MINHAS CRÔNICAS

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Batistão diz ter visto a “mula sem cabeça”, será?

Faz muito tempo… Quando? Deracino não sabe ou não se lembra ao certo... o fato é que ocorreu; conto-lhes!

Estavam os dois, ele e o Batistão, vindo para casa depois de uma festa no sitio denominado “Dona Mingutinha”, distante mais ou menos duas léguas da sede da fazenda São Pedro, que está localizada no alto da serra de Monte do Carmo, no estado do Tocantins.

Vinham cavalgando a um passo lento, discutindo os acontecimentos daquela noitada; estava chegando a hora opressiva da luta entre a força do clarão do dia e o vislumbre da treva da noite. Quem conhece o sertão sabe que este horário costuma dar banzo nos habitantes dos gerais.

O lusque-fusque do dia confunde os sentidos das pessoas, as árvores começam a perder a nitidez das suas formas e simulam, vistas de longe, fantasmas de braços abertos e, se acontecer de ouvir o grito agourento do urutau, o desassossego do caboclo é substituído pelo medo.

Ao ser indagado o porquê dele não ter se enrabichado com a filha do Fonsequinha, uma vez que ela estava de “treita” com ele, Batistão disse ao Deracino que corria a notícia de que ela estava de “rolo” com o padre do lugarejo e mulher que enrosca com padre vira “mula sem cabeça” e com este “coisa ruim” quero distância, finaliza ele fazendo o sinal da cruz.

Para comprovar sua teoria, Batistão contou ao Deracino e este me contou o que vou lhes contar:

“Uma vez, lá onde eu morava, caí na besteira de estatelar o coração por causa de uma caboclinha pedaço de mau caminho; uma noite fui visitar a “escumunguenta” e na volta, já escurecendo, vinha a passo cochilento, só lembrando dos “amassos” que dei na pestinha. Ai Deus do céu!

De repente vi a danadinha andando na minha frente, bem no meio da estrada e até com certo remelexo do traseiro; na hora achei que ela estava querendo completar o que principiamos; se eu apressava o passo do cavalo, ela também fazia o mesmo; pensei comigo mesmo, ela quer valorizar o capital.

Quando cheguei a uma encruzilhada da estrada, meu matungo relinchou, buliu as orelhas e principiou a bater com os cascos no chão; no que fui tomar sentido no cavalo, a danadinha da mulher sumiu da minha vista. Você sabe o que é arrepiar os cabelos do corpo todo? Foi o que aconteceu comigo!

O meu desejo era não pegar na encruzilhada o mesmo “trieiro” que a macutena pegou; pedi ajuda ao padrinho padre Cícero e rezei bem alto o que aprendi com meu pai:

Em nome do meu Pai, do seu filho e do Espírito Santo!

Meu bom padrinho padre Cícero nunca deixa ninguém a pé

Livra este pecador desse desencanto

Jesus, Maria e José.



Entrei no caminho do lado direito, fugindo da banda que tinha uma figueira que, como você sabe, atrai tudo quanto é assombração; por causa, desconfio, de eu ser muito pecador, desta vez padrinho padre Cícero me deixou na chapada; caminhei no máximo uns 30 metros e a disgrama da mulher voltou a caminhar na minha frente, agora bem devagar, até que parou em um colchete o qual eu teria que passar.

Deu vontade de voltar nos pés, “aporém” não deu mais tempo; tava de frente com o estrupício que me olhava com olhar de gente pidão; desviei minha mira, na verdade cheguei a fechar o enxergador, não adiantou porque o medo não permite descuido; fiquei, como quem não quer nada, olhando somente com a fresta do olho esquerdo, que era o de melhor valia, para não ser pego de surpresa. Sabe lá o que este capeta tava pensando!

Nesta hora ela arrancou a roupa e ficou do jeito que veio ao mundo, completamente pelada; deu-me vontade de chorar e gritar, mas fiquei com medo de deixar ela nervosa; ela agachou e começou a comer terra e, ao se levantar era um monstro, era uma “mula sem cabeça”. Começou a dar coices nos paus do colchete e depois disparou pela estrada afora, relinchando.

Aproveitei o descuido, sentei a espora na anca do meu cavalo e disparei para o lado contrário do que ela ia; sentia, na minha pensa, o calor da sua língua no meu “gangote”; a dificuldade foi maior porque tive que correr sem segurar as rédeas, pois meu pai havia me ensinado, que quando isto acontecesse, eu teria que esconder minhas unhas dentro dos bolsos da calça para não atraí-la com o seu brilho”.

Após ouvir o relato, fiz ao Deracino a pergunta que ele, com certeza, fez ao Batistão; onde entra o padre nesta sua história? Ouçam a sua explicação:

“Na verdade não descobri o enrosco dela com nenhum padre, “aporém” tenho o testemunho do meu saudoso pai que tinha “sabença” sobre estas coisas; o lobishomem dizia ele, é o individuo que nasceu do sétimo parto e que na sexta feira a meia noite, transforma-se em um cão que inferniza os galinheiros; se for mulher transforma-se em bruxa ou em uma porca brava com 20 leitões; o corpo seco é o homem que só fez maldade na vida, inclusive “fez mal” para a mãe; um dia qualquer ele levanta da cova e passa a vagar, assombrando os antigos amigos; algumas vezes ele está dentro de um redemoinho de vento e poeira, se o freguês fizer gracinha e entrar lá dentro vai topar com o estrupício.

Quanto à “mula sem cabeça”, todo mundo sabe que se escarafunchar bem, coisa que, ressabiado, não fiz com a filha do Fonsequinha, vai descobrir nestes “coisas ruins” algum enrabicho com vigário ou algum pregador de igreja.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

APONTAMENTOS DO JARDINEIRO – Passarinhos no jardim

Nunca ouvi uma pessoa dizer que não gosta de passarinhos, principalmente se ela possui um jardim, quer seja na sua casa, fazenda ou chácara; a recíproca também é verdadeira, os passarinhos adoram os jardins, quer se localizem no coração de uma grande cidade ou na quietude do campo.

Muitas vezes, no burburinho da nossa vida cotidiana não paramos para pensar a respeito deste tema, porém para milhões de pessoas ao redor do mundo o envolvimento com este assunto é extraordinário, com dispêndio de apreciável quantia de dinheiro e, sobretudo, tempo e energia para tratar e dar condições de sobrevivência para estes pequenos seres somente no ambiente do jardim.

Certa feita, visitando um “shopping” especializado em jardins em uma pequena cidade do interior da Inglaterra, fui surpreendido por algumas informações que recebi do atendente, que me entusiasmaram; transcrevo-as para os meus leitores

Existe na Inglaterra uma sociedade formada por voluntários de vários níveis de conhecimento, desde os especialistas e mesmo cientistas, até as pessoas que simplesmente se divertem com os passarinhos nos seus respectivos jardins (BTO – The British Trust for Ornithology – Sociedade Inglesa de Ornitologia) e que se dedica a aumentar os conhecimentos a respeito dos passarinhos no Reino Unido, assim como tentar entender porque os mesmos mudam de habitat.

Com os dados acumulados, esta entidade é capaz de informar ao consulente, com alguma precisão, qual é a espécie de pássaro que poderá aparecer no seu jardim, desde que seja informada sobre a localização (região) do país, o tamanho e as condições do jardim.

Desde quando “me conheço por gente” tenho vivido ligado ao mundo dos passarinhos; lembro-me, até com certa nostalgia, das minhas andanças nos idos de 1945-50 pelos arredores de Gaspar Lopes onde nasci, em Minas Gerais, na busca de passarinhos para meus “viveiros”; usava arapucas, colas (visgos) em galhos de árvores e gaiolas com dispositivos para prender os passarinhos que eram atraídos pelo canto do que estava preso. Felizmente estes crimes já estão prescritos, pois foram cometidos há tantos anos...

Pedro, filho do tio Zé Pereira, meu primo e grande amigo de infância, ajudou-me a construir o maior e mais bonito “viveiro” de toda a região; cabia-me de pé no seu interior (será que era tão grande assim?) Ou não seria o tempo que escorregou pelos vãos dos dedos do atual narrador, agora vivendo na planície da existência, levando o seu subconsciente a traí-lo, impossibilitando-o de aquilatar o tamanho do menino de outrora? Pode ser!

Passava horas dentro do “viveiro” conversando com os passarinhos (canário da terra, fogo apagô, curió, melro do brejo, rolinha, pintassilgo, coleira, pássaro preto, etc.) e, principalmente ouvindo-os; como era bom!

Um dia, não sei quando foi, minha mãe resolveu que deveria abrir o “viveiro” e soltar os passarinhos, uma vez que o “cuidador” havia abandonado sua tarefa para estudar em Alfenas.

Chorei durante quase uma semana, o tempo passou, curou as tristezas do menino, porém não apagou da memória os momentos únicos da sua vida; trouxe para a planura da minha vida a mesma afeição pelos passarinhos, com uma única diferença: hoje o meu “viveiro” são as árvores do jardim da Santa Tereza.

O nosso jardineiro e meu amigo Décio ajudou-me a construir alguns “tabuleiros” (espécie de tablado constituído de taboas justapostas) e dependuramos os mesmos em alguns galhos de árvores; todos os dias colocamos nestes dispositivos farelo de milho, frutas e outras iguarias de que os passarinhos gostam

Com o intuito de resguardar a comida na época de chuva, o Décio construiu em cima de um mourão de angico, adrede fincado no meio das árvores do jardim, uma cobertura feita com folhas de coqueiro, semelhante às casas construídas pelos índios; debaixo da cobertura construiu-se o tabuleiro onde é colocada a comida.

É um espetáculo que agrada aos olhos ver centenas de criaturinhas, de vários matizes de cores, comendo a refeição e trocando ideias sobre o que fazer com o resto do dia, uma vez que a tarefa de procurar alimentos foi facilitada pelo outrora caçador dos seus antepassados.

Há muito tempo não via “canarinho da terra” por estas paragens. Semana passada um casal pousou no tabuleiro; no início pareciam preocupados, mais vigiavam o ambiente do que comiam, porém gradativamente perderam o medo e começaram a comer e conversar entre si.

Esta cena e a paisagem que lhe dá sustentação me fazem lembrar a minha vida inteira, cada árvore, cada lago, cada canteiro de flores me fala de um capítulo da minha história que se reiniciou com a Santa Tereza.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A crítica literária – Couto de Magalhães era homossexual?

Quem escreve, tanto para a imprensa como na edição de livros, está sujeito à crítica, quer seja dos leitores, dos seus pares e fundamentalmente da crítica dita especializada em literatura.

Alguns dizem: se a crítica é construtiva é sempre bem-vinda, porém sabemos como é difícil discernir o que seja, realmente, uma crítica construtiva!

Peço ajuda ao escritor norte-americano John Steinbeck para tentar esclarecer o parágrafo anterior; em artigo publicado na revista Saturday Review no ano de 1955 e que foi incluído no livro “A América e os americanos, 2004”, Steinbeck faz uma análise “crítica” da crítica literária daquela época.

Um dos pontos que ele salienta com maestria é o fato de que “a escrita de um homem é ele mesmo, um homem gentil escreve com gentileza, um homem cruel escreve cruelmente, um homem doente escreve de forma doentia e um homem sábio escreve sabiamente. Esta regra se aplica aos escritores e, também, aos críticos”.

Precisamos ter em vista que os críticos são pessoas com todas as fragilidades e atitudes das outras pessoas, diz ele, “Um homem sem amor terá uma visão pouco clara do amor, o crítico sem filhos será intolerante com crianças, o fracassado odeia o sucesso (dos outros), o velho cansado acha a juventude e o entusiasmo intoleráveis”.

Existe uma convenção, não escrita, de que um escritor não deve, jamais, responder a uma crítica, por mais violenta que seja; embora me considere um modesto escriba, tenho procurado seguir esta regra básica: não me entusiasmo com os aplausos (infelizmente não muito numerosos), principalmente se estes são oriundos dos amigos, como sempre condescendentes, nem tão pouco me amofino com a crítica dos que possuem formação especializada (felizmente nunca foram violentas).

Por outro lado sou imensamente grato aos que me escrevem comentando meus textos, tanto dos escritos para os jornais como principalmente dos meus livros; quem escreve necessita ouvir a opinião dos leitores, sentir suas emoções e saber que está sendo lido. Vivemos disto!

Quando escrevia a biografia de Couto de Magalhães (Couto de Magalhães – o último desbravador do Império, Ed. Kelps, 2005) senti a imensa responsabilidade que assumi, tendo em vista a importância daquele homem para a história e a política goianas; sabia que poderia deixar de relatar alguns fatos e acontecimentos da sua vida, tendo em vista a escassez de fontes de informações confiáveis.

Alguns amigos mais atentos e, principalmente, historiadores (críticos) me questionaram o fato de não ter me referido à possível homossexualidade de Couto de Magalhães; felizmente o adjetivo possível veio em meu socorro.

Embora se discuta esta possibilidade, (inclusive um “site” originário da Bahia faz esta afirmação: Heroi da guerra do Paraguai era gay), não encontrei nenhuma fonte segura para confirmar esta informação; a única pista era um relato que ele fez de um sonho que teve e que registrou, talvez por constrangimento, na língua indígena “nheengatu” (Diário Intimo, 1998), onde afirma, dentre outras coisas, que “um preto mostrou-lhe o pênis...”

Discuti este assunto com dois amigos psiquiatras e psicanalistas e nenhum deles achou plausível considerar esta passagem como prova da sua homossexualidade.

Embora tenha levado em consideração esta informação dos especialistas, não poderia fugir do assunto e deixar de fazer qualquer menção ao acontecimento. Os que leram meu livro devem se recordar que às páginas 176-78 consegui, com sutileza literária, tratar do assunto.

Na época em que Couto de Magalhães morou em Londres (1876-1880) vivia ali, também, um dos mais famosos homossexuais da história da literatura, o romancista, teatrólogo e poeta Oscar Wilde, o homem que enfrentou os preconceitos da sociedade vitoriana da época, que não aceitava e punia com prisão e trabalhos forçados a tendência homossexual dos indivíduos.

Pois bem, “levei” Couto de Magalhães e sua namorada Lily para jantarem em um restaurante “da moda” em Londres da época, o famoso Café Royal que era muito frequentado por Oscar Wilde; Lily ao vê-lo na mesa próxima quis se aproximar do grupo que, aliás, fazia muito algazarra (como era o estilo de Wilde), para conhecê-lo pessoalmente (ele era estrela de primeira grandeza da imprensa Londrina), o que foi impedida, até com aspereza, por Couto.

Vejam, em resumo, o diálogo que coloquei na boca dos dois:

“A atitude de Lily provocou mau humor em Couto; a muito custo mantiveram alguma conversação durante a refeição; para piorar a situação, ela resolveu cobrar-lhe uma posição frente ao homossexualismo, uma vez que, segundo ela, ele havia demonstrado, no presente episódio, evidente e exagerado preconceito.

- Não tenho preconceito, acho que cada indivíduo deve ser senhor das suas opções sexuais, só não concordo com o exibicionismo, semelhante ao praticado por este indivíduo, há que haver o respeito público.

- Acho-o, realmente, preconceituoso; haja vista o fato de você não ter me levado ao jantar na casa do Barão de Penedo. Você me despreza, sua atitude foi covarde, você agiu como um covarde! Fala agora a já quase histérica Lily.

- A única coisa que não admitido é ser chamado de covarde; se você conhecesse minha vida pretérita, não teria coragem de dizer isto. Covarde é aquele que foge do perigo; ao contrário disto, fui, muitas vezes, ao encontro do perigo e desafiei-o inúmeras vezes”.

Certa feita, quando ela já estava bastante idosa, perguntaram a Aurore Dudevant, conhecida na literatura como George Sand, qual era a sua idade e ela respondeu: “À noite, da janela aberta para o céu estrelado, subindo para elas os perfumes do jardim, ouvindo, ao longe, Mozart na vitrola... Esta é a idade que presencia isto tudo, minha idade. Nunca pergunte a uma mulher a idade da sua inteligência!”

Provavelmente alguns críticos não entenderam o que ela quis dizer, vocês entenderam?

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

NOTAS DE VIAGENS - Caminhar pelas ruas das metrópoles - Dedicado ao Prof. Joel Ulhoa, ex-Reitor da UFG

Entre as grandes e badaladas cidades do mundo Paris é, a meu ver, a mais convidativa e desafiante para o turista que deseja conhecê-la caminhando pelas suas ruas e avenidas; posso dizer com algum conhecimento de causa, pois costumo fazer isto em várias outras grandes cidades.

Certa feita, nos anos de 1970, em um tempo que ainda viajávamos embalados com as ilusões dos jovens, Marília e eu resolvemos seguir um dos roteiros definidos pelo guia Michelin; sentamos a uma mesa colocada na calçada de um bistrô localizado em um agradável e movimentado Boulevard, pedimos dois enormes sanduíches de pão com presunto e queijo, as tão famosas “baguettes”que são carregadas debaixo do braço pelos franceses, meia garrafa de champanha e passamos a discutir nossa programação.

Havia várias opções de roteiro, tais como: Conheça Paris a pé em uma semana, cinco dias, três dias, dois e um dia; é claro que cada uma destas opções acrescentava ou diminuía tais e tais pontos turísticos. Escolhemos o trajeto de três dias. Andamos praticamente o dia todo em todos os três dias! Valeu, podemos dizer que viramos Paris de cabeça para baixo.

Outras vezes voltamos a Paris e agora, com a sedimentação da cultura proporcionada pelos anos de vida, temos feito peregrinações selecionadas escolhendo, na maioria das vezes aqui em casa antes de viajar, os roteiros a serem feitos de acordo com nosso interesse cultural

Nestas caminhadas temos tido momentos de real emoção; uma delas, que sempre ficará inolvidável em nossas lembranças, é a que fizemos percorrendo a rua l’Odéon, local onde existia, desde 1919 até a época da ocupação nazista, quando foi fechada em 1941, a famosa livraria “Shakespeare and Company”, pertencente à norte-americana Sylvia Beach.

A rua L’Odeon está localizada perto do Jardim de Luxemburgo, na “Rive gauche”, a boêmia margem esquerda do rio Sena, região habitada pela chamada “geração perdida” das artes e da literatura, no período compreendido entre as duas guerras mundiais

Ao percorrermos aquela rua aparentemente tão modesta, procuramos contextualizar os acontecimentos literários ali ocorridos nos anos de 1920, 1930, quando uma efervescência de escritores, pintores e poetas por ali circulavam e se encontravam no recinto daquela outrora famosa livraria, destacando-se, dentre eles Hemingway, Scott Fitzgerald, Gertrude Stein, Salvador Dali, William Faulkner, Ezra Pound, André Gide, Paul Valéry, Joyce e muitos outros que viveram ali naquela época.

Recentemente li na revista cultural “Serrote” uma carta datada de 18 de junho de 1949 que o escritor, sobretudo cronista mineiro, Paulo Mendes Campos enviou de Paris para seu amigo Otto Lara Rezende.

Paulo contava na época 27 anos de idade e era a primeira vez que visitava Paris; dentre outros assuntos ele informa ao amigo que tem “andado a pé em demasia” para conhecer uma lista de preferências que havia elaborado, dentre elas uma visita ao túmulo de Baudelaire.

Se o individuo deseja, realmente, conhecer uma cidade com algum detalhe, acho que a melhor maneira de fazê-lo é caminhar, sem pressa, pelas suas ruas, parando, consultando suas anotações e sobretudo perguntando aos outros pedestres.

Existem, no entanto, algumas cidades nas quais é impossível caminhar pelas suas ruas, uma vez que os seus habitantes não possuem este costume; cito o que vivenciei em Dallas quando ali residi por seis meses; antes mesmo de ocupar o apartamento, que me fora reservado pela Universidade do Texas, aluguei um carro.

O escritor australiano John Baxter (The most beautiful walk in the world – A mais bela caminhada do mundo, 2011), conta de maneira divertida, sua experiência de vida nos Estados Unidos: “Morava na Veteran Avenue em Los Angeles, local quieto e cheio de prédios de apartamentos; sempre caminhava pelas calçadas que circundavam os prédios e nunca encontrei uma pessoa fazendo a mesma coisa, todo mundo usava o automóvel mesmo para percorrer distâncias insignificantes”

Este escritor conta uma cena que ele reproduziu de um livro de ficção científica, que já foi publicado no Brasil com o título “Uma sombra passou por aqui”, de autoria do escritor norte-americano Ray Bradbury - “Uma noite um “carro robot da policia” parou o personagem que caminhava pela rua e mantiveram o seguinte diálogo:

O que você está fazendo na rua? Perguntou o robot

Estou caminhando, somente caminhando

Caminhando para onde? Para que?

Caminhando para respirar. Caminhando para ver coisas.

A resposta o condenou, pois quem, a não ser um louco, poderia caminhar por prazer; foi encaminhado para um Centro Psiquiátrico de pesquisas em tendências regressivas”.

Quando escrevia este texto dei-me conta que estamos caminhando para um desfecho diferente que o desta “piada”, pois, pela quantidade de carros existente em Goiânia, está ficando praticamente impossível movimentar pelas suas ruas; voltaremos em breve para os tempos da Goiânia que conheci quando aqui cheguei nos idos de 1960: circulávamos a pé e na maior tranquilidade, por toda a cidade.

Naquele tempo não tínhamos pressa e ainda não era proibido caminhar pelas ruas!

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

BATISTÃO COMANDOU UMA ORQUESTRA DE CARROS DE BOIS

Já passava das seis horas da tarde quando pararam; o sol que já começava a se esconder por detrás do espigão mestre, embora não mais exibisse o seu disco por inteiro, ainda mostrava a força da sua pujança: emitia uma claridade tão intensa que desafiava a escuridão da noite que se aproximava. Esta, por sua vez, não tinha pressa, aguardava com serenidade a sua hora de dormitar a natureza com a sua presença, sabia que era uma questão de tempo o término do lusque-fusque.

Nestas horas, não se sabe bem porque, os viajantes que percorrem os gerais do sertão parece que são atacados por um banzo que não tem explicação razoável, tendo em vista que todo aquele eito sem fim lhes pertence.

Eram três os cavaleiros que estavam cavalgando desde manhã cedo, campeando um garrote nelore que fez uma arribada quando o gado já estava chegando ao curral; embora o trabalho de procurar rês extraviada possa parecer monótono, os peões gostam deste serviço, pois nestas horas, andando de “pareio” e mantendo a marcha na mesma toada lenta, conseguem colocar o proseado em dia.

Do local onde pararam dava para avistar a sede da fazenda; Batistão tomou a iniciativa de dar a voz de comando:

- Vamos descansar um pouco, esperar escurecer para valorizar um pouco mais nosso serviço junto ao patrão. Os outros dois concordaram, apearam dos seus cavalos, prenderam as rédeas em um toco de pau e se sentaram nos respectivos calcanhares.

Boizinho igual a este não serve de “jeito maneira” para uma junta de boi de carro, é muito nervoso, até um pouco azaranzado, afirma o Batistão sem olhar para os companheiros e com ares de entendido no assunto - prá dizer a verdade, boi nelore não serve para puxar carro de boi, prá mim só serve o zebu ou o caracu.

Na hora de atrelar o carro pode ser um sofrimento se os bois não são de serventia; encangar boi que te conhece pela voz é café pequeno, basta um gritinho, sem exagero e uma chacoalhada das argolas da vara de ferrão – encosta maiado! Arruma barroso! “Endireita” matão! e os bichos vão chegando; nesta hora o candeeiro, o menino-guia, enlaça a soga nas aspas da parelha e, nos finalmente, prende o cambão. Tempo bom!

Os companheiros escutavam o proseado do Batistão no maior silêncio, esperando que ele continuasse o seu lengalengar que sabiam ser demorado; Batistão estava orgulhoso por ser observado, falava com sentimento e com o olhar perdido no horizonte; olhou para os dois companheiros, deu uma revirada na aba do chapéu e continuou:

- Deracino, eu sei que já lidou com carro de boi, foi carreiro, num sei se o Léozinho já; acho que não tem coisa mais bonita do que o cantar de um carro de boi de seis a oito juntas, carregado de milho na espiga; se estiver entardecendo e um ventinho sem valentia, sem assobio, vier batendo de manso na cara do carreiro este não sabe se presta atenção no barulho das folhas das árvores, no canto dos passarinhos que procuram, junto com o companheiro, o local de pouso ou na afinação da melodia que vem do jeremiar das rodas do carro cantador – ehn-ohn... ehn-ohn...

Hoje em dia tem pouco carro de boi por estas bandas, na verdade até o boi da raça zebu esta escasseando, num sei onde o mundo vai parar, mas que dá saudade isto dá; da mesma maneira que a rapaziada hoje em dia inventa moda com as motocicletas barulhentas e enfeitadas, nós, do nosso tempo, “enfeitava” o carro de boi e caprichava no seu estilo de cantar.

Minha mulher não gosta que fale, fica meio envergonhada, porém acredito que ela só enrabichou em mais eu, por causa do cantado do meu carro de boi; vou explicar, porque sei que vocês estão querendo saber.

Era um dia de festa na casa dela, era um mutirão que o seu pai, o finado Marrequinho, organizou para capinar o seu milharal; convidou um mundéu de gente e eu que já estava de “zóio” no pedaço de mau caminho da filha dele, não podia faltar.

Combinei com alguns companheiros carreiros e resolvemos chegar todos juntos, eu puxando o grupo; eram seis carros de bois, cada um com seis juntas, todos enfeitados com fitas coloridas que ficavam esvoaçando no ar; de longe dava parecença de ser um bando de maritacas batendo asas e tentando imitar o cantar do cocão.

Escolhi os companheiros “a dedo”, de acordo com a espécie da madeira do cocão, para não repetir o mesmo cantar; o meu carro tinha um cantar parecido com uma gaita, alternado com a imitação do canto da juriti; os outros foram colocados intercalados, um imitava um assobio, outro era o estradeiro que é um canto forte e continuado, “aporem”, sem mudar o tom e que fazia fundo com o resto da orquestra.

Eu, pessoalmente, fiz a afinação de prima e bordão, com arrocho ou folga das cunhas do cocão e principalmente do chumaço que calça a cheda e dei preferência para o eixo feito de pau-d’arco, pau-pombo e o de sucupira, que era o meu favorito, principalmente se nascido em grotas.

Como era festa, escolhemos apenas um menino como candeeiro que corria de um carro para o outro, untando as “cantadeiras”de acordo com a necessidade; a qualidade do azeiteiro, que ficou no recavém do meu carro, ficou por minha conta, usei somente “óleo de coco da Bahia” que deixa o canto mais sonoro.

Para dizer a verdade, estava feliz; ainda tive fôlego, quando chegamos bem na frente da casa do Senhor Marrequinho fiquei de pé na mesa do carro, falei sem olhar para “ela”:

De longe eu vim

Participar deste mutirão

Quando voltar levo saudade

Aqui deixo meu coração.

Todos notaram que Batistão deu uma engasgada, podia-se ver que seus olhos estavam rociados de lágrimas!