MINHAS CRÔNICAS

terça-feira, 29 de maio de 2012

LITERATURA REGIONALISTA – Tema para discussão (II)

 

Segundo Otto Maria Carpeaux, o precursor da literatura Regionalista no Brasil seria o mineiro Affonso Arinos de Mello Franco que publicou em 1898 “Pelo Sertão”, cuja prosa simples, isenta de excessos que a fala regionalista `às vezes apresenta, sem as deformações de linguagem matuta, sem a falsidade dos excessos; depois, segundo o mesmo autor, vieram Hugo de Carvalho Ramos “Tropas e Boiadas” (1917) e Monteiro Lobato “Urupês” (1918), principalmente pelo tipo que ele criou, o Jeca Tatu, onde se revela a dura realidade do homem do campo.

O regionalismo em Goiás, com as mesmas características do regionalismo nacional tem, como vimos, o pioneiro Hugo de Carvalho Ramos; depois, obedecendo à ordem e as citações a que me impus, Pedro Gomes - “Na cidade e na roça” (1924), Bernardo Elis –” Ermos Gerais” (1944), Eli Brasiliense – “Pium” (1949) Léo Godoy Otero – “Gente de Rancho” (1956) e “Caminhos de boiadas” (1958) Bariani Ortêncio – “O que foi pelo Sertão” (1956) e “O Sertão, o rio, a terra” (1959), J.J. Veiga – “Cavalinhos de Platiplanto” (1959)

Tendo em vista a extensão bibliográfica que citei, diga-se de passagem, não está completa, constituída por nomes exponenciais da literatura goiana, portanto, dignos de merecerem capítulos à parte, achamos prudente, até para não cansar os leitores, discutir neste momento apenas o nosso pioneiro Hugo de Carvalho Ramos, que embora vivendo longe de Goiás grande parte da sua vida, conservou da terra a visão das paisagens e, principalmente do homem do sertão, retratando-os em seus contos admiráveis.

                Pretendo voltar ao assunto em outra oportunidade para continuar a discussão sobre alguns outros autores goianos que foram mencionados acima.

HUGO DE CARVALHO RAMOS

É o patrono da cadeira 14 da Academia Goiana de Letras, cujo primeiro ocupante foi justamente seu irmão, o escritor e jornalista Victor de Carvalho Ramos.

Hugo de Carvalho Ramos nasceu na antiga e lendária Vila Boa de Goiás, hoje cidade de Goiás, no dia 25 de maio de 1895 em uma casa situada no Largo do Chafariz.

Seu pai, Manoel Lopes de Carvalho Ramos era poeta e sua mãe era a Sra. Mariana Fenelon Ramos; frequentou o Liceu Goiano na antiga capital e após o término do curso mudou-se, em 1916, para o Rio de Janeiro, onde ingressou na Faculdade de Direito; quando cursava o último ano do Curso, em 1921, cometeu suicídio, enforcando-se com a corda que prendia sua rede de dormir, segundo informação do seu irmão Victor de Carvalho Ramos.

Antes deste acontecimento fatal Hugo estava passando por grande dificuldade existencial acometido de grave quadro de depressão, quando então viajou para o interior de Minas Gerais e São Paulo (1920); voltou para o Rio de Janeiro com o quadro psiquiátrico ainda mais agravado, que o levou ao ato tresloucado.

Desde muito jovem já se dedicava à literatura, escrevendo em prosa e verso, alguns de seus contos mais conhecidos quando estava com idade entre 15 e 16 anos e em 1917 publicou, no Rio de Janeiro, seu único livro – Tropas e Boiadas – composto de contos de inspiração sertaneja, com grande repercussão favorável da crítica nacional.

Ouçamos o que diz Gilberto Mendonça Teles, nosso conterrâneo e respeitado crítico literário, provavelmente um dos maiores estudiosos da obra Carvaliana, “Seu estilo é exuberante e conciso, pois aparecem, frequentemente, ao longo dos seus contos como se o autor se esforçasse por adequar a expressão do seu pensamento aos diferentes aspectos da realidade, valendo-se para isto da técnica impressionista, utilizando-se, com parcimônia, de alguns modismos e algumas tendências das falas regionais”.

Penso e estou em boa companhia ao dizer que Hugo de Carvalho Ramos ainda é o expoente máximo desta vertente literária, não só em Goiás como no Brasil; sua literatura deixou-se contaminar pela beleza da nossa terra, pelos temas criados pela sua imaginação e facilitados pela exuberância da nossa paisagem sertaneja; ele descreveu, ou melhor, como se fora um pintor, ele pintou nossos ermos gerais com pincéis que espargiam tintas multicoloridas, retratou o homem do sertão com indulgência, transcrevendo com carinho seus diálogos, seus arrufos e, principalmente, entendendo sua pouca cultura, não expondo ao deboche suas idiossincrasias e suas crendices.

Há quem diga que Hugo de Carvalho Ramos sofreu influência estilística de Eucllides da Cunha (Os Sertões) e da obra de Coelho Neto de quem era grande admirador; acho compreensível este tributo, tendo em vista a sua idade ao produzir a maioria dos seus textos, como vimos, alguns deles, em plena adolescência; realmente, ao ler estes dois consagrados  autores podemos observar contatos literários, senão vejamos, repetindo a observação de Nelly Alves de Almeida:

“Libélulas giro-giraravam com brilho vítreo – Coelho Neto; - Abriu os olhos, meio cerrados, pisca-piscando – Hugo de Carvalho Ramos” ou “E gingava viro-virava, a alisar os braços másculos, como desafio – Coelho Neto; - Ele batia, pois, estas estradas e cafusas... e tanto vira-mexeu que uma noite... - Hugo de Carvalho Ramos”.

O diferencial, em meu ponto de vista, é que Hugo de Carvalho Ramos tinha absoluta consciência do papel da sua literatura denunciativa da condição do homem oprimido do sertão por uma sociedade agrária conservadora; prova disto é a carta que escreveu ao amigo Leônidas de Loiola em 24.11.1919:

“... Fui informado da sua bem elaborada e digna defesa do nosso sertanejo... Senti, porém, em boa hora, que todos nós, moços da nova geração, devíamos cooperar, evitando escola e modismos inadequados ao nosso meio e o mais prático veículo será ainda, por muito tempo, a fórmula regional, em seu sentido lato...”.

E ele fez isto, com rasgos de genialidade literária, passando para o papel o ambiente rural sem cair na pieguice; escreveu para o encantamento auditivo, registrou termos e hábitos do nosso sertão sem cair na tentação do exagero do erro verbal e da concordância, tão comum na prosa dos nossos cabocllos; ele consegue a façanha desejada por todos nós que fazemos incursões neste tipo de literatura: coloca palavras literalmente corretas na boca dos seus personagens, passando ao leitor a ideia de que aquele está cometendo os erros de linguagem que estamos acostumados a ouvir quando deles nos aproximamos.

O escritor que se aventura na literatura regionalista tem obrigações para com o seu leitor; precisa, com sua obra, transmitir cultura, para que esta possa, realmente, ser proveitosa no sentido do seu aprimoramento intelectual, o que não quer dizer que se deva reproduzir o diálogo entre dois viventes dos sertões, com linguagem muito correta, na forma castiça, arredondando as frases, pois, seria fugir da realidade; o difícil é achar o meio termo.

Encontrar elementos da fala simples do povo, salvando expressões que não são mais  repetidas no meio citadino, substituir a frase polida por outra sem rebuços, porém, falando a língua que é ditada pelo homem no seu meio.

Leiam comigo este belo trecho de uma carta que Hugo inseriu em “Tropas e Boiadas”, com o título de “Nostalgias”, escrito longe dos seus familiares, transbordando de saudades da sua vida de antes:

“Já que vais brevemente à Chapada, vê se ainda se encontra legivelmente o meu nome num tronco novo de jenipapeiro que fica junto à casa do teu agregado (se é que ainda o mantém), próximo a umas goiabeiras, e aí  talhado por mim na última vez que lá estive”.

Em “Dias de Chuva”, aliás, o último texto do livro “Tropas e Boiadas” ele quase que chora de saudades da sua terra natal; leiam comigo e, provavelmente, muitos dos senhores e senhoras montarão no cavalo Dourado e caminharão junto com Hugo rumo ao Sitio:

“Vejo, através duma tela úmida as paisagens distantes de meu torrão natal, e afaz-me a que ando viajando, como antigamente, por esses sertões... Anos lá se vão, cavalgava eu por estas estradas ermas da minha terra remota, um macho de aluguer, ou o lépido alazão Dourado, em férias, rumo ao Sitio... E, no silêncio eterno da minha solidão, prosseguia, sob o pala, ruminando saudades. Ah! Viagens e passeios antigos, sob a chuva ou a canícula, nos pagos da minha terra! Quão longe e distantes sois!”

Sei impossível, neste curto espaço de tempo, até porque seria muito cansativo para os leitores, conversarmos aqui sobre toda a obra de Hugo de Carvalho Ramos e entrarmos em mais detalhes sobre a sua vida, porém, gostaria para finalizar este nosso encontro, dizer-lhes algumas palavras sobre uma das facetas da sua vida literária que muito me empolga: O ritmo e a sonoridade da sua escrita; leiam, em voz alta, este trecho de “Pelo Caiapó Velho” e tentem, se puderem, ficar indiferentes ao diálogo dos dois cavaleiros:

“Noite escura e má, patrãozinho. Trovoada e relâmpago eram que nem ronqueira e foguete de São João, patrãozinho  – e o sertanejo cuspiu forte para ambas as bandas da estrada - das bochechas e beiços arregaçados num vermelhão, corria visguenta e fétida por entre uns tocos de dentes amarelos – patrãozinho – uma baba de empestado... Os dedos da mão, não os havia...”.

A descrição leva o leitor a se colocar no lugar do personagem e VER a noite escura, OUVIR o barulho do relâmpago e SENTIR asco de lembrar-se da comida que ele comeu no dia anterior.

Preciso falar mais?

Leiam, por favor, “Tropas e Boiadas” e depois concordarão comigo, Hugo de Carvalho Ramos, com este seu único livro, embora tenha vivido tão pouco (26 anos) deixou uma obra que orgulha nossa goianidade e por que não dizer, nossa literatura regional.

domingo, 20 de maio de 2012

A IGREJA CATÓLICA NA VOZ DE ALCEU AMOROSO LIMA


                 Em 1957, quando sai da casa paterna pela primeira vez na vida e fui para Curitiba à procura do sonho de estudar medicina, levava comigo o verdor,  a coragem da mocidade e a vontade de realizar o desejo acalentado nas previsões da minha mãe; carregava no subconsciente toda a minha formação católica, principalmente minhas lembranças de ter sido “coroinha” na igreja de Gaspar Lopes, lugarejo onde nasci, no sul de Minas Gerais.
                  No segundo semestre de 1958 fui morar em uma “república” e meu companheiro de quarto era um estudante de medicina, para minha sorte, também muito religioso. Gilberto, era o seu nome, ia à missa todos os domingos, levando-me em sua companhia em muitas oportunidades.
                  No livro que escrevi em 2001 (Entre o sonho e a realidade, do Brasil dos anos 60 à Rússia dos anos 90, Ed. Kelps), conto com alguns detalhes uma das lembranças que ficaram marcadas deste convívio fraterno com Gilberto: quando os cardeais da igreja estavam reunidos no Vaticano, decidindo sobre a indicação do sucessor de Pio XII e Gilberto, na sua ansiedade, acabou contaminando-me; achava ele que se não se conseguisse escolher a pessoa certa, poderia criar-se um “cisma” no seio da igreja, com enorme dificuldade para a religião católica.
                  O sinal de que os cardeais haviam chegado a uma definição seria a saída de fumaça branca na chaminé da Santa Sé (Se fosse fumaça preta seria indicativo de que não havia, ainda, consenso no escrutínio). Este acontecimento foi noticiado em edição extraordinária pelo “repórter Esso” e foi recebida, por nós dois, até com emoção.
                 Ao chegar ao apartamento, Gilberto estendeu-me a mão, gesto que não estava entre os seus costumes, dizendo-me com indisfarçável emoção:
                 - O nosso Papa foi escolhido!
                  Bisbilhotando a longa correspondência mantida entre o professor, filósofo, pensador e, sobretudo, fervoroso católico Alceu Amoroso Lima, também conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde e sua filha madre Maria Tereza (João XXIII, Ed. José Olympio, 1966 e Cartas do Pai, Inst. Moreira Sales, SP,  2003), procurei focar o período correspondente ao tópico transcrito acima para que os leitores possam  comparar o estado de espírito de dois jovens católicos (Gilberto e eu) com o de quem já era, naquela época, conceituado e respeitado humanista.
                 Alceu Amoroso Lima, então com 45 anos de idade, vivia em Nova York, onde ministrava um curso sobre “Civilização Brasileira” a convite de uma Universidade.
                 Pela correspondência entendemos que havia por parte de Amoroso Lima, preocupação semelhante à  nossa, a respeito da decisão dos Cardeais na escolha do sucessor de Pio XII, senão vejamos:
                “ Carta de 13,10. 1958... Você verá a lista dos Cardeais papáveis. Com que melancolia não vejo ali o nome de Monsenhor Montini, o nosso candidato; 19.10... Eu vim para a Igreja na mesma ocasião em que senti inclinação pelas ideias dos dois últimos Pios. Se agora vier um novo Pio IX ou um novo Pio X, deverei calar minha pena? Houve Papas maus, como homens, ao longo da História. Mas nunca houve Papas errados, como Papas. O que sair do Conclave será o melhor, como Papa, embora possa ou não o ser como homem; 27.10... Ontem houve dois rebates falsos partidos da própria radio Vaticano, que se enganou com a cor da fumaça. Quatro escrutínios em vão; 29.10... Então temos novo Papa, João XXIII. É paternal, os comunistas já o classificam de “um conservador paternalístico”.Era o candidato dos Cardeais franceses, o que nos afasta dos perigos reacionários. Ele é um intervalo, um descanso, um banco, um copo de água, uma cadeira de balanço, depois desta tremenda abertura de caminhos feita por Pio XI e Pio XII.  O Espírito Santo viu isto lá de cima!; 21.01.59...Leio no jornal que o Osservatore Romano de hoje publica um artigo reafirmando a incompatibilidade formal entre socialismo e a doutrina social da Igreja; minha posição é a de um distributivo. Nem capitalismo, nem socialismo. Em Roma, as forças reacionárias é que continuam dominando os círculos do Vaticano. O Vaticano vai guinar para a direita, isto é, para o catolicismo aliado à aristocracia, à burguesia e separado das classes populares”.
                Recorro, mais uma vez, ao meu livro citado acima, e transcrevo mais um trecho das nossas “discussões” a respeito da posição da Igreja Católica no inicio do Pontificado de João XXIII, para que se compare com o que diz Alceu de Amoroso Lima:
              “Estávamos reunidos (jovens universitários, muitas vezes nas mesas dos bares de Curitiba, degustando uns chopes) para analisar a participação da JUC (Juventude Universitária Católica) na formação da AP (Ação Popular), tendo em vista as mudanças que estavam ocorrendo em algumas conceituações filosóficas da Igreja Católica, no Pontificado de João XXIII. A ideia desta corrente mudancista (segundo nosso entendimento) tentava dar novo direcionamento ao pensamento social do catolicismo, ao indicar a opção por um socialismo católico de inspiração não marxista. Esta corrente buscava apoio em pensadores católicos, principalmente Teilhard de Chardin, Maritain e Lebret, que se diziam seguidores de uma “ideologia própria” e chamavam isto de socialismo-humanista”.
               Ao compararmos o que pensávamos ou éramos levados a pensar a respeito do catolicismo “socialista” e o que, realmente, pregavam aqueles pensadores, observamos que nossa opção pelo socialismo-humanista, como doutrina católica, não era, seguramente, a visão daqueles filósofos, pelo menos não era  a de Maritain, a quem Alceu Amoroso Lima, devotava imensa amizade e comunhão de ideias, como vemos na carta que ele,  Alceu, escreveu  para sua filha, madre Maria Tereza, datada de 01.06.59...”Segundo Maritain, civilizar é espiritualizar, a lição de Cristo nos ensina que nada que é construído sobre a matéria é durável. Cristianizar o mundo moderno não é aliar-se ao capitalismo, ao comunismo, aos militares, aos ditadores ou aos partidos, mas arrancar do mundo- ou tentar diminuir- a injustiça, a exploração, a miséria, a doença, o vicio, o pecado, a guerra, a violência e o crime”.
              Tínhamos a pretensão de mudar o mundo e adaptar nossas ideias à da Igreja Católica! 
               Erramos?  Não, tínhamos ilusões! Repito uma citação de Franz Kafka  e que escrevi nas ultimas linhas deste meu livro que referi acima: “Somos levados na vida, muitas vezes, por ilusões; fomos, com frequência, superficiais e otimistas. Os momentos são vividos no lapso dos acontecimentos, depois serão apenas tentativas de reconstrução dos fatos”. 

domingo, 13 de maio de 2012

ROSARITA FLEURY – CONTINUA VIVA NOS SONHOS QUE CRIOU PARA SEUS PERSONAGENS


         Goiânia, porque não dizer o estado de Goiás, está vivendo uma semana que ficará inolvidável na sua memória cultural; foram relançados na noite de ontem, sob o patrocínio do governo do estado, dois extraordinários romances da falecida e sempre presente escritora Rosarita Fleury: Elos da Mesma Corrente e Sombras em Marcha.
             Tive a ventura de conhecer pessoalmente a Da. Rosarita! Apesar de haver certa aproximação familiar (minha mulher é irmã do esposo de Elizabeth Fleury, sua filha), só tive oportunidade de visitá-la em sua residência uma única vez, nos idos de 1968. Naquele dia ela dedicou-me o seu livro “Elos da mesma corrente”; lembro-me que conversamos sobre suas lides literárias; mais ouvia suas histórias do que propriamente falava das minhas.
Quando a instiguei a fazer comparação entre o seu estilo literário e o da escritora inglesa Jane Austen, principalmente no livro que hoje é considerado um dos maiores clássicos da literatura inglesa “Orgulho e Preconceito”, Da. Rosarita não fugiu do assunto, porém se recusou a aceitar a semelhança.
            Do que me lembro daquela discussão (a memória começa a trair-me, afinal já se passaram mais de 40 anos!), lembro-me que falamos, dentre tantos outros assuntos,  sobre a coincidência de temas (neste seu  romance Jane descreve a sociedade rural inglesa, entrelaçando personagens e sentimentos); Da. Rosarita, com a modéstia que lhe era peculiar, não aceitou a comparação; não tenho a argúcia de Austen, disse ela, tentando encerrar este assunto.
            Insisti: - Quem irá definir se a senhora tem argúcia serão seus leitores de agora e os do futuro; por outro lado a senhora descreve neste seu livro o ambiente rural de Goiás e por extensão do Brasil, com maestria incomum, segurando o leitor do começo ao final do livro, com a expectativa de se inteirar do seu epílogo.
            Embora não seja a proposição deste texto, gostaria de opinar nesta “fictícia discussão”; Da. Rosarita não disse, porém, pela sua inteligência e perspicácia, sei que ela poderia ainda acrescentar como um dos diferenciais entre o seu estilo e o de Jane Austen: ela, Da Rosarita, não tratava os seus personagens com ironia, como fazia Austen.
             Ficou-me, daquela visita, a imagem de uma pessoa extremamente modesta, de prosa agradável e de espírito superior, com a capacidade de deixar no interlocutor a sensação de que tinha muitas mais coisas para dizer.
                        Tenho observado na imprensa várias manifestações a respeito deste acontecimento (relançamento dos livros), principalmente alusões à premiação Julia Lopes de Almeida que foi concedida ao primeiro deles (Elos da mesma corrente) pela Academia Brasileira de Letras em 1959.
                        Como já havia planejado, voltei a ler os dois livros, o de Rosarita e o de Jane Austen; embora a época e os ambientes das narrativas sejam, como se poderia imaginar, diferentes (a zona rural da Inglaterra no inicio do século 19 e zona rural de Goiás em meados do século 20), convido os leitores a fazerem este exercício de comparação, verificarão “elos da mesma corrente” que os interligam.

             Não faz muito tempo tive a oportunidade de discutir com a escritora Elizabeth Fleury, por sinal membro da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, alguns aspectos da vida de Dona Rosarita, principalmente no que concerne ao este seu premiado livro “Elos da Mesma Corrente”.

                            Procurava, naquela oportunidade, descobrir algumas curiosidades a respeito da produção daquele livro, hoje considerado um dos clássicos da literatura goiana.
              A maioria das informações que serão aqui divulgadas é inédita, portanto, sinto emoção e alegria por trazer ao conhecimento dos leitores alguns acontecimentos da vida desta grande escritora goiana, orgulhosamente, para nós, pertencente aos quadros da Academia Goiana de Letras.
              Conta-me Elizabeth que a mãe gostava de dizer que desde criança sempre sonhou escrever um romance, por ouvir relatos de tias e avós a respeito de acontecimentos em fazendas de escravos; sua mente de criança registrou as estórias fantásticas contadas pelo negro Salu, escravo alforriado pelo seu avô.
              Uma curiosidade interessante: seu primeiro projeto de livro, na realidade, foi “Sombras em Marchas”, porém, teve que interrompê-lo pela impossibilidade de viajar ao estado de Mato Grosso, palco da trama, a fim de pesquisar; aliás, diga-se de passagem, que em 1970 ela conseguiu fazer a viagem e então completou aquele livro, lançando-o em 1985.
              Diante do impasse foi encorajada pelo esposo a escrever o que seria a segunda parte daquele primeiro projeto, uma vez que a trama deste, “Elos da mesma corrente”, se desenvolve exclusivamente em Vila Boa de Goiás, facilitando, portanto, a sua execução, até porque ela, no seu intimo, já o havia resenhado.
Quando começou a escrever o romance Da. Rosarita estava com menos de quarenta anos de idade, morava em Araguari, onde o esposo era engenheiro da estrada de ferro Goiás; por se sentir muito sozinha (conta-me Elizabeth) resolveu dar asas à imaginação e iniciou os originais do livro; utilizava-se de uma maquina Olivetti e trabalhava no período da tarde (quando as crianças estavam na escola) e de madrugada.
Ela afirmava, como sempre acontece com o escritor ficcionista, que os fatos e personagens do romance, não guardavam nenhuma semelhança com pessoas vivas ou mortas, porém, muitos parentes que leram o livro na época do seu lançamento se achavam retratados no mesmo.
A este respeito o autor do livro “Casas de Família”, Denis Tillinac, escreveu na página de rosto: “A família Aubac não existe. Nem os ambientes, os personagens e as situações evocadas neste romance. Nada, entretanto, foi inventado...”.
De fato, conhecendo (como conhece sua filha) os fatos reais, podem-se verificar algumas coincidências: a fazenda Santa Tereza, que pertenceu aos avós da autora, local onde ela passava algumas férias escolares, ganhou, no romance, o nome de Santa Lúcia, aliás, é necessário acrescentar que o Dr. Gerônimo, seu esposo e primo, por ser 13 anos mais velho, lembrava-se de muitos detalhes que ela olvidava, inclusive, reconstruiu, para ela, a planta da fazenda, facilitando, portanto, que os personagens “circulassem” pelas veredas com maior facilidade.  
Tenho minhas dúvidas, porém; acho que o personagem “nêgo José” do romance poderia ser superponível ao antigo nego Salú, escravo do avô da autora; bem, de toda maneira, pode-se parafrasear Oscar Wilde: “A arte imita a vida”.
Depois de escrito o romance (três anos de trabalho intelectual), a grande dificuldade foi a impressão; cinco anos de lutas e muitas contrariedades, pois a mesma foi feita na oficina gráfica da Estrada de Ferro Goiás, no sistema de linotipia (linha por linha), com infindáveis idas e vindas entre Araguari e Goiânia, onde ela passou a residir a partir de 1954, dos “bonecos” dos capítulos.
Finalmente, em 1958, cansados, ela e o esposo, de corrigirem os originais, resolveram “fechar os olhos” para os erros e, em junho de 1958, o livro foi lançado no Bazar Oió, com grande expectativa do meio cultural.
Da. Rosarita, em uma oportunidade, voltou à antiga fazenda Santa Tereza, ficou decepcionada com o que viu; até o rio Fartura onde, provavelmente, ela mergulhou quando criança, já estava quase seco...
No entanto, se naquele dia ela fosse escrever novamente o romance, como grande ficcionista que foi, tenho certeza que ela recriaria todas as fantasias, reconstruiria a casa da fazenda, faria a água voltar a correr no rio Fartura e voltaria a embalar os sonhos dos seus leitores!



domingo, 6 de maio de 2012

DIÁRIO DO MÉDICO – Paciente terminal


O medico chegou ao hospital, como sempre fazia durante todos estes anos, antes dos demais membros da equipe; enquanto caminhava pelos corredores rumo à enfermaria para a “visita aos pacientes” ainda teve tempo de conversar alguns minutos com a enfermeira-chefe para se inteirar das ocorrências da noite anterior.
                        - As noticias não são boas; a Sra. Doroty, paciente do leito 18, faleceu pela madrugada e ainda está no leito aguardando os preparativos para removê-la para a capela.
                        Embora estivesse “acostumado” a conviver com o imponderável durante toda a sua vida, o médico recebeu a informação com um misto de impotência e tristeza - Como isto aconteceu? Ainda ontem ela estava tão bem, fez-nos acreditar na sua recuperação!
                        Ele apressou o passo e ao entrar na enfermaria, deparou-se com a cena a que nenhum médico se acostuma; aquele corpo antes tão cheio de vida, agora estirado imóvel no leito, com a face parcialmente coberta pelo lençol modesto e amarrotado; ao lado do leito estava postada a filha a quem, no dia anterior, o médico havia transmitido mensagem de otimismo quanto à recuperação da mãe.
                        - Deus tenha pena da sua alma, disse a enfermeira tentando consolar o inconsolável; ela teve uma morte tranquila, sem sofrimento, morreu feliz!
                        O mobiliário da enfermaria era compatível com o momento, pobre e triste, nenhum narrador seria capaz de embelezá-lo tampouco modificar o ambiente daquele momento com palavras; instalou o silêncio  para dar lugar às introspecções  que não precisariam ser ditas. São sentidas!
                        O que você está pensando minha querida? Perguntou o médico à filha da morta, mais com o intuito de desanuviar um pouco o ambiente; a maneira como você cuidou da sua mãe durante todo este tempo aqui no hospital, leva-me a dizer-lhe que você não tem nada com que se recriminar; sou testemunha da sua constante presença ao seu lado, dias e dias, cedo, tarde e noites.
                        - Penso nas suas ultimas palavras, disse a filha com os olhos dágua, “Agora poderei navegar sobre as águas”.
                        - Por que ela disse isto?
                        - Estou procurando entender, porém ela sempre dizia-nos que gostaria de navegar para longas distancias e ir ao encontro de outras pessoas que ela nunca viu; ao tocar a mão da paciente o médico observou que ela a mantinha fechada e ao abri-la teve uma surpresa: ela retinha uma miniatura de navio e ao pegá-la exclamou para espanto de todos:
                        - É um pequeno navio de cristal!
                        O objeto brilhava na sua mão; de repente resplandeceu com uma miríade de cores; ainda atônito pela surpresa, voltou a colocar a miniatura de navio na mão da paciente e emocionado disse:
                        - Provavelmente ela já deve ter iniciado a viagem para sua nova morada, navegando neste pequeno navio.  
                        Ao chegar a sua casa o médico isolou-se na biblioteca e voltou a folhear o livro que estava lendo já há alguns dias (A linguagem de Deus, Francis S.. Collins, 2007), rapidamente encontrou o trecho que procurava e que tinha similitude com o caso daquela paciente que acabara de falecer.
                        “A mulher com quem me preocupei quando era estudante de medicina e que desafiou meu ateísmo com uma aceitação gentil da sua doença terminal, viu, no capítulo final de sua vida, uma experiência que a aproximou de Deus, em vez de afastá-la ainda mais´”.
                        Durante o tempo em que o médico acompanhou Da, Doroty na enfermaria observou sua fé inabalável no Criador; parecia que vivia em paz definitiva, estava pronta para aceitar os desígnios do Supremo, seja neste mundo ou no outro, apesar do sofrimento terrível que a doença lhe causava, não reclamava!
                        O médico evitava pensar no episódio da “miniatura de navio”; como harmonizar o sobrenatural com o seu mundo, o mundo científico?
              Teria sido uma ilusão?  Teria sido um acontecimento sobrenatural?  Muitos de nós médicos costumamos depreciar a alusão a acontecimentos sobrenaturais, muitos de nós médicos preferimos, diante de acontecimentos semelhantes a este que o médico presenciou, tocou e ouviu o relato da filha que antecedeu o acontecimento preferimos, ainda assim, dizer que nossos sentidos não são infalíveis.
            Alguns médicos e muitos cientistas criticaram o Presidente Bill Clinton que ao discursar na cerimônia realizada na Casa Branca para revelar as conclusões do maior e mais importante projeto cientifico já produzido pela humanidade “Projeto Genoma Humano”, afirmou: “Hoje estamos aprendendo a linguagem com a qual Deus criou a vida. Ficamos ainda mais admirados pela complexidade, pela beleza e pela maravilha da dádiva mais divina e mais sagrada de Deus; é um dia feliz para o mundo. Chego a ficar pasmo ao perceber que apanhamos o primeiro traçado de nosso manual de instruções, anteriormente conhecido apenas por Deus”.
            A crítica pariu do lado dos que acham antagonismo entre o cientifico e o espiritual; será que o cientista não pode acreditar em Deus?  Por que não dizer que aquele acontecimento, um dos momentos mais belos da humanidade foi também um momento de veneração ao Criador?