A NEUROCIÊNCIA E A LITERATURA
Um paciente que não via há bastante tempo, voltou ao
meu consultório; fizemos festa pelo reencontro, pareceu-me mais envelhecido,
porém mantinha a mesma capacidade de diálogo de antigamente, sua memória
continuava, como era antes, atenta aos detalhes, com lembrança de alguns
acontecimentos os quais eu não mais recordava
(estavam arquivados no meu inconsciente, segundo Freud).
Falamos, como se poderia
esperar, da sua cirurgia (felizmente curativa) a que o submeti há mais de 20
anos; falamos da família, dos filhos e netos e finalmente entramos no assunto
da atual consulta: - Estou aqui porque há algo que me tem incomodado durante
todos estes anos; embora o senhor tenha retirado o meu ânus para curar o câncer
que ali estava localizado, continuo com a sensação de que o mesmo está no mesmo
lugar!
Dei-lhe o aconselhamento
psicológico que julguei pudesse ajudá-lo, porém, fiquei com a sensação de que
não consegui convencê-lo; marquei um retorno para dali a uma semana
(aproveitaria para dar uma revisada no assunto);
despedimos e voltou à minha lembrança alguns casos semelhantes a este que tive
a oportunidade de ver na minha vida de cirurgião.
Aqui na biblioteca da
Santa Tereza, na procura de bibliografia a respeito do assunto, descobri a
história do médico Silas Weir Mitchel (1829/1914), conhecido como o “médico de
nervos” do Hospital Lane. em Philadélphia-USA; depois de ter participado, como
médico, da guerra civil americana, tornou-se famoso por algumas descobertas na
área da medicina e posteriormente como escritor e poeta.
Durante sua labuta nas
enfermarias dos hospitais que atendiam os soldados feridos, Mitchel teve
oportunidade de examinar uma grande quantidade de pacientes que sofreram
amputação de membros, principalmente das pernas; atento observador, uma das
queixas destes pacientes chamou-lhe a atenção: muitos deles referiam que apesar
de saberem que estavam sem as pernas, tinham a nítida sensação de que as mesmas
continuavam no mesmo lugar, alguns referiam, inclusive, dores nas pernas que
não mais existiam; a este fenômeno ele denominou de “membro fantasma”.
Após o término da
guerra, estas observações de Mitchel caíram no esquecimento, principalmente
porque a medicina não tinha uma explicação lógica e material para o fenômeno e
principalmente porque ele mudou o rumo da sua vida; abandonou a medicina,
tornando-se um escritor de romances e poesias, muito lido na época (década de
1860), principalmente após a publicação de seu conto “O Caso de George Dedlow”
onde ele narra na 1ª. pessoa a história de um soldado que perdeu as pernas e os
braços em uma batalha e passa a sentir os “membros fantasmas”.
Somente no final do
século 19, William James, publicou o artigo (clássico na medicina) ”A
conscientização da perda do membro” retirando o assunto da esfera sobrenatural;
foi preciso outra guerra (2ª. guerra mundial) para que o neurologista J.
Babinski, examinando vários soldados amputados, descrevesse sua versão (hoje
definitiva) sobre a “sensação física dos membros fantasmas”.
Envolvido com estas pesquisas sobre o
assunto, lembrei-me de dois acontecimentos literários que voltei a consultar,
um deles referente ao poeta norte-americano Walt Withman (1819/1892) e o outro
ao escritor, também norte-americano, Herman Melville (1819/1891), cujo romance
“Moby-Dick” acabei lendo recentemente, graças à recomendação do meu amigo e
confrade da Academia Goiana de Letras, Dr. Eurico Barbosa.
Withman foi, e alguns
acham que ainda é, o maior poeta norte-americano; é considerado o “pai do verso
livre”, tendo escrito apenas um livro “Leaves of Grass- Folhas de relva”, com
muitas reedições durante sua vida, quando ele acrescentava, sempre, mais e mais
poemas; no formidável filme “Sociedade dos poetas mortos”, aparece alguns
personagens citando seus poemas.
Pois bem, Withman
enfrentou os conceitos vigentes da época (Descartes afirmava que o cérebro era
completamente separado do corpo) ao proclamar a fusão da alma com o corpo, alma
e mente são apenas nomes diferentes para as mesmas coisas e são inseparáveis um
do outro, dizia ele nos seus versos (naquela época os cientistas acreditavam
que nossos sentimentos originavam no cérebro e o corpo era apenas matéria
inerte).
Hoje a neurociência dá
razão a Withman ao confirmar que as emoções podem ser geradas no corpo, antes
do cérebro - “Nossa matéria está emaranhada com o espírito, quando você corta o
corpo, você também corta o alma, dizia ele”; analisando o fenômeno do membro
fantasma, segundo Withman, podemos concluir: A mente continua pensando na parte
da perna que o corpo perdeu, preserva para o homem a consciência do que não
mais existe.
Com respeito à novela
Moby-Dick, escrita 12 anos antes do cirurgião Mitchel falar sobre o assunto, o
autor Melville descreve uma cena inacreditável: O velho marinheiro Ahab perdeu
uma perna (comida pela baleia) e vai ao carpinteiro para encomendar uma perna
de marfim. Ao descrever como desejava o artefato ele diz ao carpinteiro –
Continuo sentindo minha antiga perna, invisível e ininterrupta, como se fosse
um fantasma, portanto, faça uma perna para meus olhos e a outra, a fantasma,
continuará sendo sentida pela minha alma.
O paciente voltou ao
consultório, como combinado; perguntou-me: Você tem a resposta?
Simplesmente
recitei-lhe estes versos do poema “Folhas de relva” de Walt Whitman:
Uma criança disse: - O
que é a relva? [Trazendo um tufo em suas mãos];
O que dizer a ela?...
Sei tanto quanto ela o que é a relva.