MINHAS CRÔNICAS

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

SHAKESPEARE EM PARIS EM 1919. SERÁ?

Sei que o título desta crônica é intrigante, porém, acho que a Srta. Sylvia Beach teve a mesma idéia: aguçar a curiosidade do publico leitor, ao instalar, no final do ano de 1919 a Livraria Shakespeare and Company, bem no coração do Quartier Latin, em Paris; antes de tecer considerações a respeito deste acontecimento, acho pertinente relembrar meus leitores sobre o ambiente cultural de Paris daquela época.
Com o término da guerra mundial (1914-18), Paris, embora ainda lamentasse a perda de milhares de cidadãos, logo se recompôs; em 1920 já havia reconstruído a maioria dos seus edifícios e havia, também, sepultado a belle-époque.
Moraram em Paris naquela década uma efervescência de artistas e boêmios oriundos de várias partes do mundo, todos com um objetivo comum: alcançar o sucesso internacional, uma vez que a França era a timoneira da cultura universal da época; Montparnasse passou a ser o local preferido para reunião e moradia desta gente.
Naquela década moraram em Paris, dentre outros, Scott Fitzgerald, Joan Miró, Heitor Vila Lobos, Salvador Dali, Gertrude Stein, Oswald de Andrade, T.S.Eliot, John dos Passos, Luis Buñuel, James Joyce, Hemingway, Ezra Pound, além dos franceses, como André Gide, Jules Romain, Paul Valery, Claudel e tantos outros.
“Se você teve a sorte de viver em Paris, quando jovem, sua presença continuará a acompanhá-lo pelo resto da vida, onde quer que você esteja. Porque Paris é uma festa móvel. – carta de E. Hemingway a um amigo, 1950”
Sylvia, como ela mesma diz em sua autobiografia (Shakespeare and Company, 1959) era americana, solteira, contava 32 anos de idade quando chegou a Paris e ficou apaixonada pela cidade; no projeto de montar a sua livraria contou com a ajuda financeira da sua mãe, que continuava morando nos Estados Unidos.
Poucos meses depois desta decisão, montar uma livraria americana em Paris, Sylvia, ao visitar uma livraria à procura de determinado livro, aproximou-se da proprietária, Adriene Monnier, e esta se prontificou a ajudá-la no empreendimento; descobriram uma lavanderia desativada, localizada à Rua Dupuytren, próxima da livraria de Adriene, onde ela instalou a livraria, porém, dois anos depois, ela descobre, dobrando a esquina, um imóvel maior, localizado a Rua L’Odeon No. 12, cujas instalações, após algumas modificações, vieram a se tornar a legendária livraria Shakespeare & Cia.
Desde a sua inauguração a livraria Shakespeare & Cia. passou a ser ponto de referência para os escritores da língua inglesa que moravam em Paris, principalmente pela maneira como ela funcionava: alugava livros para leitura em casa, ao invés de vendê-los; com o tempo, os leitores franceses, principalmente os escritores, passaram, também, a frequentar a livraria.
O sucesso se deve, segundo relatos que ficaram para a história, à maneira cativante da proprietária atender os fregueses, atenciosa, culta e, sobretudo, elegante; peço a Hemingway, que foi seu grande amigo, que a descreva com melhor propriedade:
“O rosto de Sylvia era animado, de linhas marcantes, olhos castanhos vivos como os de um pequeno animal e tão alegres como os de uma menina, os cabelos, ela usava penteados para trás da sua bela testa. Tinha lindas pernas, era amável, alegre e participante – Paris é uma Festa, E. Hemingway, 1950”
Tenho aqui à minha frente duas fotografias de Sylvia Beack, uma delas, que serve de capa para o livro autobiográfico – Shakespeare & Cia, 2004 – , ela está na porta da livraria e a outra, já no texto, postada de frente a James Joyce, no interior da livraria; em ambas as fotos, suas pernas, objeto de cobiça de Hemingway, estão escondidas por um tailleur que avança até abaixo dos joelhos; no entanto, peço licença ao romancista para acrescentar um detalhe do seu rosto: É o de uma bela mulher, consentâneo com o seu porte frágil, delicada, transmissor de serenidade ao interlocutor.
Enquanto rememorávamos algumas destas passagens que escrevi acima, Hélio Junior e eu, que refazíamos os percursos feitos por Hemingway, como disse na ultima crônica; já estávamos iniciando o contorno do Jardim de Luxemburgo, uma vez que vínhamos da Rua Fleurus (onde moraram Gertrude Stein e Alice Toklas), no sentido da Rua Odeon, alcançamos o Teatro Odeon e caminhamos à procura do no. 12. Não havia mais nenhum sinal da antiga livraria, ela havia sido fechada pelos alemães em 1941, durante a ocupação de Paris pela Alemanha e sua proprietária enviada para um campo de concentração.
Resolvemos continuar nossa caminhada e chegamos às margens do rio Sena, nas imediações da Catedral de Notre Dame; sentamos em um banco e concluímos nossa discussão com a seguinte observação histórica: Foi Sylvia Beack quem fez a primeira impressão do livro que mudou os rumos da literatura mundial: Ulisses de James Joyce.
Contarei esta história na próxima semana!

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

PARIS ERA (É) UMA FESTA!


Quando Hélio Junior e eu viajamos para Seul, achamos prudente fazer uma escala em Paris, para recuperarmos as energias para o longo tempo de voo que ainda nos aguardava; seria um dia todo para desfrutarmos do encantamento da “cidade luz”.
Propus e o companheiro de viagem aceitou o desafio: caminhar por alguns dos percursos feitos pelo escritor americano Ernest Hemingway na década de vinte do século passado, durante o tempo que ele ali viveu.
Hemingway chegou a Paris na companhia de Hadley, com quem havia se casado há poucos meses, na antevéspera do Natal de 1921; trouxe, entre seus guardados, algumas cartas de apresentação que lhe foram fornecidas pelo seu amigo, o escritor Sherwood Anderson, uma espécie de mecenas intelectual dos novos escritores americanos e que desfrutava de enorme prestigio nos Estados Unidos pelo seu recente livro de crônicas “Winesburg, Ohio, 1919”.
Algumas destas cartas, como ele mesmo, Hemingway, comentou mais tarde, foram muito úteis para o seu projeto de viver na cidade, cuja cultura dominaria o século XX; "a ultima das cidades humanas” no dizer de James Joyce.
Dentre todas as pessoas de quem Hemingway se aproximou a partir destes contatos iniciais, duas figuras devem ser destacadas, principalmente pelo carinho que ele sempre se referia as mesmas; trata-se das norteamericanas Gertrude Stein e Sylvia Beach.
Provavelmente, por orientação de algum amigo, Hemingway e Hadley hospedaram-se em um modesto hotel localizado à Rua Jacob, no chamado “coração” da rive gauche (lado esquerdo do rio Sena); algumas semanas depois, mudaram-se para um apartamento que alugaram à Rua Cardinal Lemoine, não muito distante de onde estavam, nas imediações do Pantheon e do Jardim de Luxemburgo, isto é, dentro do Quartier Latin.
Resolvemos, Hélio Junior e eu, iniciar nossa caminhada a partir da Praça Contrescarpe, localizada bem no inicio da Rua Cardinal Lemoine; antes disso, entramos em um bar nas suas imediações, tomamos uma garrafa de vinho e fizemos comentários a respeito da vida de Hemingway em Paris e, sobretudo, sobre o seu livro póstumo “Paris é uma festa”.
Não sei por que, porém, senti um pouco de nostalgia ao pensar na marcha inexorável do tempo; provavelmente pelo fato de que aquele ambiente fez-me lembrar de algumas passagens daquele livro que cito acima; há uma, inserida no texto Um bom café na Place Saint Michel: “Era um café agradável, quente, limpo e acolhedor. Pendurei minha velha capa no cabide, para secar, coloquei meu surrado e desbotado chapéu de feltro na prateleira que ficava acima dos bancos e pedi café au lait, tirei do bolso do paletó o caderno de notas e um lápis e comecei a escrever”, que me coloca, mesmo que não quisesse, na posição de narrador-personagem.
Caminhamos um pouco pela Rua Cardinal Lemoine, cumprimentamos, com acenos de mãos, algumas figuras postadas em janelas de alguns prédios com a presunção de que o alvo fosse o escritor americano e, como não fomos correspondidos no gesto amigável, prosseguimos com nosso programa de caminhada, repetindo os passos de Hemingway; a próxima parada seria a casa de Gertrude Stein, localizada à Rua de Fleurus, 27.
De onde estávamos, caminhamos por ruas estreitas no sentido do Boulevard St. Michel, atravessamos o Jardim de Luxemburgo e já estávamos na rua onde morou, por quase quarenta anos, Gertrude Stein e sua companheira Alice Toklas.
A imagem que tenho de Stein (fotografias) lembra-me uma figura estranha, porém, prefiro que Hemingway a descreva, quando a viu pela primeira vez: “A senhorita Stein era uma pessoa grande, mas não alta, e corpulenta como uma camponesa. Tinha belos olhos e um vigoroso rosto germano-judaico, que me lembrava uma camponesa do norte da Itália, com suas roupas, sua face móvel e seus grosseiros e brilhantes cabelos de imigrante, que ela usava penteados para cima. Falava sem parar, a respeito de pessoas e de lugares”.
A respeito da vida e da personalidade de Stein, repito o que disseram e o que dizem os críticos: Viviam em homossexualismo, ela e Alice, em um apartamento, em cuja entrada do prédio existe, ainda hoje, uma placa com os dizeres “aqui viveu Gertrude Stein e Alice Toklas”; e, segundo descrições da época, possuíam um imenso salão, com as paredes repletas de quadros de pintores famosos da época (Picasso, Braque Matisse, etc.), onde recebiam os convidados (pintores, poetas e escritores) para os famosos e festivos jantares de sábados.
O endereço da sua casa – Fleurus 27 - tornou-se tão popular que era uma espécie de santuário para artistas e escritores e deve ser esta a razão de Hemingway tê-la procurado; sua fama aumentou depois que ela “inventou a escrita automática, no estilo abstrato”, que alguns consideram como o cubismo da escrita; é da sua lavra um dos mais famosos versos da literatura mundial: “Uma rosa é uma rosa é uma rosa”.
Viram? Não deu espaço para falar sobre Sylvia Beach, espero-os na próxima semana!

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ROSA AMÉLIA, ALIRIO E O DESTINO

Na qualidade de narrador, confesso que não agi com a neutralidade esperada de alguém que deve se colocar, como observador dos acontecimentos, equidistante dos fatos narrados e não como aconteceu em uma das minhas últimas crônicas, a respeito do amor de Rosa Amélia e Alirio.
Não sei se estava contaminado pela leitura de “Dom Casmurro” de Machado de Assis, onde o narrador-personagem Bentinho passou aos leitores uma imagem, no mínimo destorcida, a respeito da conduta de Capitu.
Vou tentar desfazer este mal entendido, contando a sequência dos acontecimentos, segundo consegui apurar e, principalmente, tentarei evitar influenciar meus leitores no julgamento que serão tentados a fazer de Rosa Amélia.
Outras vezes, outras tardes-noite Rosa Amélia voltou para a beira do rio, com olhos grudados lá onde ele fazia sua curva, aguardando alguém que seu coração teimava em dar-lhe esperança que voltaria; em silêncio ela recordava, sem entender o significado, o ultimo verso da canção que ele cantara, praticamente sem olhar-lhe:

Um amor com tantos donos
O melhor que faço é esquecer.

Rosa Amélia ainda se lembra que após cantar, Alirio forçou a velocidade da canoa e partiu... O que teria acontecido minha Nossa Senhora da Luz! Ainda envolvida pelas recordações, nem percebeu que começava a escurecer; ela ainda viu alguma claridade lá na curva, seus olhos viam em linha reta e não conseguiram enxergar quem clareava aquela imensidão silenciosa da natureza: era o astro rei que não mais se mostrava, escondido que estava pela montanha; sua presença era apenas adivinhada!
Seus olhos se encheram de lágrimas e, sem autorização, desceram pelo seu rosto aos pares; Rosa Amélia agora chorava, choro doido, porém, benfazejo para o coração amargurado; choro de alguém que, pela primeira vez, sentia que suas forças emotivas estavam se esvaindo.
Quem teria colocado esta dúvida na cabeça de Alirio, meu Deus do céu!
Com a fuga da claridade do dia, a noite começou a ocupar o seu lugar e, com ela, o silêncio se fez presente; nestas horas o pensamento não encontra desculpa para distrair com outros acontecimentos que não sejam os que dominam as preocupações; Rosa Amélia estava preocupada com a possível perda do seu amor!
Conseguia-se ouvir, sem muito esforço porque um vento marulheiro tornava perceptível, que a brisa agitava, com suavidade, a correnteza aveludada do rio; ao longe, quase que perdida no firmamento, avistou-se uma estrela, a primeira da noite; depois outra e mais outra começaram a brilhar, clareando o céu.
Rosa Amélia falava para si mesma: Deve ter havido um desencontro, ele sabe como é querido!
Se Rosa Amélia conseguisse viajar nas asas do impossível e acompanhasse Alirio na sua volta para casa e, além disso, conseguisse entrar no seu pensamento, ela veria que o acontecido, como tudo na vida, tem uma explicação.
Foi o seu tio João Claro quem encheu sua cabeça; contou-lhe fatos com tanta convicção, que provocou comentários da sua mãe, que estava presente:
- Esta moça não serve para você meu filho, quando o povo fala é porque tem alguma verdade; não existe fumaça sem fogo!
Para sermos justos é preciso que se diga que Alirio, mesmo atingido pela possível traição da amada não aceitou, sem relutar, a versão que estava sendo exposta por interlocutores tão próximos da sua vida; durante vários dias conversava consigo mesmo na busca de um caminho a ser seguido. Debalde!
Um dia, sempre haverá, às vezes tardiamente, um dia, ele reencontrou Rosa Amélia; era uma tarde de domingo, como todas as tardes de domingo no arraial “Poleiro de Pomba”; os jovens estavam reunidos na porta da igreja; conversavam sobre tudo e sobre nada; digo-lhes porque sei, Rosa Amélia era a mais bonita de todas as moças que estavam ali.
Seu vestido era da cor do batom dos seus lábios, forte no vermelho, com alguns enfeites de rosinhas azuis e brancas nas barras da saia; no rosto se via as marcas de ruge nas duas maçãs, cabelo com duas tranças que se abraçavam no meio da cabeça.
Primeiro foi ela quem o viu, todo garboso, trajando um terno de brim mineiro, escuro com riscas brancas, parece que feitas com giz, porém, bem discretas, lenço branco no bolsinho, com algumas dobras, como era a moda, chapéu quebrado na testa, camisa branca de colarinho que dobrava sobre a gola do paletó.
Como muitas vezes acontece, o destino permitiu o reencontro, embora, sob meu ponto de vista, fora do tempo. Rosa Amélia tinha outro amor!
Mesmo assim os dois se aproximaram e houve oportunidade de Alirio dizer-lhe:
- Como eu lhe queria bem! Eu era tão seu e você era tão minha, no entanto, andamos cada qual para seu lado. Eu tive tanta saudade!
Rosa Amélia nada disse, teve vontade de abraçá-lo, porém, o tempo passou!
Quem estivesse mais perto deve ter observado que os dois choravam; por quê?
Como conheço a história, posso repetir o que Abelardo disse, no século XI, para seu amor impossível Heloisa:
“Você era feliz? As pessoas não sabem quando são felizes, pelo menos não no momento em que são”.


quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Gato, papagaio, televisão e outras futricas

O assunto só veio à tona porque o menino Felipe chegou de lá trazendo a notícia:
- Eles não têm gelo; demorei um pouco porque a mulher do senhor Neguinho pediu para eu ajudar a procurar o gato.
- Não há quem encontre este gato, replicou de imediato a Da. Marcelinha.
- Por quê? Quis saber Marília, minha mulher; curiosa e, sobretudo, preocupada com os animais de estimação dos peões.
- Bão, não tenho certeza, mas acho que o senhor Neguinho o matou e enterrou lá praqueles cafundós, no meio daquela capoeira de assa-peixe, vizinho do pasto barba de bode.
- Acuma? Por que ele fez isto Da. Marlene, interrompeu a já assustada Da. Maria, esposa do Fidelino; aliás, naquela altura, todos os que participavam da animada reunião da cozinha ficaram curiosos.
- Bão, não tenho certeza, mas a filha dela contou para nós que o gato deu um pulo “prá riba” do som do senhor Neguinho e derrubou tudo no chão; depois disto, o som não funcionou mais. O problema maior é que o senhor Neguinho quando “bebe” fica meio azaranzado e, sem mais quê nem pra quê, deixa todo mundo desorientado na casa deles; é um Deus nos acuda! É só começar a beber uns goles a sua mulher, na companhia das crianças, já fica esperta; junta tudo quanto é espécie de faca e esconde; imagine que até as daqui de casa tenho que esconder! De imediato a mulher manda uma das crianças correr aqui em casa dando o aviso e eu, de imediato, escondo todas as minhas facas.
- Mas Da. Marlene, a casa deles é tão distante da sua e, mesmo assim, ele vai até lá na busca de faca?
- Bão, até hoje não foi; mas é bom não descuidar!
- Se eu fosse a senhora, Da. Marlene, volta a intervir a Marília, ainda curiosa e agora, como se vê, preocupada com as crianças, não deixava os seus filhos se aproximarem da casa dele, porque a gente nunca sabe quando ele está meio “loco”.
- Felipe, quem mandou você ir lá agora?
- Foi o Dotô que mandou buscar gelo pra bebida dele!
- Ah, tá bão! É por isto que eu falo que foi o senhor Neguinho quem matou o gato numa destas crises de bebedeira com loucura. “Anliás” ele fala que foi o cachorro quem matou o gato, mas não acredito nisto, porque os dois animais foram criados juntos desde pequenos, como se fossem irmãos. Você não há de ver que o senhor Neguinho teve a coragem de ajudar a procurar o gato no terreiro? Acho muita falta de consideração, não é mesmo? Mas, também, acho que ela não era boa dona de gato, “anliás”, longe de eu querer feitorar a casa dela, nem bancar a leva e traz “aporém”, fiquei sabendo que até o papagaio que ela tem, já bicou no seu pé por duas vezes. Fico assuntando: animal de estimação, igual ao papagaio, não bica no dono, não é mesmo Da. Marília?
Bastante preocupada com animais de estimação, como vimos acima e, sobretudo, com desejo de se inteirar um pouco mais destes problemas que afligiam a vida cotidiana dos nossos funcionários, Marília, com a calma que lhe é peculiar, quis saber, na opinião de Da. Marlene, qual seria a razão do papagaio ter bicado a sua proprietária.
- “Seio” não. Só “seio” que depois disto o bichinho não quer mais morar lá com eles!
O assunto sobre o gato começara a esfriar, resolvo perguntar o que ela achou da nossa nova antena parabólica.
- É muito boa, “Dotô”, é melhor até que a do senhor Neguinho, a imagem aqui está muito melhor que a dele! Eu e o Catalão é que não estamos muito satisfeitos, porque as duas antenas ligadas perto da nossa casa “chupou” todas as imagens e a nossa televisão piorou um absurdo; agora, se eu quero assistir a novela, o Catalão tem que ficar do lado de fóra da casa, controlando a direção do pau da antena, ah, ah, ah!
- O pior de tudo, interveio o Catalão, quem escuta de longe a gritaria da minha mulher, pode entender de maneira errada o que ela está dizendo: vira o pau para a direita! Vira o pau para a esquerda! Segura o pau neste rumo ai mesmo benzinho! Não mexa o pau agora amor, estão quase beijando!
Para evitar futuros desdobramentos e mal entendidos, doei a nossa antiga antena para o casal.

Afinal, Capitu traiu ou não traiu Bentinho?

Semana passada Marília e eu fomos homenageados com um almoço, que nos foi oferecido pelos amigos José Antonio e Waldete Facure; ao lado de saborearmos um delicioso bacalhau “à moda Waldete”, acompanhado de um dos famosos vinhos da adega do casal, conversamos sobre tudo e sobre todos e, como não poderia deixar de ser, sobre literatura.
Com o intuito de animar a discussão, a senhora Sônia, filha do casal, fez-me uma pergunta inusitada: o senhor acha que Capitu traiu Bentinho?
Como os leitores devem estar observando, Sônia se referia ao famoso romance “Dom Casmurro” escrito por Machado de Assis, no final do século XIX; dei-lhe minha opinião, baseado na leitura e releitura do famoso livro.
Diante da minha exposição, surgiram discussões e pude observar que tínhamos alguns pontos de vista divergentes sobre o assunto; no final, Sônia sugeriu-me que escrevesse nesta minha coluna, resumidamente, o que debatemos oralmente; é o que estou fazendo, embora com a consciência e, sobretudo, com autocrítica para saber que este assunto já foi e continua sendo discutido por verdadeiros especialistas no assunto “Machado de Assis” e, também, ser impossível transcrever tudo o que conversamos, neste limitado espaço que me é reservado pelo Diário da Manhã.
Sob meu modesto ponto de vista, a discussão sobre este livro não pode ser focada simplesmente na suspeita se o Ezequiel era filho de Bentinho ou do seu íntimo amigo e colega de seminário Escobar; parece que Machado de Assis, ao escrever o romance tinha a intenção de deixar, para a posteridade, um enigma a ser resolvido.
O nome Capitu já é emblemático, senão vejamos: existe a dicionarização do vocábulo capítulo que é um substantivo; se tomamos o radical capitul e acrescentarmos a desinência verbal - ar, teremos a formação do verbo capitular (rendição); Machado de Assis teria em mente este jogo de palavras ao escolher o nome desta famosa personagem? Nunca saberemos!
Se estivermos falando em possível armadilha preparada pelo nosso romancista maior, vejam o que alguns estudiosos encontraram no texto machadiano: no capítulo 62 do livro há evocação à tragédia de Otelo na peça de Shakespeare, onde Otelo é convencido por Iago que Desdêmona o está traindo. Estaria o nome SantIAGO (sobrenome de Bentinho), embutindo o nome de Iago? Esta citação não foi colocada por Machado no texto por acaso, todos os nomes dos seus personagens eram baseados em pesquisa!
Pelo menos neste romance, segundo penso, o nosso bruxo do Cosme Velho não deu suficiente voz para as duas principais personagens do sexo feminino se defenderem para a posteridade sobre este imbróglio; parece, à primeira vista, que o narrador-personagem, no caso o próprio Bentinho, tendia a desabonar a má conduta de Capitu (se é que houve) por provocar-lhe sofrimento pelo ciúme de que era possuidor.
A mãe de Bentinho, Da. Glória, viúva e, portanto, a mantenedora da casa durante todo o desenrolar da trama, tinha pouca força perante os demais personagens, inclusive não tendo ficado claro, se ela desconfiava ou não de Capitu; ele mesmo, Bentinho, colocou dúvidas e desconfianças na cabeça de Da. Glória, sem consultar-lhe:
- Estou achando minha mãe um tanto fria e arredia com você! Acho-a fria, também, com Ezequiel, ela já não lhe faz as mesmas graças.
Ao invés de questionar a mãe e, por conseguinte, dar-lhe voz para se explicar, Bentinho prefere perguntar a outro interlocutor:
- Por que mamãe não nos visita?
- Deve ser por causa do reumatismo, responde o agregado José Dias; Bentinho gostaria de ter ouvido: É por causa de Capitu!
No que diz respeito à Capitu, Bentinho, como advogado e, principalmente, como personagem-narrador, expôs aos leitores sua peça de acusação com maestria, e Capitu teve direito a voz somente quando autorizada por ele, o narrador; Bentinho falava por Capitu e arrolava as testemunhas que lhe interessavam; ouvia, inclusive, sua própria versão, totalmente contaminada pelo ciúme e, principalmente, pela defasagem do tempo entre o acontecido e a narração (Bentinho, ao fazer a narrativa, estava com sessenta anos de idade, e a história inicia-se quando ele tinha 15), este longo interregno pode levar as pessoas, como sabemos, a esquecer muitos fatos do tempo pretérito.
Finalmente, como juiz do episódio, Bentinho condenou Capitu e mandou-a para a Europa onde acabou, ainda nova, sem nunca ter outro relacionamento, sempre escrevendo cartas para Bentinho, pedindo reconsideração.
Bentinho, personagem-narrador do romance, tecnicamente não tem o poder de entrar no pensamento de Capitu e dizer-nos o que ela pensava sobre a acusação. Ele não lhe deu, nem ao menos, o beneficio da dúvida!
O que acha o leitor?