MINHAS CRÔNICAS

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Ama de leite, instituição brasileira?

O escritor alemão Peter Gay, autor da melhor biografia de Sigmund Freud, faz referência no seu livro O século de Schnitzler – A formação da cultura da classe média, 1815-1914, a um episódio que me despertou a atenção para o assunto ama de leite.Na Áustria de 1861, a conduta indicada na contratação de uma ama-de-leite era assunto de um dos capítulos de um livro muito popular na época, intitulado “Administração do lar”: Quando “devido à doença, ausência de leite, acidente ou alguma coisa natural a mãe for privada do prazer de amamentar seu bebê, deve procurar uma ama de leite e examiná-la cuidadosamente. A idade, se possível, não deve ser menos de vinte nem mais de trinta anos, e a saúde deve ser excelente em todos os aspectos, com o corpo livre de doenças eruptivas; deve ser uma mulher de tez corada, seios grandes, arredondados e elásticos, mamilos com aparência firme e ereto, se for murcho, pendido e relaxado, o leite será imperfeito em sua constituição e com qualidade nutritiva deficiente”.Quem leu Madame Bovary, majestoso livro escrito por Gustave Flaubert e publicado pela primeira vez em 1873, deve estar lembrado de um acontecimento, até certo ponto inusitado, narrado pelo autor:“Um dia, Emma sentiu, de repente, a necessidade de ver a filhinha que fora levada para a casa da ama de leite, mulher do marceneiro, já há seis semanas... Entre, disse a mulher, sua menina está lá, dormindo. A filha de Emma dormia no chão, num berço de vime. Ela a pegou com a coberta que a envolvia e pôs-se a cantar docemente, balançando-se”.Embora a descrição da cena possa parecer muito rude, aliás, é bom que se diga, consentânea com as idéias, exageradamente antiburguesas do autor, que escrevia pela cartilha do modernismo e propugnava pelo realismo no romance, podemos verificar elos de ligação entre as duas situações.O escritor romancista, apesar de passar para o leitor a ideia de que está escrevendo uma ficção, não consegue fugir do cotidiano em que vive e, na sua escrita, mistura a realidade com algumas pitadas de emoções da sua inventiva.No caso de Flaubert, especificamente nesta passagem acima descrita, percebe-se, nitidamente, que ele descreve a personagem Emma (Madame Bovary) sem isenção de ânimo, atacando-a, como se ela fosse uma figura real, uma burguesa desnaturada, que entregou sua filha recém-nascida a uma ama de leite sem, contudo, desmerecer o papel desta na sociedade daquela época.No Brasil, mais ou menos pela mesma época, quando existia a escravidão, utilizava-se, sem cerimônia, das mulheres escravas recém-paridas, para amamentar as crianças, cujas mães, por várias razões, não conseguiam fazê-lo; eram as famosas amas-de-leite, tão presentes na nossa literatura.O lado trágico da questão, tirante a escravidão em si, é a constatação da existência do mercado de escravas amas de leite, como nos relata a historiadora da Uerj, professora Marilene Rosa Nogueira (Traumas femininos no cotidiano da escravidão):“Normalmente o encargo era dado às escravas que já tinham filhos, como refere um anuncio de jornal da época, – Alugava-se uma negrinha de 1ª cria, sem a cria; alugam-se três escravas ladinas de 14 e 16 anos, com habilidade e uma com um filho de um mês e de muito bom leite, todas livres de vicio e moléstias”Segundo ainda a professora. Marilene Rosa, um viajante de nome Charles Expily, de passagem por estas paragens, escreveu em suas anotações de viagem:“Com poucas exceções, todas as jovens negras não têm outra preocupação além de serem mães; uma ama de leite é alugada por mais que uma engomadeira ou uma cozinheira.Para que dê honra e lucro e poder ser colocada em boa casa, o senhor, durante a gravidez, lhe reserva trabalhos mais leves; a própria dona da casa a obedece e às vezes fica sob suas ordens. É preciso evitar que se zangue; uma discussão pode influir na qualidade do leite”.Por ocasião da primeira república ou a chamada república velha, já não existia a escravidão no Brasil,; as mulheres, tanto negras como brancas, gradativamente, estavam ocupando o espaço que lhes estava reservado na sociedade. Ao lado de discutirem seus direitos, estavam cientes dos seus deveres naturais de mães, porém, já sabiam que “as crianças cresciam não era porque a roupa apertava seus corpos”; as revistas Vida Moderna e Fon-fon discutiam assuntos do seu interesse e ensinavam-lhes que chazinhos e simpatias não resolviam todos os problemas de doença das crianças e que a instituição “ama de leite” era assunto do passado.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

COLAR DE CONTAS VERMELHAS


Era o encerramento da festa de Santo Reis, toda a população que vivia nos cafundós de Esteira estava na expectativa da chegada da hora da missa; o Padre chegara na noite anterior, com tempo de comandar a reza da novena que iniciara na 2ª. Feira; hospedara-se na casa do Coronel Tibúrcio, o festeiro do ano.
Quando falamos em população podemos levar o leitor a pensar em uma multidão de gente, porém, a bem da verdade, o lugarejo deveria ter, no máximo, quinhentos habitantes, contando com os moradores da zona rural.
Todos se conheciam, pois, na via principal, chamada de “Rua do Coronel”, se concentrava a maioria absoluta dos “Esteirenses”; em uma das casas desta rua, morava Maria das Dores, filha do festeiro e, para que todos já saibam de antemão, o homem de maiores posses pecuniárias da região.
Feitas as apresentações, convido-os a se dirigirem comigo até a casa de Maria das Dores, para acompanharmos o que estava acontecendo no seu interior, naquela manhã que antecedia o grande acontecimento da festa: a missa solene.
Antes que cheguemos à casa, preciso dizer-lhes que Maria das Dores era uma menina-moça, provavelmente ao redor de quinze anos de idade; não é só por ser filha de família rica que vamos considerá-la bonita, na verdade era unanimidade a opinião de todos os que a conheciam: ela era uma caboclinha muito catita, formosa como a gabiroba madura!
Maria das Dores sentou-se na beira da cama; com as pontas dos dedos dos pés, procurou os sapatos que estavam escondidos, arrastou-os para o seu ângulo de visão e estampou um leve sorriso de satisfação, Margarida, sua ama-de-leite, havia feito o que pedira: amaciou o couro com gordura de galinha e guardara-o debaixo da cama, para não ressecar.
Levantou-se e, incontinente, mirou-se no espelho que estava bem ali, na sua frente.
Experimentou, pela 3ª ou 4ª vez, o vestido vermelho com alguns bordados de flores ornamentando sua barra; retirou-o e pediu à Margarida que colocasse um pouco mais de goma na saia branca que iria ficar por debaixo.
- Gostaria que a saia ficasse mais engomada para dar uma armação maior no vestido e aparecesse com maior destaque as flores da sua barra; incontinente, como se fora um autômato, Margarida pegou a saia e foi fazer o solicitado.
Seu rosto, depois que passou um pouco de “pó de arroz”, seguido de uma camada de “rouge” nas duas maçãs da face, ficou mais mimoso; com um pedacinho de carvão, escureceu um pouco a sobrancelha.
Vestiu a saia engomada, seguida do vestido vermelho com rosas na barra, calçou os sapatinhos e, novamente, se fiscalizou no espelho.
- Margarida, não estou me achando bonita, está faltando alguma coisa que não sei dizer.
- Eu sei o que falta, é somente a ansiedade da criança para encontrar o Zé Teodoro.
- Será que ele vem?
- Só se for besta demais, deixar de ver uma belezura desta que nunca fez regateirage?
Maria das Dores fez um muxoxo; nesta hora o espelho lhe informou o que estava faltando: o seu colar de contas vermelhas, presente do Zé Teodoro e que ela escondera da família.
- Margarida, não se esqueça, nunca, este segredo é só de nós duas: você me presenteou com este colar!
Colocou o adereço, arranjou melhor a fita que enlaçava sua cintura, passou a mão na tiara de seda que estava encobrindo um pouquinho sua testa lisa e delicada e saiu toda saltitante do quarto, ao encontro de Margarida que já devia estar aguardando-a para irem, juntas, a igreja.
O olhar, muitas vezes, denuncia o que o coração esconde; Margarida mudara de feição, seu cenho ficara carregado, seu sorriso passou a ser um esboço de riso, seus olhos evitavam os olhos da sua “filha de leite”; ao tentar falar, seus lábios tremiam e as palavras não saiam.
- Aconteceu alguma coisa? Conte-me a verdade, o Zé Teodoro não virá?
- Acho... acho que ele não poderá vir, meu anjo, aconteceu alguma coisa de terrível, foi picado pela maueza de uma cascavel bem no lusque-fusque do dia!
Maria das Dores abraçou-a com sofreguidão, as lágrimas, que escorriam de ambas as faces, se misturaram e aqueceram os seus rostos pálidos; ficaram abraçadas, em silêncio, por algum tempo.
- Margarida, eu também gostaria de morrer!
- Não fala assim minha santa, para Deus nada é impossível, vamos rezar pelas chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo, Ele é mais forte que o anhangá.
Foram, por obrigação social, cumprir o dever de participar da missa, Margarida e Maria das Dores, rezaram e choraram todo tempo; na saída o Coronel perguntou à filha a razão de tanta tristeza.
- Foi o colar de contas vermelhas, presente da Margarida, que arrebentou e não consigo mais juntar as peças!

DISCUSSÕES SOBRE O COTIDIANO EM UM CAFÉ EM VIENA

Sei que faz muitos anos, porém, não consigo me lembrar do ano, sei que era primavera pela abundância de flores em todos os jardins; sentamos, Marília e eu, a uma das mesas que estava vaga, pedimos dois cappuccinos e dois apfelstrudel (bolo de maçã, nozes e queijo) e passamos a observar a movimentação de gente que desfilava no que restou da calçada que havia sido invadida pelo café.
O local, café Landtmann, situado na Ringstrasse (avenida circular de mais ou menos quatro quilômetros de extensão que circula a parte velha de Viena), que havia sido recomendado por um médico amigo residente em Salzburg, a quem havíamos visitado na semana anterior.
Conversávamos sobre as impressões da viagem e principalmente sobre a experiência de termos hospedados no pitoresco hotel Singer encravado nas montanhas alpinas e das nossas aventuras pelos seus arredores.
Um jovem casal de namorados estava sentado a uma mesa na nossa vizinhança; trocavam, em uma língua não inteligível para nós ambos, possivelmente juras de amor; o idílio foi interrompido pela chegada de um senhor mais idoso que trajava uma típica vestimenta tirolesa (calção verde e branco, sustentado por um suspensório, camisa branca, meias de cor verde, compridas até abaixo do joelho, botas de cano curto e na cabeça um chapéu, também verde, encimado por uma pena, possivelmente de pavão, vermelha).
Era um senhor com idade, provavelmente, acima de 75 anos; seu porte físico era avantajado, principalmente à custa de um ventre bastante volumoso, seu rosto, muito vermelho, deixava saliente parte das suas bochechas, uma vez que usava costeleta, ou suíça, como gostam de nominá-la, muito larga, emendando com um vasto bigode que sobrava nas suas duas extremidades, como se fora duas barbatanas brancas.
Pareceu-nos, à primeira vista, tratar-se do pai da mocinha, pela maneira carinhosa e com tanta intimidade que a tratou; com o “genro” ele foi mais parcimonioso nos gestos, embora não faltassem os sinais de gentileza mútua.
Sentou-se e, como por encanto, passaram a conversar em inglês, parece que com a intenção de deixar-nos à vontade para participar das discussões, pois, com a sua chegada, passamos a “fazer parte da mesa vizinha” procurando inteirar, na verdade bisbilhotar, o que faziam e o que conversavam.
- Onde está a mamãe? Perguntou a mocinha (confirmando, portanto, nossa hipótese de ser ela a filha)
- Só Deus sabe, agora inventou de fazer um curso de francês, além de outro para aprender a manusear o computador.
- Não te falei que ela era a filha? Dificilmente me engano, disse à Marília, tentando exibir meus conhecimentos de Sherlock Holmes.
- É pode ser, mas acho estranho este homem tão idoso, andando sozinho sem a mulher, acho que ele está com alguma dificuldade de relacionamento em casa; depois, do jeito que ele falou, me pareceu que está muito distante da esposa!
- Mister Fritz, o senhor não quer ir almoçar conosco? Descobrimos um restaurante situado bem perto daqui, indicado por um amigo, onde servem um Wiener Schinitzel de carne de porco extraordinário.
- Boa idéia, porém, prefiro com carne de frango ou de peru!
Tomaram, cada um deles, um cálice de champanha e se foram, sem antes se despedirem, com um gesto cordial, dos novos e imprevistos confidentes.
- Não te falei? Ele nem se preocupou em telefonar para a mulher.
- Aliás, a bem da verdade, nem a filha se preocupou com a mãe!
Esta cena e principalmente este diálogo, seriam improváveis na Viena no final do século XIX, como nos conta Allan Janik (A Viena de Wittgenstein, Ed. Campus, 1991):
“O lar de um homem era o seu castelo, o pai de família era o avalista da ordem e da segurança e, como tal, possuía autoridade absoluta. O lar era o refúgio do mundo lá fora, um lugar onde não se permitia a entrada dos detalhes do mundo cotidiano”.
Ficamos com as nossas dúvidas, porém, não por muito tempo, pois o café havia esfriado e resolvemos procurar um lugar para almoçar, se possível um Wiener Schinitizel de peru; antes que algum curioso nos pergunte, escolhemos um restaurante bem distante do escolhido pelos nossos “novos amigos”.
A vida é a arte do encontro; quem sabe, algum dia, voltaremos a encontrar o Mister Fritz, se possível, para alegria de Marília, bem contente com a Miss Fritz.