MINHAS CRÔNICAS

sábado, 10 de outubro de 2009

A MOÇA MAIS BONITA DE CATALÃO

Lendo o Diário da Manhã, chama-me a atenção uma discussão que vem se mantendo há varias semanas: o concurso para musa dos times de futebol profissional do nosso Estado.
Não querendo percorrer as raias do preconceito, observo que o enfoque, como deve ser natural em um certame com este desiderato, é todo dirigido para as qualidades físicas das concorrentes.
Discordo, se é que posso “meter minha colher de pau ” no assunto, o fato de o enfoque ser exclusivo para a discussão sobre as qualidades das pernas, dos bumbuns, dos seios, etc.; chama a atenção as minientrevistas das candidatas: “minha fantasia sexual é fazer sexo debaixo de uma cachoeira”, “ transar em uma ilha deserta”, “gostaria de posar nua, aliás, não completamente nua, expor apenas algumas partes intimas do meu corpo” etc..
Cabe a pergunta: as senhoritas candidatas não possuiriam outros predicados?
Não é intuito fazer um comparativo, porém, para curiosidade, repercuto um acontecimento ocorrido na cidade de Catalão no inicio do século XX e que foi publicado no jornal “O Araguary” de Araguari, no Triângulo Mineiro.
. Antes de entrar no assunto, propriamente dito, transcrevo os versos ingênuos de um poeta apaixonado, escritos na mesma época do fato a que me proponho contar.
Qui moça bunita / Meus olhu inxergô,
Saiu nu salão / I num bancu assentô,
U meu corpu tremeu / Meu coração parô,
As corda da viola / Di alegre chorô.
Um adeus de namorados – Pascoal Baer Guimarães, 1929.
Foi justamente neste ano de 1929 que a cidade de Catalão promoveu um concurso para eleger a mais bela senhorita da cidade. A razão deste concurso era a necessidade de se escolher a representante do municipio para o certame que seria realizado na capital do Estado, aonde a vencedora iria disputar, com as representantes dos outros municípios, o título de Miss Goyaz.
O Intendente Municipal informava, por meio de edital, “que as despesas desta viagem, ida e volta, seriam às expensas do município e a candidata que fosse escolhida como a mais bela do estado, ainda faria jus ao premio de 1:500$000 a ser oferecido pela redação do jornal “O Democrata” e as despesas da viagem, ida e volta, ao Rio de Janeiro, seriam custeadas pela redação do jornal “A Noite”.
Finalmente, informava ainda o edital, “caso ocorresse que a candidata vencedora estivesse impossibilitada de ir, pessoalmente, à capital de Goyaz, a mesma se obrigaria a enviar à redação do jornal “O democrata” uma fotografia, para que pudesse ser julgada pela Comissão Central do concurso”.
No dia 17 de fevereiro de 1929, segundo informa, ipsis verbis, o citado jornal “na sala do Paço Municipal de Catalão, com a presença do Senhor Major Antonio de Paiva, Intendente Municipal, senhores Luiz Alcântara de Oliveira e Diocles Gomes Barbo de Siqueira, procedeu-se a apuração dos votos.
Aberta a urna, constatou-se 265 cédulas, devidamente assinadas pelos respectivos votantes, cuja apuração, de acordo com as instruções da Comissão Central do Estado, indicou o seguinte resultado:
Dália Sampaio 173 votos, Flora Sylvia Victor Rodrigues 33 votos, Floracy Artiaga 13 votos, Gloria Porto Guimarães 4 votos, Marieta de Melo 3 votos, Dhalia Branca do Brazil 2 votos, Hilda Margon 2 votos,Amélia Kotnick 2 votos, Ignácia Guimarães 1 voto, Astréa Bretas 1 voto, Maria da Rocha 1 voto, Helena Paranhos 1 voto. Deixaram de serem apurados 25 votos por não preencherem os requisitos exigidos para o concurso.
À vista do resultado acima obtido, a Comissão proclamou a senhorita Dália Sampaio a mais bela deste município, do que, para constar, mandou-se lavrar ata, que foi assinada pela Comissão e extraída duas copias, que serão remetidas, uma à senhorita mais votada e a outra à Comissão Central da Capital.
O documento, após constatação de que foi transcrito fielmente, foi assinado pelos membros da Comissão e pelo secretário da Intendência, senhor Rômulo Costa que, também, o datilografou”.
Aconteceu o previsto, a família de Dália não permitiu que a mesma viajasse para a capital para participar do certame estadual; não consegui a informação se ela mandou ou não a fotografia, porém, tudo leva a crer que sim, pois os compromissos eram para serem honrados.
Quando afirmo que aconteceu o previsto, levo em consideração as condições sociais da mulher naquela época, quando era muito arraigado o preconceito contra o sexo feminino.
Até o final dos seus dias Da. Dália, minha sogra, continuou sendo uma linda mulher; sua elegância no vestir, em se portar em publico, até a maneira de se sentar em uma cadeira, a distinguia das demais em um salão.
Trajava-se com discreta elegância, rosto liso, sem rugas, olhos vivos e atentos aos movimentos do interlocutor, cabelos absolutamente brancos e bem cuidados; ao beijá-la, como costumeiramente fazíamos, sentia-se um discreto perfume (Fleur de Rocaille era o seu preferido), que levávamos como lembrança da sua presença afirmativa e bondosa.
Parece que ainda hoje, toda vez que alguém toca a campainha da nossa casa, temos a sensação de que ela está de volta, com o mesmo sorriso, com a mesma alegria, sempre disposta a contar-nos coisas da sua vida passada, inclusive sobre o concurso que ela ganhou, porém, não foi buscar o prêmio.
..

O que é pior, picada de cobra ou ferroada de marimbondo?

Foi aqui, nas imediações do rio Paranaíba, que tivemos o primeiro acidente com picada de cobra; um dos peões que auxiliava o nêgo Tabaco na vigilância da tropa, descuidou-se e pisou em uma enorme cascavel. Ouvimos um grito ensurdecedor, seguido de uma correria de gente para o local; o pobre homem se retorcia, tinha a face desfigurada pela dor ou provavelmente pela angústia de ter sido ferido por animal de peçonha tão difícil de ser tratada.
Sr.João Catalão, o curador da comitiva, chegou ao local primeiro do que a maioria dos peões; de longe já se escutavam suas ordens, sendo dadas com voz autoritária:
- Busca no meu embornal, sem nenhuma demora, um pedaço de casco de tatu que esta enrolado nuns trapos; Antonio Martins, vai depressa e coloca ele prá ferver, só me traga aqui quando ficar gosmento; me empresta sua faca prá móde eu lancetá o local; preciso de alguém de vanceis que não tem dente locado e sem pinguela, pra móde chupar a ferida; vai cortando o fumo de rodela; alguém mija aqui nesta caneca; Antonio Martins, trais correndo um pouco de sal, vancê aí que esta olhando, faça as misturas destes ingredientes, prá móde eu esfregá na ferida; mataram a peçonhenta? Não deixem ela escapar, pra móde não comprometer o resultado do tratamento.
Antonio Martins, quando ficar pronto o escaldado que vancê está fazendo, dá uma colher, das grandes, para o homem beber de hora em hora, mais, presta atenção pra móde ele num pinchá o produto fora, senão não faz efeito.
Daqui prá frente, seja o que Nossa Senhora da Abadia reservar prá nóis e pro pobre coitado! Nossa Senhora da Abadia nunca falta pros povos pobre e trabalhador, acumo esse homem azarado; nóis somos iguais a formiga cabeçuda, tem respirador pra tudo quanto é banda.
- Eu acredito que vai ficar bom, diz o chefe Vital com confiança e com a voz de trovão característica, já vi caso pior que este, caso do indivíduo ficar com o veneno nos corpo por três dias e, um outro curador, igual ao Seu João Catalão, deu jeito.
Para dizer a verdade, não é da cobra peçonhenta que tenho mais medo hoje em dia, porque para esta danada nóis já tem solução, porém, pros marimbondos nóis num tem; parece que o ferrão do malvado fica encravado nos nosso corpo e vai azedando digavar. Uma vez fui picado por um bando destas avezinhas que quase me deixou doido, a história aconteceu assim: fui tentar tirar um mel de abelha europa em um emaranhado de assapeche, quando infiei minha mão na arapuca que elas fizeram, veio um bando de marimbondos que escureceu inté o semblante do sol, tentei correr, mais fiquei engarranchado no sapezal, a primeira coisa que as danada fizeram foi acertar a corcóva dos meus olhos, fiquei ceguinho da silva e sem rumo nem beira, varei no peito tudo quanto é moita que encontrei pela frente até encontrar um córrego que me salvou, pulei de ponta...
Fiquei inchado uns cinco dias, quase que não enxergava nada, meus beiço ficou com parecença de ser uma tromba de elefante. Usei toda espécie de remédio que me ensinaram, mais num deu resultado.
- Pra estes casos o melhor a fazer é pegar uma folha verde de qualquer planta, apertar ela no dente e adispois colocar ela distrais das orelhas, agaranto que num deixa inchá de jeito maneira.
- Eu fisso isso Seu Catalão, só que dei azar, no desispero mordí na folha de urtiga, queimou minha boca igual se tivesse sido provocado por uma taturana preta, o inchaço do corpo desapareceu primeiro que o alejume da boca.
Hoje em dia fiquei velhaco, corro as léguas destes bichos!

Ver não é o mesmo que enxergar


João Severino, apesar de pouco erado, era bem informado: caboclinha igual à Rita da Donana não havia na redondeza, dizia ele.
Acho que ela sabia disso, era só o sol começar a se esconder, surgia a Rita toda enfeitada, andar delicado e até com certo gingado na cintura, semelhante a uma garça vista de longe. O vestido era de chita, cor rosa, com alguns enfeites na barra da saia, o ombro era encoberto pelo modelo fofo das mangas; sapatos rasos, parecendo que os pés, que não eram mostrados, tocavam o chão; usava, costumeiramente, meias cor de rosa que se aproximavam dos joelhos.
Não era somente o João Severino que, ao vê-la, suspirava fundo e se punha a imaginar aquela criatura, aquele corpo sem as vestimentas; toda a rapaziada do lugar tinha o mesmo pensar.
João Severino, no entanto, era diferente do restante da turma, ele sabia, certinho, a hora que ela aparecia na rua, justamente quando os sinos davam a primeira badalada para iniciar a contagem de seis, ele já estava sentado no costumeiro banco da pracinha; lugar privilegiado, pois, como ele percebera, ela dobrava a esquina e já entrava na rua principal e passava a poucos metros de distância. Seus olhos a acompanhavam até o final da rua, até que ela entrasse na igreja.
Depois de algum tempo ela voltava, na mesma toada como foi; não é fácil saber se era mais admirada na ida ou na volta; vista quando ia, parecia à silueta de um violão a procura de violeiro, quando vinha, bambeava o quadril de tal maneira que parecia que ia deslocar do corpo; dava lembrança, na gostosura, de rapadura com queijo; os braços eram sacudidos no mesmo compasso que ela fazia com a cabeça: sereno, porém, transmissor de pensamentos que nem é bom lembrar!
João Severino nunca contou isto para ninguém, porém, é quase certo que ele pensou, muitas vezes, na possibilidade de ver aquele corpo do jeito que Deus colocou no mundo, ou melhor, ele daria uma ajuda ao Criador; tiraria primeiro, seus sapatinhos, e depois suas meias e ia subindo no mesmo galeio (no pensamento) até o pescoço.
Que ele se lembre, somente uma vez ele teve certeza que ela jogou seus olhos tiranos para cima dele, porém, de um jeito de quem não “tava pondo atenção”; não faz mal, pensava ele, vou persegui-la com os óios, sem parada, um dia ela vai descobrir que
João Severino está ansiado, enrabichado que não tem mais conta, prá móde dela.
Mais ou menos na metade do caminho que ela percorria, moravam Da. Zina e Sr. Tiburcio, os dois já bem maduros na idade; como tinham pouca ou coisa alguma para fazerem, passavam a maior parte do tempo debruçados na janela, olhando o movimento, se é que se pode chamar de movimento o que viam na rua e, principalmente, matraqueando a vida dos outros.
Como estavam ali todos os dias, não poderia passar despercebido o passeio vespertino da Rita da Donana; era só ela apontar lá em baixo, Da. Zina já se manifestava:
- Já vem aquela sirigaita regateira e reboladeira, toda embonecada, acho que ela não tem o que fazer; me parece que ela coloca algum enchimento prá aumentar o peito; a saia quase deixa de fora o joelho, só prá provocar os bestas dos hômes.
Senhor Tiburcio, escolado pela vida a dois, não se manifestava, apenas consentia com a cabeça; quando falava, não dizia nem tique nem taque, porém, era o primeiro a cumprimentar a sirigaita quando ela passava debaixo da janela, como a lembrar seu tempo de treme-treme.
Quando ela voltava, Da. Zina recomeçava a colocar defeitos na Rita da Donana, agora “por trás” da pobre coitada:
- Seio não, mas acho que ela coloca, também, um enchimento no traseiro, pois, não acredito que alguém tenha a poupança deste tamanho e ainda por cima tão bem aprumada; deve arrochar a cintura até perder o fôlego, porque não é possível alguém ter o pé da barriga com tanta estreitura. Prá dizer a verdade, num acredito que o empreito dela é rezar!
Senhor Tibúrcio, por força das circunstâncias, não falava nada por saber das arengas da Dona Zina, porém, utilizava do poder da mente para conversar consigo mesmo:
- Estou meio desguaritado, num sei o que é melhor pros óios: as suas duas mangas rosa, coladas por debaixo da blusa, quando ela vem ou a sua poupança quando ela vai. Não vou desdenhar, mesmo porque, não está na minha condição, mas, se acaso tivesse alguma sobra, acho que daria um adjutório para aumentar o rendimento da sua caderneta; tem outro porém, eu tinha vontade de enxergar e apalpar aquelas mangas, prá ver se já estão maduras. Não vou cair no exagero de querer morder, porque meus fiapos de dentes não tem consistência nem para banana ainda mais para manga rosa, tão grandota e desajeitada prá segurar.



MUTIRÃO, MUCHIRÃO, PUCHIRÃO E TRAIÇÃO (treição)

(Ajuntamento de trabalhadores para limpar uma roça, plantar, derrubar o mato, enfim, uma ajuda completa a um amigo necessitado de mão de obra; depois vem a compensação: o pagode. (Bariani Ortêncio, Dicionário do Brasil Central- Gráfica Diarte, Goiânia,1983).




Lembro, até com certos detalhes, de alguns mutirões que tive a oportunidade de ver no meu tempo de criança.
Meu tio, irmão de meu pai, possuía um pequeno sítio nas imediações do lugarejo onde vivíamos, localizado nas vizinhanças do rio Muzambo e do trajeto da Rede Mineira de Viação, no sul de Minas Gerais; costumava, juntamente com meus irmãos, visitá-lo com alguma frequência, e até, no período de férias escolares, passar alguns dias por aquelas paragens, principalmente percorrendo as misteriosas brenhas das imediações da sede.
Dentre todas as atividades da roça, uma chamava a nossa atenção pela grande movimentação de pessoas e, principalmente, pelos preparativos que antecediam o acontecimento; era o chamado mutirão.
Tio Zé Francisco, semelhantemente aos seus vizinhos, possuía algumas cabeças de gado, porcos, além de cultivar a terra para plantações de arroz, feijão e, principalmente, milho; como suas condições financeiras não lhe permitiam contratar empregados utilizava, com muita freqüência, o chamado mutirão, expediente que aliava a mão de obra dos vizinhos à festa proporcionada pelo ajuntamento de grande número de conhecidos em ambiente de alegria e franca camaradagem.
Algumas vezes, tio Zé era surpreendido: sem que ele soubesse, seus vizinhos, geralmente comandados por um amigo mais “chegado”, faziam os preparativos em surdina e, no dia aprazado, chegavam de surpresa para o mutirão de traição ou treição.
Em dia previamente combinado, a peonada apontava no espigão da serra junto com o raiar do dia; alguns já chegavam cantando, outros provocando brincadeiras com os conhecidos que iam encontrando, todos eles carregando, às costas, seus instrumentos de trabalho: uma enxada ou uma foice roçadoura, dependendo se o combinado era capina de roça, colheita de grãos ou roçagem de pasto.
Se o mutirão era de traição, chegavam sem fazer barulho e, ao sinal de comando, iniciava-se uma algazarra ensurdecedora, à maneira de uma serenata: fogos de rojões, viola, cantoria e, principalmente, o ruído proporcionado pelo bate-bates, às vezes uma centena de foices, umas nas outras.
Se acontecia de um companheiro chegar com a foice com o gavião sem mostra de uso, era motivo de folgança da caipirada:
- Peão que ombreia foice ainda novata de corte, só vai ter direito ao café-com-duas-mãos (café com mistura), vai sobrar boião prá nóis!
- Mão sem calo é fazer doce de cidra sem ralo!
- Vamos permitir que ele experimente o quentão e “tarveis” a dança...
Concomitantemente com a chegada dos companheiros, as mulheres da casa, também em sistema de mutirão com as vizinhas, já estavam de pé se movimentando na cozinha, preparando a matula para o desjejum que, normalmente, consistia em carne seca ou de porco, retirada aos pedaços (pelota) de uma lata de querosene com mais da sua metade preenchida com gordura de porco, expediente que permitia conservá-la por longo período de tempo; jogava-se dentro de um enorme tacho de cobre, já previamente esquentando no fogão
A peonada, sentada ao redor da casa, não arredava pé enquanto não fosse servido o cheiroso “mata fome”, normalmente na forma de sanduíche com o “pão-de–intaliano-redondo”; quase sempre a bóia era regada com uma boa pinguinha, servida em canequinhas de alumínio ou de esmalte; nestas horas, mostrando o espírito de alegria que contagiava o ambiente, alguém abraçava uma viola, iniciava o ponteio das suas cordas e dava o tom; um outro, mais desinibido, toma a iniciativa e principia a cantoria de uma toada, que era seguida, em coro, pelos demais.
Cornélio Pires, famoso folclorista paulista que passou quase toda sua vida escrevendo sobre “nossos caipiras”, conseguiu registrar algumas destas cantorias (Cornélio Pires, Conversas ao pé do fogo, 1921)
Eu quero bem minha foice
ela corta satisfeita...
João Lino vai fazê festa
Bem no tempo da coieita
E o coro respondia:
João Lino vai fazê festa
Bem no tempo da coieita.

De repente, parece que obedecendo a um comando, os cantadores pegavam seus instrumentos de trabalho e se dirigiam para o serviço; normalmente alguém comandava a distribuição da peonada, formando em linha, como se fora um movimento de infantaria, com três segmentos, ponta direita, esquerda e o grupo do meio.
Ao sinal da voz de comando iniciavam-se, todos ao mesmo tempo, o serviço e a cantoria em coro, comandada pelo mestre de toadas; um indivíduo encarregado de distribuir a pinga corria, de uma extremidade a outra da linha, passando a mesma canequinha de boca em boca
Havia, entre os três grupos, disputas para ver quem andava mais depressa no seu eito; se acontecesse que as pontas, pela rapidez com que trabalhavam, “fechassem” a turma do meio, os perdedores ficavam com a “porca” (troféu fictício, sem relação com o animal que lhe dá o título).
O almoço era servido no próprio local do serviço, quando todos procuravam uma sombra, geralmente perto de um regato; comia-se muito bem; fazia-se o quilo e alguns aproveitavam para dar uma pequena cochilada; depois o serviço continuava até o fim da tarde, quando todos paravam, independente de terem terminado toda a tarefa ou não.
Voltavam para a sede, com a mesma alegria da ida, quando, então era servido o jantar, geralmente uma galinhada, mandioca, feijão e carne de porco, regado a uma boa pinguinha; junto a uma fogueira improvisava-se o “arrasta-pé”, conhecido como pagode e os violeiros cantadores entoavam suas modas e seus desafios.
Meu amor é pequenino
Do tamanho dum botão;
De noite eu trago nos braços,
De dia no coiração.
A festa ia até de madrugada porque, no dia seguinte, sempre era domingo!




DUELO DA INTELIGÊNCIA – Um advogado (Rui Barbosa) versus um médico (Ernesto Carneiro Ribeiro).

Pelo que se depreende da leitura, não só de livros literários como de compêndios sobre a história do Brasil, no século dezenove e inicio do século vinte, era muito comum as discussões, através da imprensa, de assuntos polêmicos. Na maioria das vezes os debates acabavam desaguando para a procura, entre os contendores, de possíveis erros de português na redação do que se estava discutindo.
Normalmente as discussões eram de alto nível; algumas vezes, no entanto, dependendo do polemista, o terreno se tornava movediço, com utilização de termos não apropriados e até mesmo sarcásticos e virulentos, como ocorreu no debate entre os escritores Julio Ribeiro e Sena Freitas, a respeito do romance A Carne.
Um dos momentos maravilhosos destas polêmicas ocorreu entre dois baianos: o jurista Rui Barbosa e o médico, filólogo e professor de português, Ernesto Carneiro Ribeiro.
O inusitado desta questão foi que um fato político tornou-se um caso literário, principalmente um caso de discussão sobre a gramática portuguesa.
Epitácio Pessoa era ministro da justiça do governo de Campos Sales quando, em 1899, Epitácio incumbiu o Professor Clovis Bevilaqua de redigir o projeto do nosso código civil o que mereceu a imediata contestação de Rui Barbosa, alegando que havia sido exigida pressa na sua realização, que não devia ser feito por uma única pessoa e, além de tudo, o encarregado da tarefa não possuía suficiente conhecimento do vernáculo.
Como as discussões deveriam ser apressadas para que o código pudesse ser aprovado ainda no governo de Campos Sales, surgiram, como se poderia esperar, muitos erros gramaticais na redação da colcha de retalhos que se tornou o aludido projeto original.
Para tentar sanar este “pormenor”, foi solicitado o auxilio do respeitabilíssimo Prof. Carneiro para que revisasse o texto, tanto a parte gramatical como a literária; deram-lhe o prazo de cinco dias!
Aprovado na câmara, o projeto foi enviado para o senado, onde uma comissão, presidida por Rui Barbosa já estava de prontidão, aguardando-o; segundo alguns historiadores, Rui estava magoado por não ter sido ele o encarregado de elaborar o projeto original, portanto estava em suas mãos a oportunidade de provar o que afirmara no inicio, sobre a competência do jurista Clovis Bevilaqua.
Ao final de três dias, Rui apresentou duzentas e dezessete folhas manuscritas que se transformou, depois de editado pela Imprensa Nacional, em um livro de 560 páginas, com o seguinte título: Parecer do senador Rui Barbosa sobre a redação do projeto do código civil.
Para surpresa geral, ao invés de criticar os aspectos jurídicos do Código, Rui usou toda sua inteligência para mostrar que o mesmo estava mal redigido, com erros de linguagem, cacofonias, etc.
Para dar uma idéia da profundidade das observações, refiro-me a um único exemplo: ao corrigir a redação do artigo 1503, §65, Rui trouxe à baila uma discussão que se prolongou por 16 páginas, sobre a oportunidade de trocar o adjetivo possessivo pelo pronome (... passa a seus herdeiros ... passa-lhe aos herdeiros).
Com esta postura, para muitos considerada como elitista, Rui não conseguiu agradar aos políticos (não era um homem realista) e tampouco aos escritores (purista da linguagem sem necessidade).
Como não poderia deixar de ser, surgiu na imprensa inúmeros artigos, alguns apoiando o famoso jurista, porém, a maioria de contestação, principalmente da parte dos políticos e dos deputados que aprovaram o texto e, também, do jurista Bevilaqua, autor do projeto.
Finalmente, no dia 26 de outubro, o Prof. Carneiro se manifestou através do Diário do Congresso, publicando sua resposta: “Ligeiras observações sobre as emendas do Dr. Rui Barbosa”; No dia 11 de novembro, em discurso memorável no Senado, Rui dissecou o projeto, acusando-o, dentre outras coisas, de anomalia jurídica.

Logo em seguida, veio à luz uma das mais extraordinárias peças do saber gramatical, padrão imorredouro de arte pela beleza da forma, denominada a Réplica, que provavelmente nunca será igualada em nossas letras, porém, desencadeou um verdadeiro drama no espírito do Prof. Carneiro, levando-o a afirmar: “Vou responder a Rui, embora isto me custe à vida”.
Somente em 1905 o Prof. Carneiro respondeu a réplica de Rui, com uma tréplica, contida em volume de mais de novecentas páginas, intitulado “Redação do projeto do código civil e a réplica do Dr. Rui Barbosa”.
Apenas para nos ater ao exemplo que citamos acima, na pagina 591 da sua tréplica, o Prof. Carneiro, insiste na discussão sobre o uso do possessivo e do pronome, utilizando 11 páginas para reafirmar seu ponto de vista.
Segundo consta, Rui Barbosa pensou em “dar uma tunda no Carneiro”, porém, desistiu da idéia, tendo em vista que este havia sido seu mestre nos bancos escolares da Bahia e também, segundo alguns, porque o assunto estava tomando conta das suas atividades funcionais e literárias.
Finalmente, durante a campanha eleitoral de 1919, quando Rui, indo à Bahia, numa hora de emoção, confraternizou-se com o antigo mestre em encontro emocionante, abraçaram-se entre lágrimas e aplausos.

BONS TEMPOS AQUELES!

Ela estava dividida entre o desejo de me deixar uma ultima imagem sua e o medo de que essa imagem fosse insuportavelmente triste

A Busca do tempo perdido
Marcel Proust
A imagem que guardo da minha mãe, não é de insuportável tristeza. Vejo-a caminhando com dificuldade, é verdade, porém, sempre com a certeza de que seus passos levavam-na ao porto seguro. Nos últimos tempos ela esteve acamada; no entanto, nunca ouvi dos seus lábios um lamento ou alguma manifestação de tristeza; enfrentava com resignação mais aquele desafio que o destino lhe reservou.
Ah se eu pudesse segurar, novamente, as suas mãos; ah se eu pudesse, novamente, caminhar ao seu lado. Ah se eu pudesse... O tempo passou e ficou, guardada na retina e no coração, a sua imagem, austera, impositiva, muitas vezes triste e no mais das vezes alegre.
Outro dia, revirando meus guardados, deparei-me com um caderno de anotações da movimentação de hóspedes da nossa pensão Santo Antônio; a letra, inconfundível para mim, era de minha mãe, legível, porém, “brigando” com os espaços das linhas.
O ano era o de 1953, pois, destaca-se uma anotação da lavra do Sr. Bernardo Piazzalunga, onde aquele saudoso e progressista empresário declara, de próprio punho, que entregou Cr$500,00 (quinhentos cruzeiros), provavelmente à dona da pensão, no dia 23.5.53, para pagamento, por conta, da dívida por ele contraída, pelo fornecimento de refeições para seus funcionários da fábrica de queijos.
Na verdade eu era, juntamente com a boa negrinha Margarida e o meu grande amigo Servinho, mais conhecido como Tutu, um dos garçons da pensão; por isto me lembro que os funcionários acima citados eram os próprios filhos do Sr. Bernardo (Zezé, Pedrinho, Netinho e Paulinho) que se revezavam na assistência aos negócios do pai.
Cada refeição custava Cr$10,00, como se depreende pelos cálculos inseridos no citado caderno; minha mãe obrigava-nos a não deixar, em hipótese alguma, que o hospede pedisse que completasse alguma travessa; éramos instruídos a mantê-las sempre cheias.
Era o diferencial da pensão Santo Antonio, como Da. Olívia gostava de dizer
Folheando outras páginas do antigo caderno, “reencontrei-me” com vários outros hóspedes da nossa pensão: José Marques, Geraldo Loredo, Vicente Mota, José Candido, Bié, Mario Correa, Quelemente, Eucridis, Arineu, João Rocha, Roxado, Arante, João Celestrine, Juaquim Gomes, etc.
Sei que a grafia de muitos destes nomes está incorreta, mas foram assim registrados; a encarregada das anotações não esperava que as mesmas caíssem nas mãos de um bisbilhoteiro, mais de cinqüenta anos depois...
A impressão que guardamos das pessoas que marcaram nossas vidas costuma, em muitas oportunidades, perder no emaranhado do tempo, pois, aquele instante do encontro se apagou, como a luz da vela que morreu pelo definhamento do pavio.
De repente somos tangidos pelas nossas lembranças; a simples menção de um nome, pinçado, como agora, das anotações corriqueiras de uma zelosa dona de pensão, leva-nos de volta ao passado e instintivamente, nos vemos a conversar com algumas destas pessoas.
Momento de pura magia e encantamento; não sei quantas, mas sei que a maioria delas já morreu; no entanto, consigo mantê-las vivas e trago-as para meu momento presente.
Parece que ouço suas vozes, porém, percebo que são apenas ecos. Suas palavras reverberam e escapam ao entendimento; porém, são suaves como a brisa de uma tarde de primavera que transportava o delicado perfume roubado de uma rosa.
O tempo passou, o inverno implacável dos dias vividos estendeu suas garras sobre os sobreviventes de hoje; não tente segurar a sua marcha e nem procure alcançar as mãos que você imagina estarem estendidas. As rosas que embelezavam o seu ambiente de outrora murcharam, o seu perfume foi alegrar o coração de outro vivente, em outras plagas; o resquício que ficou e que seu olfato teima em captar, imita o vapor emitido por um lança perfume que foi acionado na direção sem alvo.
Resta a saudade “daqueles bons tempos”.
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15 de novembro de 1889 – a historia é sempre contada pelo vencedor

Os dramáticos acontecimentos que se desenrolaram no quartel general do exército no Rio de Janeiro, naquela manhã de 15 de novembro de 1889 ficaram registrados pela história com duas versões, não propriamente contraditórias, porém, com alguns detalhes do diálogo entre os presentes, tendentes a engrandecer um pouco mais a figura de Floriano Peixoto e, provavelmente, diminuir a de Deodoro da Fonseca, se isto é possível.
Como sabemos, ao tomar conhecimento do levante de grande parte do exército, o Visconde de Ouro Preto, então Chefe do Governo, resolveu, junto com alguns outros membros do gabinete, se dirigir, inicialmente para o Arsenal da Marinha, onde contava com real apoio, uma vez que já havia sido Ministro da Marinha, de onde, aliás, poderia organizar, se quisesse, algum tipo de resistência.
No entanto, foi convencido a se dirigir ao Quartel General do Exército, onde acabou por ser envolvido em uma emboscada, pois, naquele momento, as tropas comandadas por Deodoro da Fonseca estavam, justamente, invadindo as suas dependências.
A história registra, com a dramaticidade que o momento exigia, o diálogo mantido entre Ouro Preto, Floriano Peixoto e Deodoro da Fonseca. Ouçamos inicialmente, pela voz do historiador Dr. Austricliano de Carvalho (Historia do Brasil Colônia e Brasil Império, 1935) que, diga-se de passagem, foi a versão que ficou (repetida, quase que literalmente, pelos historiadores Hélio Silva, 1889:A república não esperou o amanhecer e R.Magalhães Junior, Deodoro- A espada contra o Império).
“Ouro Preto, sempre impávido, apesar de ter ouvido a observação do ajudante de ordens de Floriano, tenente Felipe Câmara, filho do visconde de Pelotas, de que ponderasse na carnificina inútil que iria causar, se o seu chefe executasse a ordem de atacar Deodoro.
Quis ainda Ouro Preto estimular o brio daquele, dizendo-lhe que na guerra contra o Paraguai ele fora um valente e que tomara bocas de fogo do inimigo, portanto, que fosse tomar as de Deodoro.
-As bocas de fogo do Paraguai, Senhor Ministro, respondeu Floriano, eram inimigas; aquelas que V.Excia. está vendo são brasileiras... Fique V.Excia. sabendo mais, estes galões que trago no punho foram ganhos nos campos de batalha e por serviços prestados à nação e não a ministros” .
Como sabemos, Ouro Preto foi preso e posteriormente deportado; de Tenerife, ainda a caminho do exílio, logo depois destes acontecimentos, lançou um manifesto que foi amplamente divulgado e, o mais interessante, não foi contradito neste episódio que estamos referindo, por nenhuma das personagens-testemunhas, todas elas ainda vivas na ocasião.
Ouçamos o que disse o famoso político, contrapondo o trecho deste diálogo ou discussão:
“Na realidade, quando pela quinta ou sexta vez, ordenei o ataque às forças de Deodoro, objetou-se Floriano que a artilharia daquele, apontada contra o Quartel-General, reduziria tudo a ruínas.
- Mas esta artilharia pode ser tomada à baioneta, retorqui-lhe; na pequena distância em que se acha postada, entre o primeiro e segundo tiro de uma peça, há tempo de cair sobre a guarnição.
- É impossível, respondeu Floriano, as peças estão colocadas de modo que qualquer sortida será varrida a metralha.
- Por que deixaram então que tomassem tais posições? Insisti; ignoravam? Mas não creio na impossibilidade senão diante do fato. No Paraguai os nossos soldados apoderaram-se de artilharia em piores condições.
- Sim, observou Floriano Peixoto, mas lá tínhamos em frente inimigos e aqui somos todos brasileiros.
Foi só, o que foi colocado por nós em negrito e que é a versão que circula entre os vencedores, é pura invencionice. Floriano nem tinha galões nos punhos e tampouco ele teria dito o restante da frase, pois é incompatível com os hábitos e pouco e comedidas frases do marechal, que sempre, até o último momento do dia 15, dispensou-me, como meu amigo, a maior deferência e reclamou contra a minha prisão e deportação, afinal cominadas por Deodoro”.
A segunda versão para discussão, agora partiu do filho do Visconde de Ouro Preto, o conde Affonso Celso.
No livro “Visconde de Ouro Preto- Excerptos biográphicos”, publicado em 1935 pela livraria Globo, Afonso Celso, que era membro da Academia Brasileira de Letras e do instituto histórico e geográfico do Rio de Janeiro. também descreve aqueles acontecimentos.
Ouçamos um pequeno trecho do seu relato, porém, , com a devida cautela para subtrairmos o que ali está embutido de carga emocional do filho escritor:
“ Asseverou-se que foi somente após saber que Dom Pedro II, depois de receber a renúncia do gabinete de Ouro Preto, motivada pelo motim militar, estava propenso a indicar o senador Silveira Martins, desafeto de Deodoro, para organizar o novo governo, foi que este resolveu proclamar a republica”.
Segundo ainda Afonso Celso, o Marechal Deodoro da Fonseca tinha profundo respeito pelo monarca e pensava, inclusive, expor a Dom Pedro II as suas intenções sobre o ministério sucessor do deposto.
“Quanto ao Imperador, - dissera Deodoro, ante o visconde de Ouro Preto e numeroso auditório, - tem minha dedicação, sou seu amigo, devo-lhe favores”; este trecho em negrito nunca foi, segundo o autor, desmentido por nenhuma das testemunhas e tampouco por Deodoro.
Finalmente, com a clara intenção de amenizar sua tentativa de diminuir o feito de Deodoro, conclui Afonso Celso “Tributando justiça ao patriótico brasileiro, pensamos que não foi subalterno motivo de ordem privada, o motivo que o levou a provocar mudança das instituições do pais”.
Fica o relato; a história é dinâmica, a procura constante de fatos escondidos nas entrelinhas dos relatos é necessária. Não cabe ao historiador analisar os fatos; cabe, tão somente, narrá-los!

Professor Bittencourt, por que o senhor fez isto comigo?


A dor que sinto é tão grande! A falta que o meu amigo, Professor Bittencourt, me fará, não consigo, ainda, aquilatar.
Teilhard de Chardin, famoso padre jesuíta francês, no dia 18 de março de 1934 escreve a um amigo, diretamente de Pequim (Lettres de Voyage-1923-1955, Paris), dando noticia do falecimento do poeta Davidson Black, a quem ele, Chardin, devotava imensa amizade e devoção:
“Escrevo-lhe para dar-lhe maiores detalhes sobre uma tragédia: Davidson Black morreu subitamente, ontem à noite de parada cardíaca. Seu coração estava em mau estado já há algum tempo. Há cinco semanas tivemos um alerta; mas esperava-se uma melhora. Porém, o desenlace se precipitou. Black se sentia melhor na aparência. Ele estava falando com veemência com alguns amigos, sempre cheio de projetos. Alguns minutos mais tarde morreu. Foi uma bela morte, repleta de élan. Mas uma vazio terrível...mas que coisa absurda, aparentemente, é a vida...tão absurda que se sente rejeitado por uma fé perseverante e desesperada. É com Black que eu pensava, que eu amava e que eu planejava meu trabalho. No desespero que sobreveio após a morte de Black, dentro da estonteante atmosfera que envolvia sua morte, eu jurei, diante do corpo do meu amigo, lutar, mais do que nunca, para dar uma esperança ao trabalho”.
Na sexta-feira, 26 de setembro, logo no começo da tarde, recebi do professor Bittencourt o seu, quase diário e.mail:
“Minha cordial saudação; sinto falta da nossa habitual correspondência virtual. Nos últimos dias não tenho me sentido bem e preciso saber o que está acontecendo comigo; hoje à tarde vou ao encontro do meu médico. Aguardamos seu regresso!”
Nesta mesma tarde o Professor Bittencourt morria!
Qual a semelhança entre estes dois episódios? Em ambos houve a crueldade do acontecimento inesperado!
Choro a morte do amigo querido que partiu; não o perdemos porque fica a sua imortal idéia; sabemos, como ele sempre repetia, que os desígnios do Criador foram estabelecidos com muita antecedência, porém, cometendo um deslize com a fé, preciso repetir um trecho dos Sermões de Vieira:
“Por que não terão também os anos o que tem o ano? O ano tem tempo para as flores e tempo para os frutos. Por que não terá também o seu outono a vida?”
O senhor não tinha o direito de partir agora Professor Bittencourt; nesta viagem que fiz, cumpri o que lhe prometi: estive na cidade onde John Steinbeck morou por muitos anos, bisbilhotei os lugares por onde ele andou, comprei livros antigos que ele escreveu, fiz fotografar-me junto ao seu busto.
Para quem vou narrar estes acontecimentos agora? Para quem vou enviar a fotografia? Com quem, daqui para frente, na calada da noite, somente com a companhia do meu computador, irei discutir assuntos tão ecléticos como fazíamos?
Ao ouvi-lo falar com tanta fé sobre a religião católica aprendi, com o senhor, que ter fé não pressupõe acumulo de cultura, mas sim o necessário engajamento que opera além da razão, ou até mesmo contra a própria razão.
O senhor vinha sendo a alma fiducial que precisava, e agora? Com quem vou continuar a discutir o assunto que interrompemos acerca da maravilhosa correspondência que o pensador católico Alceu de Amoroso Lima mantinha com a sua filha, a madre Maria Tereza?
Ainda agora vejo, postada em lugar privilegiado da minha estante, vigiando minhas ações e meus pensamentos, a protetora de nós ambos, Santa Terezinha do Menino Jesus.
Ela, tenho certeza, está lhe protegendo neste novo mundo de luminosidade; continuarei minha caminhada, trombando com as minhas lembranças, com saudade de tudo que vai ficando para trás; com saudade do senhor!
Minha alma, neste momento de tanta emoção, sofre a tentação do pecado da inveja; minha alma sente inveja daqueles que possuem a capacidade de saber retratar com as palavras que, debalde as procuro e não as encontro. Retratar o sentimento de paixão que emana do meu espírito.
Peço ao meu amigo Goethe para ajudar-me:
“Os últimos companheiros de uma longa jornada têm mais coisas a dizer um ao outro”
Meu relacionamento afetivo com o Prof. Bittencourt é de recente era, aproximamos nas reuniões culturais da Academia Goiana de Letras, embora, como não poderia deixar de ser, acompanhava-o, à distância, há muito tempo. Sua crônica semanal no Diário da Manhã, que lia com assiduidade e, principalmente, com muito prazer, era a diretriz das minhas movimentações no mundo das letras.
A partir daquele encontro, deixamos que a empatia mediasse o nascimento de uma grande amizade que se tornou extensiva à sua digna família, mormente a sua querida esposa, senhora Veneranda.
Descanse em paz meu amigo Professor Bittencourt!

ERRAMOS O CAMINHO!

Após andarmos quase três léguas, observei que o Vital estava ficando inquieto, olhava de soslaio para mim, depois olhava para a direita, para esquerda e para trás; voltava a caminhar e voltava a parar. Minhas dúvidas, se é que ainda as tinha, acabaram-se quando ele parou um homem que cruzava no nosso caminho, para pedir informações.
- Vosmicê caminha neste rumo um bão eitão de duas léguas, vai topar direto com o espigão mestre da serra dos macacos; aidispois vancê atrevessa um riberão grosso, mais que dá váu, caminha uma légua mais ou menos e vai chegar num mato sujo que escafunda num brejal escumunguento, aidispois, na distânça de olho, vai topar com o pouso do João Tatu, é só flechar no prumo, já tá chegando no destino, pelos mandado de Nossa Senhora da Abadia.
Claro que este acontecimento me aborreceu sobremaneira, porém, não havia meio de voltar atrás; voltamos ao lugar de origem!
Não sei se o Vital entendeu adequadamente as informações, porém, voltou para perto de mim e disse com a voz de trovão:
- O que tá feito num tem remendo, só posso pedir desculpa pra todo mundo e vamos enfrentar o tremedal.
Realmente Vital estava certo nas suas previsões; o caminho, que já era ruim, tornou-se praticamente intransitável e para nosso maior sofrimento avistamos, a uma distância de mais ou menos 500 metros, um aglomerado de gente e animais no meio da estrada.
Ao aproximarmos, verificamos que havia uma pequena ponte, em péssimas condições e no meio da mesma, vários bois atolados, juntamente com o respectivo carro; aguardando, do lado de cá, vários outros carros de bois. O homem, proprietário do carro que estava atolado, gritava feito um possesso com os animais, principalmente com os dois velhos bois guias:
- Mercado! Pandeiro! Vamos!
Concomitantemente com os gritos, cutucava-os, agora com o auxílio do candieiro, sem dó nem piedade, com o ferrão; via-se, claramente, que os animais estavam esvaindo suas forças no lamaçal que roçava suas barrigas. Debalde, o carro não aluía nem um centímetro; quase não se via o cocão, completamente submerso na lama. Vital, enchendo-se de coragem, porque é preciso tê-la para dar um palpite numa hora dessas, quando o carreiro é um barril de pólvora prestes a explodir, dá um passo à frente e grita com a sua voz de trovão:
- Vamos emendar duas boiada companheiro!
Parece que o carreiro estava só esperando um auxílio, nem discutiu a proposta, olhou para o candieiro e gritou em alto e bom tom:
- Vamos homem, o que ocê tá esperando? Traz logo o outro tiro, escolhe aquele dacolá, os boi estão mais sacudidos! Vital sentiu firmeza, pulou para frente e começou a comandar as ações:
- Vamos fazer um revézo, vamo usar os dois bois de coice do cumpanheiro aqui, pois seus animal já tão cansado, vamo usar também os dois guias do cumpanheiro dacolá; se mal lhe pergunte, como é o nome dos baguá?
- É Campeão e Violento prá servir vosmicê!
- Gostei da apelidama dos bicho, pelos nome já dei conta que num são
qualquer boiota não; precisa haver conhecimento entre os animais, boi do cabeçalho num respeita junta dianteira que num conhece, si vosmicê quiser pode descangar uma junta, pois num tô aprovando muito o mau gênio daqueles dois danados, vamos colocar seis bois de chaveia, nestas horas o contracoice é o rei da fusarca.
Pessoal, num quero muita gente neste serviço aqui agora, pra num virá um arengue, os boi pode estranhar; vosmicê, tange os animais, grita eles pelos nomes próprios, eles ficam mais bem servidos, abrocha a canga do seu jeito, eu pessoalmente gosto de principiar pelo da direita, é questão de costume; enlaça de acordo a soga nas aspa da pareia, facilita entrosar o cambão na canga que vai encambichar na junta de traz, enfia o laço do tamoeiro e a chaveia, aperta bem com a corrêa, acho que no final, a enfiada, do jeito que adispuzemo ficou bôa; menino, pega o azeite no chifre que está dipendurado no fueiro trazeiro, unta o cocão, pra móde evitar um fogaréu, chaquaia o chocaio sem dó nem piedade bem na frente do Campeão e do Violento, pra mode eles comandar com alegria; vamos dar umas ferroadas nos dois bois coiceiros, com cadência e sem agito, daqui pra frente seja o que Nossa Senhora da Abadia quiser.
Candiero, chama lá com Deus e as almas do purgatório!
Dito e feito, com a força acumulada de 20 bois, arrastou-se o carro com a maior facilidade, sob os gritos, chapéus jogados para cima e aplausos da peonada.

BATISTÃO E NARANDINHA

Antes de tudo é necessário dizer como o casal João Batista, mais conhecido como Batistão, e a Da. Narandinha (nunca soube o seu nome verdadeiro) surgiram em nossas vidas.
Vicintin, cujo nome completo parece que era Vicirinato, baiano de Barreiras, nosso funcionário de há muitos anos, um dia perguntou-me se não havia vaga para empregar o seu concunhado recém-chegado da Bahia, com três filhas pequenas e que estava com dificuldades financeiras, “encostado” na casa do sogro, em Goiânia.
Por se tratar de pessoa de nossa maior confiança, honesto e trabalhador, mandei que trouxesse o Batistão para conversarmos...
No dia aprazado, lá estava o Vicintin com o seu compadre; já no primeiro encontro simpatizei com o futuro funcionário de nossa fazenda.
Batistão era bem moreno, magro, barba rala, sem bigode, porém com um par de costeletas enormes, dispostas à maneira de um triângulo de ápice superior, atingindo, na sua base alargada, até as imediações dos maxilares.
Sorriso de boca fechada, mãos calejadas e pés enfiados naquelas chinelas de borracha que são presas no vão dos dedos.
Falando baixo e respeitoso, chamando-me, a todo o momento, de “Dotore” (deve ter sido instruído pelo compadre). Começaria a trabalhar no dia seguinte, dependendo de conseguir trazer a família; busquei-os na casa do sogro; toda a mudança com a família (esposa, três filhas, um gato e dois cachorros), coube na camionete C-10.
No dia da mudança conheci Da. Narandinha, também baiana, mais baixa do que o Batistão, face encardida e pés no chão, três filhas barrigudinhas e com o nariz sujo de “ranho”. As crianças, também, estavam descalças; seus cabelos estavam embaraçados até não ter mais jeito...
Batistão e Da. Narandinha tinham um linguajar que muitas vezes não eu conseguia entender; usavam dar apelidos a quase tudo que os rodeavam. Um dos seus cachorros, provavelmente chamado “garoto”, atendia pelo apelido de “garoti”; as filhas, Xilibene, Mailene e Gatin (??); parece que se chamavam Lucielene, Marilene e Edilene.
Algum tempo depois que aqui chegaram, adotaram um menino, filho de um primo do Batistão, que se chamava Dinaldi, posteriormente “Pinguinha” (parece que era Edinaldo).
Um dia, observando de longe, o diálogo de minha mulher com o Batistão, deu-me um acesso de riso que a muito custo consegui controlar.
Marília queria que o Batistão a ajudasse na feitura de um canteiro de rosas:
- A senhora quer “réti” ou “discaídis”?
- Eu queria que o senhor, primeiro enquadrasse o terreno, para não ficar torto...
- Fizesse o quê???? ...
- Colocasse uma linha para que o canteiro não ficasse torto, Sr.João Batista...
- Pode ficar “frias” (tranqüila) Da. Mariula, vou colocar bem “réti”(linha reta) e sem ficar muito “discaídis”(sem declive)...
O Batistão e a família foram tomar conta do Retiro das Jabuticabas e daí em diante, nos despreocupamos; ele era, realmente, muito trabalhador, aprendeu a dirigir o trator, cuidava do pomar com todo o carinho e dedicação, os pastos eram mantidos sempre limpos e, quando acontecia de ser surpreendido com alguma coisa não muito arrumada, dava-me mil explicações.
Houve uma grande transformação na vida do Batistão e de sua família; fogão a gás, comprou televisão, além de sistema de som da melhor qualidade; as crianças andavam bem arrumadinhas, Da.Narandinha, tida como antissocial, mudou completamente, andava sempre bem vestida, com sandálias e até comprou um par de brincos e óculos “ray-ban”.
Se não fosse o fato do Batistão gostar de uma bebida nos fins de semana, contrariando a Da. Narandinha, a vida deles seria um verdadeiro paraíso.
Várias vezes fui solicitado pela Da. Narandinha a chamar a atenção dele, pois, quase todos os sábados, a partir da noitinha, o Batistão ia para o bar do Preto Jó (situado cerca de dois quilômetros da fazenda) e só voltava no dia seguinte.
- Batistão, acho que você está exagerando na bebida, Da. Narandinha anda reclamando...
- “Exageres” dela “dotore”, o que eu tenho feito é ir ao bar fazer algumas compras para casa e lá encontro uns amigos, ficamos conversando e, não vou mentir, bebemos algumas doses, sem “excel” (sem excesso).
Primeiras rusgas
- “Dr. Hél”, o Batistão passou dos limites neste fim de semana, foi pro bar e, ouvindo o conselho da minha mãe, resolvi ir com ele para vigiar mais de perto; lá encontramos o Valto (Walter, peão de uma fazenda vizinha), companheiro do Batistão nas noitadas de sábado e os dois começaram a beber, parecia que o mundo ia acabar, “home” quando “encabeça” para um lado não há quem consiga mudar. Já era mais de duas horas da madrugada, eu estava ficando muito incomodada com as crianças que ficaram sozinhas na fazenda, resolvi dar uma apelação.
Xinguei o Batistão e de rebarba o Valto; foi a pior coisa que fiz, o Batistão montou na bicicleta e foi “simbóra me deixando sola” (sozinha). Por sorte o Valto, que também estava de bicicleta, “aceitou” de me levar. Foi uma viagem muito triste, pois devido à escuridão da noite e a bebedeira do Valto, caímos umas três vezes, sendo a última dentro do mata burro perto de casa... Veja o senhor o meu estado!...
Narandinha estava com um galo na cabeça, pernas todas arranhadas, escoriações nos braços e sem um dente na arcada superior.
- O dente foi o “disgramado” do Batistão que sentou o cotovelo na minha boca, quando cheguei em casa...
- Vou conversar sério com ele.
- Não “dotore”, deixa passar uns dias, se não ele descobre que eu enredei para o senhor e a minha vida vai ficar muito mais complicada.
Deixei passar alguns dias, chamei-o para um local afastado da casa e manifestei-lhe minha apreensão e contrariedade a respeito daquela ocorrência.
- “Dotore”, a Narandinha está “zagerando” um pouco, fui eu que a convidei pra ir ao bar do Preto Jó e, na hora de vir embora, ela preferiu ir com o Valto, pois, achava que eu não estava bom para dirigir a bicicleta; viu só como ela estava enganada, cheguei em casa “tranquilis” e ela com o Valto caíram uma porção “di veiz”, acho que o dente ela perdeu foi nestes tombos...



NÃO EXISTE PANELA SEM TAMPA ou O AMOR É LINDO!

Ouvia, com paciência é verdade, porém, só fingia que acreditava no que a sua madrinha Ordália dizia, todas as vezes que se encontrava com ele:
- Meu afiado José Francisco, você tem que ter paciência, a sua cara metade ainda não surgiu não é por você não ser muito afeiçoado de aparência, como você pensa, ela vai aparecer, de repente, numa hora destas; não existe panela sem tampa.
O espelho, que consultava todos os dias, não deixava, no entanto, que ele se enganasse: José Francisco não havia sido bem aquinhoado pela mão da natureza; tinha a feição toda cheia de manchas e cicatrizes, advindas, provavelmente, de varicela adquirida na infância; para complicar, era um pouco zarolho, seqüela, segundo sua mãe, de um estupor na infância, provocado pelo reflexo do sol dentro da bacia cheia de água, quando tomava banho com o estômago cheio.
Fora estes inconvenientes, ele até que poderia ser aprovado em outros testes, não muito exigentes, sinalizadores de beleza física: era alto, para alguns mais implicantes, um pouco acima da média, uns dois ou três centímetros menos que 2 metros, braços compridos, porém, consentâneos com o tamanho do tronco, destoando, um pouquinho, o avantajado volume das mãos, aliás, fazendo simetria com o tamanho 44 dos pés.
- Dê tempo ao tempo, dizia-lhe sua consoladora madrinha, todos somos filhos de Deus, um dia, quando menos você esperar, vai aparecer alguém que não está procurando somente beleza física e então você vai poder mostrar seu valor. Beleza não se põe na mesa, o que vale é o caráter e este você tem pra dar e vender.
Quantas vezes José Francisco, postado de frente ao seu inimigo espelho, ainda presentes as palavras consoladoras da madrinha, tentava combater o desânimo, olhava de lado, de frente, se afastava um pouco, se aproximava e finalmente, por estar sozinho, repetia para si mesmo:
Que cara este cafumango foi arranjar, meu Deus do céu!
Os argumentos dos pais, principalmente do seu pai, destoavam um pouco do arquitetado pela madrinha, provavelmente por aceitarem que não conseguiram transmitir ao filho nenhum traço de beleza que, de resto, eles mesmos não possuíam.
- Meu fio, feio é roubar e não poder carregar, tem tanta gente pela redondeza mais feia que você e no, entanto, não vive se queixando da vida; olha a Maria do Rosário, fia do senhor Turdilho, além de não ser esta belezura capaz de fazer alguém se enrabichar, ainda sofre desta manqueba, que é restolho da paralisia infantil, porém, nunca fugiu de uma prosaria com ninguém.
Parece que este argumento foi mais convincente, José Francisco estava sentado à porta da casa, quando viu a Maria do Rosário passar, naquela passada difícil, quase que arrastando uma das pernas, cumprimentou-o, como sempre fazia, e continuou na sua caminhada rumo à sua casa, situada a algumas centenas de metros de distância.
O sorriso dela havia sido tão espontâneo, aliás, como sempre fora, só que nunca havia sido notado por ele; parece que ela, naquele dia, segurou um pouco mais o olhar no rumo do José Francisco...Será? Ou estaria ele vendo fantasma onde não existia?
De toda maneira ficou no ar, alguma duvida: seria olhar de melúria que José Francisco vira ou seria o desejo de tê-lo visto que estava se apossando, de mansico, daquele pobre e sofrido coração.
Independente da conclusão, o fato é que daquele dia em diante a pequenina e frágil Maria do Rosário passou a fazer parte do mundo de José Francisco.
Não se conteve, contou para sua madrinha os apertos do peito.
- Meu afiado, sei que ela não é um pancadão que enche as vistas de qualquer um, porém, não é nenhuma galinha na manguara que não tem preço, ela é piquitita, tem aquela dificuldade para andar, mas é de boa família; ôta José Francisco, minhas preces foram ouvidas, não banque o estabanado porque ela pode assustar com o seu porte, vai com calma porque ela não é de regateirage.
Era isto que o já apaixonado José Francisco queria ouvir, sentiu uma bambeza nas pernas só em pensar numa maneira de se aproximar, quis perguntar para a madrinha como fazer, porém, achou que isto seria muito abuso e desistiu; acharia um jeito!
Aconteceu! Já era de tardinha, naquela hora do lusco-fusco, quando os pássaros começam a cantar para encontrar a companheira ou o companheiro desgarrado, quando o sol já desapareceu, porém, seus raios iluminam o topo da montanha, parecendo existir ali, um enorme espelho a refletir por toda a encosta; hora romântica e encorajadora, até para os mais tímidos; hora que José Francisco avistou Maria do Rosário vindo no seu rumo, absorta no seu pequeno e rotineiro mundo.
- Posso te ajudar a carregar esta trouxa de roupa?
- Poder pode, mas num precisa!
- Além disto, precisava te perguntar uma coisa que está engasgada na minha pensa há muito tempo: se aparecesse um homem mais comprido que ocê, bem mais feio, porém, cheio de boas intenções e se te perguntasse na bucha: Vancê tem coragem de fazer um compromisso com este manguarão?
Uai, José Francisco, se esta criatura estivesse disposta a amparar uma baixinha, cambeta, igual à chita, nem feia nem bonita, porém, cheia de amor para dar, eu teria.

BASTIÃO E OS CACHORROS

Estávamos, José Paulo, nossos dois funcionários Leonal, Bastião e eu, sentados ao lado da churrasqueira, jogando conversa fora e cervejinha gelada para dentro, enquanto aguardávamos a picanha “chegar no ponto”.
O “lufa-lufa” do dia havia sido exaustivo, vacinamos todo o gado e ainda desmamamos e marcamos uma penca de bezerros; no final da tarde, as forças foram diminuindo e o ânimo só era mantido à custa de muitas brincadeiras e promessas de recompensa (churrasco com cerveja).
Depois de duas latinhas e uma branquinha de alambique, Bastião começou a soltar o verbo, obedecendo à instigação do Zé Paulo:
- - Tião, eu sei que você tem medo de muitas coisas, mas parece que sapo e cobra são os animais que mais o preocupam, não é mesmo?
- - Não é não Dotôr, na verdade, meu maior medo é de cachorris.
- Acho interessante uma explicação quanto ao linguajar do Bastião, ele tem a mania de trocar a letra o pela letra i, e, quase sempre, acrescenta um s no final, como vimos acima.
- - Por que ? A pergunta aqui, não sei se deva ser entendida como uma simples curiosidade ou se o gaiato do Zé estava querendo “soltar”a língua do Bastião; se a intenção era a segunda hipótese, acho que ele acertou no alvo.
- - Não é mamparra não, seu Dotô, mas acontece que os outros animais a gente sabe que são selvagens, portanto não arriscamos, mas o disgramadis do cachorris finge que é amigo e quando o freguês descuida, ele "senta" os dentes na batata da perna, sem dó nem piedade.
- Uma vez em Goiânia, estava desempregado, lobisomando sem precisão, isto é, matando "sapo a grito", quando o Pesão, meu primo, me disse que uma muié lá do setor sul ia viajar e precisava de alguém pra vigiar a sua casa por uma semana.
Fui com o Pesão; chegamos quase na hora que eles estavam saindo, a dona mandou nóis entrar e começou a falar de como ela queria meu vigiamento, começou a me mostrar os "cômidos” e quando chegamos na sala de jantar, anliás, ainda não havia nem sido desfeita a mesa do almoço, ouvi um barulho de rosnado que não duvidei do que era.
Quando olhei pro fundo da sala, avistei um cachorris preto, mostrando a terrível canjica; pode aquerditar, na hora já me deu um calafrio e um estremecimento e uma agonia, que me deixou meio jajá.
- Dona, tenho muito medo de cachorris
- Não se preocupe, ela é amiga; Duquesa vem aqui para conhecer o senhor Sebastião, vem amiga!
Quanto mais “a amiga” se aproximava, mais eu ficava com medo de
ter um faniquito, comecei a procurar uma porta pra "vazar", mas o medo me fez ficar engambelado, estava ficando encostado no canto da parede, parecendo uma mangangava dentro do balde de leite.
- Pára ai Dona, tô ficando apavoradis !
- Não se preocupe, ela é amiga.
De repente, a "amiga" deu uma latida tão forte que quase me deixou surdis; não tive dúvida, dei um pulo prá riba e fiquei de pé em cima da mesa, no meio dos pratos da muié.
A "amiga", uma cachorrona parruda e muito nervosa, pois suas ventas até tremiam quando ela latia, ficou rodeando em volta da mesa, eu correndo em riba e a mulher gritando.
- - Desce senhor Sebastião, ela é amiga.
- - Só desço se a senhora amarrar esta fera!
- Resultado, com a minha gritaria, que quase estourou minha caixa do catarro e a latição dos infernis, chegaram o marido e os filhos e agarraram a tar de "duquesa"; sujei o sapato de arroz, feijão e macarrão, não consegui o emprego e ainda corri o risco de ter que pagar o prejuízo da quebração dos pratos.
Deus me livre de cachorris!