MINHAS CRÔNICAS

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

O ULTIMO DIA DE VIDA DE CHARLES DICKENS


 Provavelmente, Charles Dickens foi o mais popular romancista da era  Vitoriana (o nome “Vitoriana” advém da influência, principalmente sobre os costumes,  que a Rainha Vitória exerceu sobre toda a comunidade inglesa, durante seu longo reinado).
                                   A biografia de Dickens tem sido discutida à exaustão, principalmente na Inglaterra, onde ele nasceu (1812), viveu e morreu (1870); para servir como exemplo da sua importância na literatura mundial, basta que se diga que todos os seus livros continuam sendo editados e reeditados no presente, principalmente os seus dois  maiores clássicos “Oliver Twist” e “David Coperfield”, este último, praticamente  a sua autobiografia.
                                   Gostaria de dividir com meus leitores o que “ouvi” do escritor  e famoso biografo inglês, Peter Ackroyd, quando ele, ao escrever a biografia de Dickens, narra o último dia da sua vida, ocorrida na sua casa de campo situada em Gad´s Hill, no condado de Kent, perto da cidade de Londres;  a região é, também, conhecida como os “Jardins da Inglaterra” pela sua beleza exuberante.
                                   Em suas memórias, Dickens deixou registrado que quando criança, com a idade de mais ou menos 9 anos de idade, costumava passar,  com muita frequência, em frente desta casa e seu pai certa feita lhe disse: - Se você trabalhar bastante e ajuntar dinheiro, esta casa poderá ser sua no futuro; daí para frente estas palavras persistiram sempre nas suas lembranças, até que em 1856 ele, já romancista famoso, conseguiu comprá-la pelo valor de 1.790 libras esterlinas.
                                   Esta casa passou a exercer um verdadeiro fascínio para o escritor, ali ele escreveu muitos dos seus romances e além do seu orgulho de ter conseguido cumprir o sonho do seu pai, ele tinha muita referência literária pelo local, uma vez que Shakespeare descreveu algumas cenas de “Henrique V”  como tendo sido ocorridas naquele sitio.
                                   Peter Ackroyd, seu biografo como dissemos acima, narra os acontecimentos que antecederam a morte de Dickens com realismo extraordinário, ouçamo-lo:
                                   “Era uma quarta feira, dia 8 de junho de 1870, Dickens estava em casa, na Gad´s Hill, rodeado por jardins que eram coalhados de flores e cantos de passarinhos, cuja audição do som era facilitada pelo fato da janela do seu escritório estar sempre aberta; ele amanheceu o dia com bom humor, sentou-se para continuar seu trabalho, estava escrevendo um romance policial “O Mistério de Edwin Droad”, possivelmente sob a influência do seu amigo, o escritor Wilkie Collins, um dos pioneiros do romance policial na Inglaterra; tinha 58 anos de idade e estava escrevendo e vendendo seus livros como nunca.
                                   Ele escreveu por poucas horas, suas ultimas palavras transcritas no papel eram de comovente vivacidade, cheias de movimento, cenas iluminadas; ele agora experimenta fumar um charuto para se relaxar, depois verifica sua correspondência, antes de se juntar a sua irmã Georgina para uma refeição a dois; Georgina informa que logo após sentarem-se à mesa, observou que ele estava com algum problema e pergunta-lhe o que estava ocorrendo.
                                   Sequencialmente ele tenta falar, para por um momento e logo recomeça, agora fala com muita rapidez e com palavras desconexas; Georgina levanta-se da sua cadeira e, alarmada, diz para ele – venha deitar! Sim! Responde ele, deixe-me deitar no chão. Ele já estava inconsciente, estado do qual nunca mais se recuperou, tendo morrido no dia seguinte.
                                   Como primeiro socorro, como era o costume, Georgina removeu o colarinho da sua camisa (era comum os homens da era Vitoriana, usarem um colarinho destacável, que era preso à camisa por um botão de pressão), colocou um lenço separando as duas arcadas dentárias e tentou puxar sua língua para fora da boca.
                                   Como curiosidade, estes colarinhos “postiços” eram removidos e lavados diariamente, as camisas semanalmente, com a intenção, provável, de diminuir as despesas com lavanderia. 
                                   O diagnóstico presuntivo do seu problema pode ter sido um aneurisma cerebral e o colarinho que ele usava foi leiloado, há alguns anos, pela famosa casa de leilões de Londres a Sotheby´s, que, aliás, ainda estava sujo do seu suor; alguém sugeriu que se tentasse procurar nesta amostra de tecido, impregnada pelo suor do romancista, amostras do seu DNA e quem sabe, conseguir-se fazer um clone de Charles Dickens, já que em vida ele foi considerado inimitável.
                                   De minha parte, eu preferiria saber o final que ele estava imaginando para o romance que ele estava escrevendo!


O ESCRITOR E A POLÍTICA


                

                   
  Existem muitas discussões a respeito da necessidade das pessoas envolvidas com a cultura, especialmente o escritor, assumirem posições diante de temas sociais e principalmente políticos.
                        É praticamente impossível conviver em sociedade e não se envolver com assuntos que afetam o dia-a-dia das pessoas, uma vez que ninguém conseguirá ser uma ilha dentro do contexto onde se vive.
                            Recentemente, ao ler o livro  “ A Primeira Guerra Mundial, Lawrence Sondhaus, Editora Contexto, 2011” deparei-me com um tópico que despertou minha atenção; o autor procurava dar uma explicação da razão da eclosão daquela que foi uma das mais violentas guerras que a humanidade  já presenciou .
                            Não pretendo entrar no mérito de outros detalhes  históricos e políticos que foram discutidos pelo autor e que  tiveram  influência decisiva na gênese daquele acontecimento, principalmente a posição belicista da Alemanha que desejava a guerra e o  assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do Império Austro-austríaco, em Sarajevo em junho de 1914, que foi o estopim que se precisava para iniciar o conflito.
                            Gostaria, tão somente, de restringir esta discussão ao que delineei no primeiro parágrafo deste texto: participação na política de pessoas envolvidas com a cultura; para cumprir este desiderato peço aos leitores que me acompanhem em uma pequena viagem que faremos na história.
                                      O século XIX assistiu  uma grande transformação política no ideário dos povos que habitavam o continente  europeu; evoluiu do nacionalismo cultural da era romântica, para o nacionalismo racial e xenófobo, cujo desfecho vimos, no século seguinte, com o surgimento da Alemanha nazista.
                                      Na metade daquele século (1859) Charles Darwin publicou um livro “A origem das espécies” para expor  suas descobertas inacreditáveis, dentre elas a sua conceituação  lapidar: “Na natureza, o mais apto na luta pela existência, sempre sobreviverá”.
                            Alguns destes conceitos foram aproveitados por  adeptos do nacionalismo racial agressivo, principalmente após a fatídica decisão de Darwin de usar imagens e vocabulário bélico para conceituar fenômenos naturais e biológicos e, também, após as teses de Francis Galton (primo de Darwin) que estendeu estes conceitos  à sociedade, com o intuito de promover “melhorias hereditárias”; Darwin chegou a concordar com algumas das  teses de Galton, tais como “talento e genialidade” em humanos eram,  provavelmente, herdados e acreditavam que a hereditariedade deveria ser levada em consideração na escolha dos cônjuges.
                            O  pensamento militar pré-guerra, já contaminado pelo  espírito nacionalista e racial da época,  foi contagiado pelos conceitos de Darwin; um livro, “ Da guerra” de autoria de Carl Von Clausewitz e publicado em 1832,  tinha no seu prefacio, escrito por um Coronel,  um parágrafo que corrobora o que estamos afirmando – “O que Darwin conquistou para a biologia em termos gerais, o autor fez para a história da vida das nações quase meio século antes dele, pois ambos provaram a existência da mesma lei em cada caso - A sobrevivência do mais apto”.

                            É preciso que se diga que não foram somente os militares que “encontraram” na teoria de Darwin apoio ao que pensavam, também isto aconteceu com muitos intelectuais europeus,  principalmente os envolvidos com a literatura, que passaram a desenvolver nos seus escritos, temáticas com mais realismo e naturalismo, com enfoque, inclusive em aspectos de hereditariedade, isto é, passaram a utilizar a literatura cientifica; o que escreviam não era somente imaginativo, parece que utilizavam o microscópio para identificar seus personagens, dando mais realismo as suas vidas.
                              Emile Zola, um dos mais importantes escritores do século XIX, acompanhou, nos seus escritos, algumas das ideias defendidas por Darwin, ao seguir a escola do realismo e do naturalismo; seus personagens, principalmente na novela “Germinal”, são descritos com os episódios, as vezes cruéis,  das suas vidas no  cotidiano (pobreza, ciúmes, doenças, alcoolismo,prostituição) enfim, expõe o lado negro da vida dos homens, inclusive aspectos das suas hereditariedades.
                                      Juntando o que os militares aproveitaram das teorias de Darwin  para seus projetos belicistas, com o que  Emile Zola declarou em 1891: 
                            “A guerra é a própria vida! Na natureza, nada existe que não tenha nascido, crescido ou se multiplicado por meio do combate. É necessário comer ou ser comido para que o mundo possa viver. Somente as nações guerreiras prosperaram;uma nação morre assim que se desarma!”
                              Podemos compreender o espírito favorável a guerra que envolveu a população Austríaca nos momentos que antecederam a 1ª. Guerra Mundial.


O estranho diário de uma senhora inglesa do século XIX



Sala de julgamento da Corte de divórcios em 1858
Capa do livro (biblioteca de HM)


              Não faz muito tempo li uma resenha do livro “The private diary of a victorian lady – O diário privado de uma senhora da era vitoriana” no London Review of books que aguçou minha curiosidade; adquiri o livro, gostei do que li e resumo-o para meus leitores
                        O livro conta uma verídica e inacreditável história ocorrida no século 19 na Inglaterra, cuja personagem principal é a senhora Isabela Robinson e os  principais coadjuvantes são  o engenheiro Henry Robinson e o médico Edward Lane, sendo que este último  entrou na história porque estava no lugar errado na hora errada.
                        Isabela (já era viúva, 31 anos de idade) casou-se com Henry, em 1844, na cidade de Londres e cinco anos após mudaram-se para Edimburgo (Escócia), onde conheceram Lady Drysdale, cuja filha (Mary), era casada com o médico Dr. Edward; como acontecia, com frequência, na Inglaterra da era Vitoriana, algumas pessoas ricas, que era o caso  da Lady Drysdale, costumavam fazer reuniões( chá das cinco) nas suas casas, quando se reuniam, a convite do anfitrião (ã), uma variada gama de pessoas ligadas à cultura, como escritores, intelectuais livre pensadores, artistas, atrizes para discutirem assuntos culturais.
                        Foi em uma dessas “soirées” que Isabela conheceu o Dr. Edward, quando conversaram animadamente sobre assuntos os mais variados possíveis, desde enfoques sobre a solidão em que ela vivia e discussões a respeito de poesia, literatura, especialmente sobre Lord Byron e Goethe,  música, política, viagens em balões, descrença em Deus, universo e, até sobre medicina, como ela escreveu no seu “Díario” ao voltar para a casa.
                        Por aquela época Isabela percebeu que Henry casou-se com ela apenas pela herança que ela possuía e, principalmente, passa a perceber que seus mundos são completamente distintos, enquanto ela se interessava pela literatura, ele só pensava em negócios, que, aliás, trazia-lhes enorme conforto material, pois possuíam outras casas em outros locais da Inglaterra e na Itália, com cinco empregados domésticos, verdadeiro luxo na época, tendo em vista que apenas 1,2% dos 10 milhões de habitantes da Inglaterra em 1867 ganhava mais que 300 libras por ano e apenas 50 mil pessoas, que era o casa deles, ganhavam mais de 1.000.
                        Isabela era dez anos mais velha que Dr. Edward e, segundo ela mesmo escreve no seu “Diário”, não era uma moça bonita, no entanto isto não impediu que ela se apaixonasse por ele, principalmente pela afinidade cultural que percebera; com o tempo estes seus encontros deixaram de ser estritamente culturais e passaram para o idílio definitivo, narrado por ela no “Diário” com riqueza de detalhes.
                        No ano de 1856 Isabela teve que ser internada para se tratar de uma  difteria e nos momentos de delírio febril “entregou” o que guardava no seu consciente, Henry que já estava desconfiado, vasculhou suas gavetas e encontrou o “Diário”, onde ficava provada a sua infidelidade.
                        Incontinente ele entrou com pedido de divórcio junto à Corte de divórcios e causas matrimoniais; era muito difícil se conseguir o divorcio naquela época, o homem deveria provar adultério da esposa, e a mulher, além  de adultério do marido, deveria provar que teria recebido duas graves ofensas (agressão física, por exemplo); Henry alegou que a esposa cometera adultério e como evidência apresentou o “Diário” de Isabela.
                        No dia 14 de junho de 1858 a Corte se reuniu para julgar o caso, com grande presença de público e da imprensa; o advogado de Henry solicita que seja aceito como evidência do adultério, contrariando a tese da defesa, o “Diário” de Isabela ; após discussões entre defesa e acusação, a Corte aceitou o “Diário” como peça do processo; o Presidente da Corte pediu que as mulheres presentes no auditório se retirassem porque haveria passagens no Diário não agradáveis para os ouvidos das senhoras.
                        O advogado de Henry passou a indicar algumas passagens (entradas) do “Diário” a serem lidas pelo serventuário – Dia 7 de outubro de 1854, quando Isabela e Edward se beijaram pela primeira vez e ( ...) 16/10,  “Fomos de carruagem para a estação e no caminho ele agarrou-me nos seus braços e tivemos indecente e carinhosa intimidade” (...).
                        Várias testemunhas foram invocadas por ambas as partes, inclusive o médico Edward que, aliás, negou, com veemência, o adultério, porém, nenhuma delas acrescentou nada que pudesse provar ou descartar os fatos registrados no “Diário”; como ultima cartada, a defesa alegou “insanidade mental da ré”, afirmando que tudo o que ela escrevera no “Diário” era invenção da sua mente doentia, carente de afeição matrimonial e intoxicada pela sua leitura de ficções literárias.
                        Finalmente a Corte concluiu pela absolvição de Isabela, por falta de provas concretas de adultério e negou o divorcio.
                                                Houve grande cobertura da imprensa, com as devidas cautelas para não trazer detalhes do “Diário” que pudessem provocar constrangimento para as famílias; o jornal Saturday Review, publicou um ensaio sobre o livro Madame Bovary de Flaubert, cuja heroína, pretensamente, foi o modelo seguido por Isabela.
                        Por incrível que possa parecer, as mais famosas mulheres retratadas como adúlteras nas novelas escritas no século 19 (Bovary-Flaubert; Anna Karenina-Tolstoi; Therése Raquin-Zola), morreram por suas próprias mãos, Isabela teve um abscesso em um dedo e morreu de septicemia em 1887, com 70 anos de idade.



TRADIÇÕES E ESQUISITICES DOS INGLÊSES

                                      Os ingleses são considerados um dos povos que mais cultuam suas tradições, algumas  até estranhas, diga-se de passagem, para não dizer esquisitas, sob o ponto de vista de nós brasileiros. Só para lembrar, uma delas é o fanatismo com que o Inglês observa o horário das suas atividades, às vezes até as comesinhas do seu dia-a-dia.
                                     O Hyde Park, famoso jardim londrino, como todos os parques e jardins, são de “propriedade” da Rainha ou do Rei de plantão; naquele logradouro há um espaço “Hyde Park Corner” onde, aos domingos, junta uma multidão para ouvir os famosos “speakers”(oradores) que,  por qualquer motivo, sobem em um caixote e fazem discursos a favor ou contra, sobre todas as coisas (movimento gay, partidos políticos, enchente no Paquistão, etc.)
                                    Existe apenas uma objeção: não se pode falar mal da “proprietária(o)” do Parque; porém, esta proibição somente vigora se o orador estiver com os pés no chão, se subir em um caixote, pode falar à vontade e o que quiser; como goiano cabe a pergunta, tem base?
                                Além de serem aferrados às suas tradições, ou talvez por isto, algumas coisas só acontecem com os ingleses; recentemente li o livro “Curiosities of Literature, John Sutherland, 2009) e um dos assuntos enfocados pelo autor chamou-me a atenção pelo inusitado do acontecimento; falava ele sobre o famoso poeta e novelista inglês Thomas Hardy, considerado como o “último dos grandes Vitorianos”, alusão ao tempo da Rainha Vitória.
                                   Hardy nasceu em Dorset (Stinsford) no ano de 1840 e morreu em 1928; foi casado por duas vezes (Florence Dugdale e Emma Gifford) e a temática dos seus textos era carregada de pessimismo; existe hoje uma sociedade que leva e cultiva o seu nome - “Thomas Hardy Society” fundada em 1968, com intensa programação cultural, inclusive com publicação de um jornal, que conta com a colaboração de expoentes da literatura da Inglaterra.
                                   Pois bem, nosso herói foi protagonista de um episódio até hoje ainda não completamente esclarecido; para dizer a verdade, ele não foi o culpado, literalmente falando, da ocorrência, pois isto se deu depois da sua morte; na evolução da narrativa os leitores entenderão a razão da expressão “literalmente  falando” que utilizei acima.
                                   Tudo começou alguns anos antes da sua morte.  Hardy escreveu um documento informando, a quem pudesse interessar, que ele desejava, depois de morto, é claro, ser enterrado em sua cidade natal, local onde ele  sempre foi homenageado e, principalmente, queria permanecer ao lado da sua primeira esposa, que foi o grande amor da sua vida.
                                   No entanto, baseado no que os costumes convencionavam (aliás, por tradição os Ingleses não possuem uma constituição escrita) o pároco encarregado do possível sepultamento, achou melhor perguntar a Sra. Emma Gilfford (a segunda esposa de Hardy) se ela estava de acordo com o que queriam fazer com o corpo do seu falecido esposo.
                                   Aqui peço permissão para utilizar aquela expressão que mencionei no inicio deste texto (literalmente); os leitores hão de convir comigo que Hardy deveria saber que esta sua vontade (ser enterrado ao lado da primeira esposa) deveria causar manifestação de desagrado na segunda. Foi o que ocorreu, a Sra. Emma não aceitou de maneira alguma este fato e, para não dizerem que estava com ciúmes, ela apelou para o renome nacional do falecido – Ele era considerado o grande poeta e escritor da época, era um nome nacional e não apenas regional e merecia, portanto, ser enterrado na Westminster Abbey, ao lado dos grandes poetas da pátria.
                                   Finalmente, depois de muita discussão, adotou-se a solução salomônica: retiraria o seu coração (que seria enterrado na sua terra natal) e o seu corpo foi cremado e as cinzas levadas para a catedral de Westminster, onde ali continua, como Emma desejava.
                                   Não precisa se dizer que o acontecimento (retirada do coração do morto) provocou enorme reboliço no seio da sociedade Inglesa, alguns considerando isto um sacrilégio e mesmo um barbarismo, semelhantemente ao que faziam os Mayas.
                                   O mais hilário (se é que se podem definir estes acontecimentos como hilários) foram os disse-me-disse que passou a circular no meio da população: após a retirada do coração, este foi removido da sua casa pelo seu médico pessoal e guardado em uma lata de biscoitos a qual o gato de estimação do Sr. Hardy teve acesso e como estava com fome, resolveu come-lo; dia seguinte, ao verificarem que a lata de biscoito estava vazia, sem nenhum comentário, torceram o pescoço do gato e levaram a lata para ser enterrada, sem o conteúdo precioso: o coração de Hardy.
                                   Para tentar dar um fim neste falatório, a Hardy Society resolveu fazer uma investigação séria sobre o assunto e concluíram com um comunicado: nenhuma destas versões são verdadeiras, pois qual gato seria tão grande   para conseguir comer um coração humano e principalmente, como ele conseguiria abrir a lata de biscoito? Algumas testemunhas foram arroladas e depuseram que o cobweb (era a raça do gato) sobreviveu por muitos anos após estes acontecimentos.
                                   Outra prova cabal apresentada pela Hardy Society foi a fatídica lata de biscoito que foi encontrada, provavelmente em escavações, em 1960, juntamente com um bilhete do Sr. Bertie (era o nome do jardineiro de Hardy) onde dizia que aquela lata continha, realmente, o coração do seu patrão; foram encontradas algumas gotas de sangue nas suas bordas, cujo estudo de DNA comprovou a afirmativa do Sr.Bertie.
                                   Não falei de outra faceta da personalidade do inglês: sua capacidade de fazer ironia diante de situações adversas; desta vez foram as descrições dos dizeres da lata de biscoito que continuaram a circular entre a população – Em cima da tampa da lata e nas suas laterais, havia vários desenhos de gatinhos, incluindo um deles, retratado em movimento de captura de um pássaro.
                                   Daqui para frente é serviço para a Scotland Yard, teriam dito os diretores da “Thomas Hardy Society”, entregando os pontos!

                                                     



O CÉREBRO E A CONSCIÊNCIA – UM ENÍGMA A SER DESVENDADO



                  Recentemente o neuro cientista português, Antonio Damásio, publicou um maravilhoso livro “E o cérebro criou o homem, 2011”, confesso que tem sido, para mim, um grande desafio tentar acompanhar, pelas páginas deste livro, um assunto que foge do universo do meu mundo de leituras, tanto da área cultural como da medicina, tendo em vista o seu hermetismo.
               Desafiado pelas proposições formuladas pelo autor:  desvendar o funcionamento do cérebro e sua capacidade de racionar e sentir emoções, consegui apreender com esta leitura novos ensinamentos do mundo da neurociência; procurarei, dentro das minhas limitações intelectuais, passar para o leitor um resumo do que aprendi com Damásio.
                   Está claro que não entrarei nas minúcias das discussões médicas de ordem anatômica, neurológica e fisiológica como o autor faz, pois poderia espantar o leitor não iniciado neste assunto; tentarei apenas, após uma rápida incursão nestas searas, sintetizar o pensamento de Damásio sobre a mente e a consciência do individuo.
                   O cérebro possui pouco mais de 1 quilo de peso, contém cerca de 100 bilhões de células nervosas que se comunicam entre si através de 100 trilhões de intercomunicações que formam pequenos circuitos que, combinados, formam circuitos maiores, até completarem as complexas redes ou sistemas; apesar da sua importância vital, não sabemos ainda como ele funciona, mas sabemos que é a máquina mais complexa de todo o universo, pois cada batida do coração, cada movimento respiratório, cada emoção, cada movimentação que o corpo executa, até mesmo os involuntários, são controlados, direta ou indiretamente pela ação do sistema nervoso, sendo o cérebro a peça principal.
                   Podemos dizer, então, que o cérebro humano é uma máquina de enorme complexidade e que alguns quiseram compara-lo a mais complexa delas: o computador digital!  O grande diferencial é o fato de que o cérebro é uma máquina biológica; enquanto que as operações (algoritmo) do computador são independentes do material que o produziu (silício, metal e plástico) e funcionam por um determinismo (acionando uma tecla haverá uma resposta esperada) frente a um mesmo estímulo, o cérebro responderá de maneira diferente em cada individuo e muitas vezes no mesmo individuo.
                        Damásio discute com a tranquilidade dos que sabem o que estão dizendo, um dos grandes enigmas da humanidade – a consciência – e a define como sendo um estado mental no qual o individuo tem conhecimento da sua própria existência e da existência do mundo circundante, portanto só temos consciência quando estamos acordados; este estado mental ou a mente, não é autônomo, pois é comandado por um protagonista que comanda a sua existência e que ele a chamou de self, também denominado por alguns como “ego” ou “eu”; esta “entidade” possibilita a nós mesmos nos reconhecer como os comandantes das nossas ações.
                        A mente humana é produzida a partir da atividade dos neurônios, cujo funcionamento difere das demais células do corpo, pois são sensíveis a mudanças a seu redor, são excitáveis e podem enviar sinais a outras células, outros neurônios, às vezes localizados a grandes distancias.
             O grande mistério a ser desvendado é saber em qual lugar do cérebro se localiza o self ; segundo Damásio, boa parte dos cientistas e ele próprio acreditavam que o self estaria no córtex cerebral, camada mais externa do cérebro, rica em neurônios e responsável pelas atividades mais complexas, como memória, interpretação e processamentos simbólicos.
                         Por meio de reflexões teóricas e com auxílio, sobretudo, de imagens do crânio humano captadas por equipamentos sofisticados de ressonância magnética, ele mudou de ideia e passa a defender que o self  “nasce” em uma região mais ‘primitiva’ (ou primordial) do cérebro: o tronco cerebral, responsável pela regulação das funções do interior do corpo, como frequência cardíaca, pressão arterial e movimentos dos músculos involuntários, dentre outros.
                        Um dos grandes mistérios da vida é que podemos observar as ações das pessoas, o que elas dizem ou escrevem e, a partir disto, fazermos suposições sobre o que elas pensam, porém, jamais poderemos ver suas mentes, embora saibamos onde ela esta alojada.
            Para entender um pouco mais o que vem a ser consciência fica mais fácil entender o que é - não ter consciência -;quando dormimos ou somos submetidos à anestesia, perdemos o controle das vigas mestras da consciência: mente e  self; neste período (sono), a pessoa não tem consciência que está vivendo, quanto mais saber quem ela é e o que ela mesmo pensa.
            Como o cérebro constrói a mente consciente? Pergunta intrigante, porém, devido ao espaço que me é reservado no jornal, não poderei discutir todo o pensamento de Damásio; sugiro a leitura do livro e ali os leitores irão encontrar respostas a muitas outras questões que nos inquietam, tais como: o que é a homeostase e quem a controla?  O por quê das plantas não possuírem movimentos (caminhar) e, principalmente, a função do neurônio na manutenção da consciência.
                  É preciso que se diga que muitas das hipóteses apresentadas no livro são originais, surgindo com isto, alguns conflitos com outros estudiosos do assunto; levando ainda em consideração o fato de Damásio ser um assumido materialista, algumas das suas posições-assertivas irão provocar reações de desagrado por parte de muitos filósofos da mente e, principalmente dos teístas. 
            Gostaria, para provocar os leitores, que lessem esta afirmativa (materialista) da criação do homem, feita por Damásio: “Na história da evolução, há 3,8 bilhões de anos, apareceu a primeira forma de vida na terra, cerca de 2 bilhões de anos depois, surgiram as bactérias (seres unicelulares com núcleo), capazes de viverem de maneira independente ( a ameba é o exemplo típico). Este organismo unicelular é uma amostra-caricatura  do que viria a ser o homem ( o seu núcleo seria o cérebro, o seu citoesqueleto de sustentação seria o nosso esqueleto ósseo, o citoplasma, o interior do nosso corpo, a membrana celular, a nossa pele, os cílios, cuja movimentação combinada permite que elas nadem, seriam os nossos membros.   


Cada célula do nosso corpo tem um tipo de atitude não consciente, será que nosso desejo de viver não começou com um agregado das incipientes vontades de todas as células do nosso corpo?.


Cartas de Amor que escrevi

                

                 Dias destes, como fazemos a cada 15 dias, fui almoçar com um confrade (o advogado Dr. Eurico Barbosa) da Academia Goiana de Letras, unicamente para nos reencontrar e discutir, com prioridade, tertúlias literárias.
                      Lá pelas tantas, Eurico traz à baila o assunto “internet”, com todas as suas implicações, principalmente o seu uso exagerado pelo público jovem, por intermédio das “redes sociais”.
                      Eurico chama a atenção para o fato de que a juventude está de tal maneira envolvida com esta parafernália que chega a lhe preocupar; preste atenção, diz ele, “na sua própria casa, as crianças e os adolescentes, dificilmente sentam-se com os adultos, mesmo com os parentes, para conversar – preferem o magnetismo do telefone celular conectado à internet”.
                     O estilo de escrita que eles usam, falo eu, poderá ser até ininteligível para quem não está acostumado; a grande maioria das palavras são grafadas por abreviaturas (rs - sorriso; rsrsrs - gargalhada; Tb -também) etc. 
                     Este fenômeno está acabando com a “carta” coloquial, tão ao gosto da população até há poucos anos; hoje em dia, quando queremos nos comunicar com um amigo, utilizamos o correio eletrônico (e.mail) que, por comodidade na hora de se digitar, são resumidos, desaparecendo, por completo, os enfeites literários nas frases; o romantismo das cartas de amor que originariamente foram escritas manualmente, só são encontradas, hoje em dia, em antigos livros, escondidos nos “sebos”.
                     Não sei se é verdade, pois nunca havia visto esta citação atribuída a Einstein - meu grande medo, teria dito ele, é a possibilidade da tecnologia avançada isolar as pessoas no futuro; esta citação é ilustrada com uma fotografia onde se vê cerca de 15  jovens sentados ao redor de uma mesa, todas elas vivendo seus mundos particulares, com os olhos e os dedos grudados no “smart fone”, parece que desconhecendo a presença dos seus possíveis amigos.
                     Ao voltar para casa, ainda bem presente o eco daquela discussão, procurei a gaveta onde arquivo as cartas coloquiais que recebi ou enviei aos amigos; deparei-me com a que transcrevo no texto e convido os amigos leitores a lerem comigo; antes disto, preciso informar que o Prof. Basileu era meu amigo de muitos anos (infelizmente já é falecido),  morava perto da minha residência e, de vez em quando, escrevia-lhe cartas e, ao invés de enviá-las pelo correio, entregava pessoalmente para o porteiro do seu prédio.
                   Permitam-me, também, que explique um pouco mais a razão desta carta; havia chegado de uma viagem à Turquia, quando tive a oportunidade de conhecer Éfeso, cidade onde viveram e pregaram o cristianismo, Paulo de Tarso e João Evangelista e, ao comentar com ele este episódio, mostrou-se interessado em saber mais detalhes; observem que o obriguei, pela curiosidade que lhe deverei ter despertado, a procurar, por si mesmo, mais informações a respeito do assunto, além, de “viajar” na sua companhia, em certo trecho da carta, para o ambiente que ele tanta gostava, a natureza!

Ao mestre, com carinho!
Prof. Basileu Toledo França

                   Infelizmente, por motivos alheios à minha vontade, não pude estar presente na solenidade de lançamento do seu  livro “Velhas Escolas”.
                   Gostaria, no entanto, de ressaltar que mesmo distante (estava em Cuiabá naquela oportunidade), pensei no senhor, com carinho e muita admiração. Goiás deve muito à sua pena inteligente e lúcida.
                   Parabenizo-o com sinceridade!
                   Semana passada estive novamente na Santa Tereza, lembrei-me muito do senhor; pelo milagre da telepatia, “conversamos” sobre vários assuntos, alguns deles prazerosos para mim, como as suas dissertações sobre a história de Goiás, em outros, somos irmãos de sentimentos:
- O mundo da natureza!
                   Chovia, chuva miúda, porém constante; sentamos à varanda, estiramos as pernas com comodidade; por alguns instantes, permanecemos calados, somente ouvindo o som da natureza. De repente o céu tornou-se mais escuro, o vento começou a açoitar as árvores, no inicio com delicadeza, depois se tornou mais agressivo, vergando o caule dos eucaliptos, até com alguma selvageria. A natureza das suas raízes suporta este açoite com galhardia e obstinação.
           Daqui, de onde “estamos”, pode-se ver, ao fundo, uma fileira de árvores, dispostas como se fossem as garbosas e seculares colunas de “Mercantile Agora”, erigidas no século 1º da nossa Era, em Éfeso, na Turquia.
                   Certamente, estas nossas arvores não serão perenes como aquelas, porém, o simples fato de permitirem que desfrutemos hoje da sua companhia valeu a pena terem sido plantadas. Se, no futuro, ficar apenas o registro das suas presenças no pretérito, desejaríamos que estas lembranças fossem comparáveis, pelo menos no plano temporal, à famosa Coluna de Artemis que, embora isolada do contexto das ruínas do Império de Píndaro, permanece imponente, informando aos curiosos que ali foi erigido um templo.
A chuva diminui de intensidade, gradativamente vai cessando;
alguns pássaros reiniciam seus diálogos que haviam sido interrompidos; uma rosa balança no canteiro bem perto da nossa casa, a brisa que passa rasante ao seu caule, movimenta-a com delicadeza.
Um perfume suave chega até onde estamos!
          Volto a sintonizar com o meu mundo real, obrigando-me a interromper nosso “diálogo”.
 Ficou a certeza da sua possibilidade.
         Seu amigo Hélio Moreira





O MENINO E A PENSÃO

                   O “Menino” nem bem acabara de chegar da escola e, antes mesmo de colocar seus “apetrechos” escolares no seu quarto,  Margarida, que o aguardava com as mãos na cintura, já começou a dar-lhe ordens, sem pausa nem para respirar, como era o seu costume:
                               -“ Menino”, sua mãe está nervosa porque você demorou a chegar e adivinhe o que aconteceria se eu não tivesse inventado uma mentira (O menino me disse que hoje teria lições de tabuada depois da aula!) para enganá-la; vá correndo à estação e pergunte para o telegrafista Orestes quantos passageiros virão para almoçar na Pensão. Volte a falar com ele que ontem o chefe do trem deu o número errado e perdemos muita comida e, se isto voltar a acontecer,  iremos reclamar para a chefia da Rede Mineira em Cruzeiro informando que o chefe de trem está com preguiça de fazer sua obrigação, como deveria, e com isto não está sendo cumprido o contrato que a Empresa fez com a Pensão.
                               O “Menino” entregou-lhe os pertences e saiu em disparada rumo à estação de ferro; minutos depois estava de volta com a informação: Serão oito passageiros e o trem está um pouco atrasado; o “Menino” não lhe contou que não havia feito tudo o que ela mandara pois seu relacionamento com o telegrafista Orestes não lhe permitia chamar-lhe a atenção, até porque ele não tinha nada a ver com o acontecido e depois ficou preocupado que o mesmo interrompesse os ensinamentos sobre o código Morse que  lhe transmitia e, tampouco, trouxe o recado que ele, Orestes,  pediu-lhe que transmitisse a ela, Margarida  (convidava a filha da dona da pensão para irem à festa da igreja naquela noite). 
                               É bom lembrar que Orestes era o que as moças do lugarejo chamavam de  “bom partido”, vestia-se bem ( o cargo lhe exigia este aprumo), cabelos repartidos de lado, porém, penteados para trás e  luzentes pelo  uso da glostora, bom aspecto físico, mais tendendo para magro e um sorriso amigável  e, o principal, tinha ao redor de 23 anos e era solteiro.
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                      “ O telegrafista chamava-se Malachine, porém, as moças davam-lhe o nome de Malacha. Era baixo, magro, de bochechas rosadas, os olhos castanhos, sobrancelhas pretas, mãos de mulher; homens assim dizem que são belos como estampas. Alegre cordial para com todos, era muito conhecido e até amado em nossa cidadezinha, onde três mil e quinhentos habitantes davam-se com calma às suas obrigações rotineiras. Eu tinha vinte anos, eu sentia-me de tal modo invadido pelo tédio da vida, que a minha alma estava seca; a indolente agitação das pessoas me deixava irritado demais e assustava-me mesmo. Um dia encontrei o Malachine que me disse:
                               - Estou com um bilhete postal para ti.
                               E passou-me o bilhete onde se lia (...)  (MÁXIMO GORKI - O Vagabundo Original)”
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                             Em seguida, Margarida atendendo ao olhar da mãe do “Menino”,  destrinchou os dois frangos que estavam preparados à beira do fogão, colocou um pouco de linguiça na frigideira que já estava com gordura, colocou um pouco mais de água no feijão,  refogou o arroz, contou os 8 ovos que seriam fritados, aumentou a lenha no fogo e deu ordens ao menino para arrumar a mesa de refeições.
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                        “ – É como lhe digo, recapitulava este.  – Aquilo não é um hotel, é uma  – casa de família! (...)
– Fica-se muito melhor em uma casa de família, continuava o outro. A vida em hotel
ou a vida em república é o diabo: estraga-se tudo – o estômago, o caráter, a bolsa; ao
passo que ali, você têm o seu banho frio pela manhã, torradas à noite e, se cair
doente (o que lhe não desejo), há quem o trate, quem lhe prepare um remédio, um
caldo, um suadouro, um escalda-pés... Olhe!
                   E pensando deste modo, ergueu-se disposto a acompanhar Coqueiro, que insistia em lhe mostrar a casa. Principiaram pela chácara.
                                 – Olha. Isto aqui é como vês!... dizia o proprietário. – Boa sombra, caramanchões de maracujá, flores, sossego!... Bom lugar para estudo! E vai até o fundo. Vem ver!  Amâncio obedecia calado.
                                  – Parece que se está na roça!... acrescentou o outro. – De manhã é um chilrear de passarinhos, que até aborrece! Quando aqui não houver fresco, não o encontrarás
também em parte alguma!  Em seguida foram  visitar o banheiro, o tanque, o repuxo e outras
comodidades que havia no quintal, e a cada uma dessas coisas – novas exclamações
e novos elogios. Na cozinha um preto, de avental e boné de linho branco, à moda dos cozinheiros franceses, trabalhava ao fogão. Coqueiro exigiu que o amigo olhasse para aquele asseio; atentasse para a nitidez das caçarolas de metal areado, para a limpeza das panelas, para a fartura de água na pia.
– A Madame, dizia ele a rir-se, com ar interessado de quem deseja convencer – a
Madame traz isto num brinco! Pode-se comer no chão!  (ALUISIO DE AZEVEDO, - Casa de Pensão, 1884).”
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                                               O “Menino” obedeceu as ordens emanadas da Margarida, espalhou os pratos por sobre a mesa que estava coberta com uma toalha branca, os talheres, a jarra com água  e os copos; dali a pouco o trem apitou na curva,  ele lavou as mãos, jogou água no rosto, penteou o cabelo e se postou na porta da frente, para recepcionar os passageiros!



A mulher que salvou Freud dos nazistas



 Tive acesso, dias atrás, a uma entrevista concedida por Sigmund Freud ao jornalista americano George Sylvester Viereck; o inusitado deste acontecimento é o fato desta entrevista ter sido concedida em 1926, quando Freud ainda vivia na Áustria e que havia sido considerada como perdida, até sua publicação em 1957.
                        Trata-se de um “tour de force” entre o jornalista e o pai da psicanálise; variada gama de assuntos são trazidos à baila; Freud “ouve pacientemente cada intervenção, não procurando, jamais, intimidar o entrevistador; ele tem que dizer a verdade a qualquer preço”.
            Dentre os tópicos discutidos, destaco a sua posição a favor do psicanalista leigo “Os médicos dos Estados Unidos e alguns da Europa, procuram monopolizar para si a Psicanálise. Seria um perigo para a psicanálise deixá-la, exclusivamente, nas mãos dos médicos”.
          Conhecendo-se a vida de Freud, podemos entender esta sua posição como sendo  uma intenção de defender muitos dos seus amigos da primeira hora, aqueles que, sem serem médicos, acreditaram e abraçaram suas teorias em uma época de franca contestação por parte da classe médica europeia, especialmente da austríaca; só para ficar em dois exemplos citaria duas famosas psicanalistas, ambas formadas por Freud e que não eram médicas: Marie Bonaparte, sobrinha-neta de Napoleão Bonaparte e a bela russa Lou Andréas Salomé.
                  Em alguma outra oportunidade voltarei a discutir com meus leitores a presença de Lou Andréas na vida de Freud, para o momento gostaria de me ater ao título do texto e resumir a participação da Princesa Marie Bonaparte na fuga que Freud empreendeu da Áustria, fugindo dos nazistas.
       A Princesa Marie Bonaparte vivia na França e era, quando conheceu Freud em 1925, casada com um Príncipe grego e estava à beira de uma terrível depressão por se acreditar frígida; com alguma dificuldade, devida à inacreditável e sempre repleta agenda do já famoso pai da psicanálise, conseguiu marcar uma consulta.
               Após frequentar sessões de análise, quase que diariamente e por mais de três meses, em seu consultório à rua Berggasse em Viena,  viu-se curada da problemática que a afligia; por isto adquiriu, como sói acontecer com muita frequência, uma inacreditável afeição pelo seu benfeitor e pela sua obra,  acabando, inclusive, por se tornar uma psicanalista renomada.
                 Em 1938 aconteceu a anexação da Áustria à Alemanha nazista; Marie percebendo, com antecedência, o perigo que Freud corria, por ser judeu,  veio de Paris para tentar convencê-lo a fugir, porém, seus argumentos não eram, para ele,  convincentes.
          “- Já desempenhei o meu papel. Agora sou um velho doente que encontra no trabalho um pouco de diversão para enfrentar a dor. Enquanto me deixarem fazer meu trabalho...
         - Eles o proibirão de exercê-lo!
         - Escreverei
         - Escreverá livros que eles não deixarão publicar!”
         Por outro lado, será que o senhor não compreende que o senhor é a psicanálise?
         - Se morrer, ficarão meus discípulos! (Freud e a princesa Bonaparte, F.O. Rousseau, 1947).
         Um episódio, no entanto, acabou por convencê-lo da necessidade de fugir: a terrível Gestapo prendeu sua filha Anna a pretexto de vasculhar o escritório da editora da “Revista de Psicanálise”; a partir daí, foi uma corrida contra o tempo, era iminente a prisão de Freud; Marie conseguiu, por intermédio da embaixada da Grécia, telefonar para o embaixador dos Estados Unidos na França, contando-lhe o que estava acontecendo; em seguida passa a informação para a imprensa de todo o mundo.
         Em maio de 1938 Marie deu inicio à difícil tarefa de conseguir vistos de saída para várias pessoas, onde incluía, além da esposa de Freud, sua cunhada, sua filha, seu médico e duas empregadas domésticas.
         Duas personalidades foram fundamentais para o sucesso da empreitada, o Presidente Franklin D. Roosevelt que convocou o embaixador alemão em Washington para solicitar, oficialmente, a liberação dos vistos e, por incrível que pareça, Benito Mussolini, chefe do fascismo na Itália e aliado de Hitler, que enviou telegrama à chancelaria alemã, pedindo noticias de Freud.
         Freud e sua família viajaram de trem; desembarcaram em Paris na gare L’Est, onde uma multidão de pessoas os aguardavam; Marie Bonaparte estava lá! (uma fotografia da época mostra-a com seu perfil alto e elegante, trajando uma estola de pele no ombro, um chapéu com arranjos de flores e um vestido, aparentemente de seda, cheio de plissados, segurando o braço de Freud, para facilitar sua caminhada.
         O resto da história é por demais conhecida, depois de Paris Freud viajou para Londres onde viveu até falecer, em setembro de 1939; poucos meses antes de morrer, Freud escreveu uma bela carta a Marie e que está inserida na coletânea publicada pelo seu filho Ernest L. Freud:        
         “Não lhe escrevo há muito tempo. Suponho que você saiba por que, e possa até constatar pela minha caligrafia (nem a caneta é mais a mesma; como meu médico e outros órgãos externos, ela me deixou). Não estou bem; minha doença e as sequelas do tratamento são responsáveis por este estado, mas em que proporção eu não sei. As pessoas estão procurando embalar-me em uma atmosfera de otimismo, dizendo que o câncer está diminuindo e que os sintomas de reação ao tratamento são temporários. Eu não acredito e não gosto de ser enganado. Algum tipo de intervenção que interrompesse esse processo cruel seria muito bem vindo. Abraço afetuoso, penso muito em você!”