uma verve extraordinária! Dia 8 outubro - dia do meu aniversário! Ganhei um ramalhete de flores e meu Sebastião abraçou-me muito, acampamos perto de uns ciganos, não dormi, com medo dos ciganos roubarem meus filhinhos, André com febre; Dia 18 outubro - passamos por Curralinho (sete léguas de Goiás); chegada a Goiás (20 outubro); levantamos com chuva, ao meio dia chegamos em “Areias”, depois de termos descido a Serra Dourada. Ali almoçamos e mudamos de roupa, estávamos completamente molhados, vesti o roupão (amazonas) da minha sogra (Joãozinho havia ido buscar no dia anterior); passamos pelo povoado do rio Bacalhau, avistamos a capelinha de Santa Bárbara. Pedi a Deus que nos abençoasse.
O bangüê quase vira ao entrarmos na cidade de Goiás, já estava escuro. Muitos curiosos perguntando: - quem ia no banguê, era um doente?  A cidade é toda cercada de morros, no centro o Rio Vermelho. Agora, até a volta, e que Deus nos proteja”. 
Augusta de Faro Fleury Curado nunca mais saiu da cidade de Goiás, tendo falecido em 1929, quinze anos antes do esposo.


BATISTÃO RECLAMA DA ESPOSA

                                          Em uma das "tardes-quase-noite” na fazenda São Pedro, localizada nas furnas da serra de Monte do Carmo no estado do Tocantins, estava fazendo o que mais gosto na convivência com os funcionários: Conversando “fiado”.
                                               Hélio Junior providenciou duas doses de um bom “scoth on the rocks-wisky com pedras de gelo”, Da. Naranda, sempre pressurosa, serviu-nos algumas fatias de salaminho e queijo; fizemos um brinde à vida e passamos a ouvir as estórias do Batistão que, para não nos deixar sozinhos (companheiro é companheiro, palavras dele) sorvia uma boa cervejinha gelada. 
                                               Antes de dar a palavra ao meu amigo Batistão, gostaria que meus leitores se situassem no ambiente onde se localiza a Fazenda São Pedro e o ambiente onde estamos reunidos, sentados em tamboretes ao redor da churrasqueira, aguardando...
                                               Não sei se conseguirei descrever o que sinto ao ultrapassar a porteira que dá acesso a estes nossos gerais; como se fora um passo de mágica, me desvinculo do bulício das ruas onde vivo; meu sentido da audição, sem que me aperceba, coloca-me em contato com o sussurro da natureza, os últimos vestígios do som provocado pelo rodar estrepitoso dos carros sobre o asfalto da minha cidade são substituídos pela sensação de calmaria indescritível.  
                               Provavelmente muitos dos meus leitores citadinos não acreditam nas histórias que lhes conto a respeito do Batistão, no entanto posso assegurar que são verdadeiras e se as narro não é com o interesse de apenas mostrar sua faceta hilariante, mas sim para deixar  registrados alguns acontecimentos da vida das pessoas que vivem na roça, cujas estripulias dificilmente chegam aos ouvidos dos moradores das cidades; aliás,  para que não fique nenhuma dúvida, gostaria de dizer que o Batistão nunca existiu, o lugar onde ele mora, não existe, porém tudo o que conto a respeito dele e do lugar onde ele viveria é verdadeiro.
                Feitos estes esclarecimentos, vamos aos fatos.
                               - Dotor, existe obrigação de o marido pagar os compromissos que a mulher faiz?
                               - Depende do compromisso Batistão, porém, o marido tem obrigação de, no mínimo, dar apoio à sua esposa, principalmente se ela estiver em alguma dificuldade.
                               - Mesmo se a gente avisar pra ela parar com o que estava fazendo e ela continua?
                               - Conte-me o acontecido, só assim poderei dar uma opinião mais abalizada.
                               A minha mulher é metida a sabidona, como o senhor bem sabe; quando compramos uma televisão, o sinal era muito fraco, tínhamos que modificar a posição da antena toda hora, pois a cada minuto caia a imagem e ela ficava dentro de casa dando as orientações, enquanto eu subia no telhado para cumprir as ordens que ela dava: “mais para a direita; agora para a esquerda, menos um pouco homem de Deus; segura nesta posição para ver se o sinal segura...”; às vezes eu passava o tempo todo no telhado e só ela assistia a novela.
                               A fama que ela  criou correu as redondezas, todos os vizinhos vinham pedir ajuda para arrumar a antena, até porque a distância para levar o aparelho até a cidade era muito grande e, além disto, ela não cobrava nada; com isto ela ficou “antipática” começou a dar palpite em outras coisas que não funcionavam na televisão; como estava aumentando a freguesia, chamei-lhe a atenção – Uma hora destas você queima o aparelho de alguém, e vai dar problema, espera pra ver!
                               Um dia eu a ouvi dizer para a mulher do Senhor Pipoca: - Acho que o problema do seu aparelho não é antena, acho que está faltando fio terra, sem ele e com a ajuda da Celg que não segura a energia no prumo, começa a aparecer descarga elétrica na placa. O senhor acredita que a “sabidona” deu um jeito na tal de placa? O problema é que a fama cada vez aumentava mais, tinha semana dela dar “palpite” em dois, três aparelho. Eu só avisando: - para com isto!
                                “Não coloque vaso de flores em cima do aparelho, a água que escorre da regação, vai direto para a placa, atrapalha a ligação com a antena e ai começa a dar fantasma na tela; vige Maria, não pode jogar repelente de inseto na tela, vai dar o mesmo problema na placa; outra vez que a televisão desligar sozinha, antes de me chamar, aperte o botão “não sei o que, time” (sleep timer); o controle não funciona? Troca a bateria! Já trocou? É porque você não está mirando no rumo daquela luzinha que existe bem na frente da TV, você fez isto e mesmo assim não funciona? Então é problema da placa.
                               Até que um dia ela resolveu tentar consertar esta desgraça de placa que estava enguiçada em quase todos os aparelhos que ela examinava; o senhor acredita que a “sabidona” resolveu abrir um aparelho, logo da mulher mais encrenqueira que existe na superfície da terra, a Da. Juriti. Na verdade o nome dela devia ser cascavel, pois a pomba juriti é de paz, enquanto que ela...
                               Não deu outra, abriu a portinhola traseira da TV, mexeu em vários parafusos, levou um bruto de um choque, virou o branco do zoio prá riba, cambeteou e deu um arranque no aparelho que espatifou no chão!
                               Agora a cascavel da Juriti quer que ela compre outro aparelho e ela quer que eu aguente o repuxo, tem base?   ..   





domingo, 3 de junho de 2012

QUANDO OS ESCRITORES IMITAM OS PINTORES.

         
                       

                               Em 1872 Claude Monet pintou o quadro “Impressão – nascer do sol” que retratava o nascer do sol no Porto de “Le Havre”, no canal da Mancha; mal sabia ele que este acontecimento seria o responsável pelo nascimento do movimento impressionista nas artes.
                               Na sua apresentação, o quadro desagradou à maioria das pessoas que o viram, principalmente aos críticos de arte; estes apelidaram o seu autor como “O impressionista”, pois o quadro, segundo aqueles, sugeria que o pintor possuía habilidade técnica limitada.
                               Proust nasceu em 1871, ou seja, um ano antes deste acontecimento, portanto temos o direito de pensar que este movimento (impressionismo) poderia ter influenciado a sua arte de escrever; acompanhem comigo este relato abaixo:
                                Certa feita um grande amigo de Marcel Proust de nome Gabriel de La Rochefoucauld escreveu um romance (O amante e o médico) e lhe enviou com o pedido de que ele fizesse comentários e lhe desse possíveis conselhos; após elogiar a obra “Você escreveu um romance bonito e poderoso, uma obra esplêndida e trágica, com uma técnica complexa e de alto nível”, Proust, aproveitando a liberdade que lhe fora concedida e tendo em vista a sua ojeriza ao lugar comum na literatura, deu alguns conselhos ao amigo.
                               “Há algumas belas paisagens em seu romance, mas, às vezes gostaríamos que elas fossem pintadas com mais originalidade. Todos nós sabemos que o céu se incendeia ao crepúsculo e que a lua brilha circunspecta, porém a sua repetição é um pouco entediante”.
                               No livro “Como Proust Pode Mudar sua Vida, 2011” o escritor suiço-inglês Alain de Botton reproduz um pequeno trecho do livro de Proust “Em busca do tempo perdido”, onde aquele autor descreve a lua, fugindo, como ele aconselha àquele seu amigo, do lugar comum - “Às vezes pelo céu da tarde passava a luz branca como uma nuvem, furtiva, sem brilho, como uma atriz que ainda não está na hora de entrar em cena e que, da plateia, em toalete comum, olha um momento suas camaradas, apagando-se, indesejosa de chamar a atenção”.
                               Como se fora um pintor impressionista, Proust dá asas à imaginação e rompe com o lugar comum e descreve o que ele vê quando olha para a lua e não o que a maioria absoluta das pessoas está acostumada a ver, mesmo quando estas tentam dar voos de condor aos seus escritos, e diz “O céu incendeia ao crepúsculo” ou “a lua brilha circunspecta”.
                               Tenho certeza que Proust aprovaria este nascer do sol “pintado” por Humberto de Campos – “O sol que não mostrava ainda o seu disco, era apenas adivinhado  pela claridade doce que punha no cabeço dos montes mais altos, fazendo ressaltos nos penedos inteiriços e nus, como chapas de prata fosca nelas engastadas, os finos lençóis d’água ... De repente, um cabeço de monte se acende, como um farol. E outro, e outro e mais outro. E a serra toda se inflama, se ilumina, faísca, fulgura, na gloria resplandecente do dia. Era o sol!”.
                               Já que falamos em astros, leiam comigo esta bela descrição de George Sand: -  “A lua se escondia atrás das tílias altas e desenhava no espaço azulado o espectro negro dos pinheiros imóveis. Uma serenidade profunda reinava entre as plantas; a brisa caíra, morrendo esgotada sobre as compridas ervas, aos primeiros acordes do sublime instrumento. O rouxinol ainda lutava, porém com uma voz tímida e desfalecente. Por fim veio sentar-se num ramo flexível, que não se dobrou mais do que o faria se carregasse um fantasma”.
                                               É claro que não pretendo merecer o beneplácito de Proust, Humberto de Campos ou de George Sand, porém, atingido pela picada da mosca azul (alguns amigos, portanto suspeitos para fazerem julgamento com isenção, disseram-me que gostaram deste trecho de uma crônica que publiquei aqui no JL  e ouso  repeti-lo:                                  
                               “Lembro-me como se fosse hoje, naquela noite a lua estava desavergonhadamente bonita; surgiu por detrás do espigão mestre de um morro que limita nossa vista para o lado do nosso vizinho Sr. Juvenal; na verdade, foi surgindo devagar, parece que empurrada para cima por mãos invisíveis; inicialmente somente o seu clarão fazia prever sua próxima aparição, no início com certa timidez, porém, já dominando a encosta do morro.
De repente ela aparece inteira na tela do firmamento, a natureza ao seu redor, que nos é mostrada por sombras, parece que inicia o dormitar acalentada pela brisa cariciosa, seguramente presente em todo final de tarde, início de noite.
Era dia ainda e já era noite, os habitantes das matas já se acomodavam para o sono, escutando somente o murmúrio dos insetos, inaudível para os forasteiros daquelas paragens.
Se prestarmos atenção ao que nos rodeia, com a agudeza e a sensibilidade do nosso sentido olfativo, poderemos sentir, no ar, um perfume como se fora exalado da boca de mulher nova e bonita e que circulava a custa de um zéfiro gentil ”.