MINHAS CRÔNICAS

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

VOLTA AO PASSADO

Se você quiser voltar ao passado, faça-o com cuidado.
A marcha do tempo é irrecorrível; aquela imagem guardada na sua retina pode ter sofrido deformação!...
“Entre o sonho e a realidade”
H. Moreira.
Existe uma lenda, cultivada pelos habitantes de uma pequena aldeia de nome Saanemoser, situada nos Alpes suíços, nas imediações da cidade de Berna, cujos dizeres são o seguinte:
“Se alguém cospe no rio, quem sabe, talvez a saliva desça através de vários outros cursos d’água até o rio Reno e daí até o mar do Norte”.
Bem em frente da nossa casa, a outrora tão conhecida pensão Santo Antônio, passava um pequeno ribeirão onde, junto com meu irmão Henio, eu pescava, nadava, lavava o rosto de manhã cedo e minha mãe lavava nossas roupas.
Nosso cuspe para onde poderia ir?
Analisando o inconsciente dos suíços pode-se subentender que o desejo manifestado na lenda encobre uma incessante procura dos antepassados.
No meu caso, a viagem seria bem menor; provavelmente a saliva iria até o rio Muzambo e ancoraria nas suas barrancas, muito provavelmente em uma das suas lagoas, nas imediações do povoado de Harmonia, local onde nasceu meu pai e onde viviam meus avós.
Creio ser preciso, no meu caso, rediscutir a afirmativa de Jung de que os avós, por especial atavismo, podem exercer mais ascendência sobre os netos do que o pai e a mãe”; tive pouco ou quase nenhum relacionamento com minha avó Dita (meu avô eu não conheci).
Apesar da proximidade com Gaspar Lopes, cerca de 10 quilômetros, guardo poucas recordações de Harmonia; das minhas lembranças sobressai, altaneiramente, a ponte de ferro, hoje sob as águas da represa de Furnas e que foi construída para dar passagem à estrada de ferro Rede Mineira de Viação na sua viagem rumo às estações de Areado, Movimento, Engenheiro Trompowsky e Monte Belo.
Uma das poucas imagens que tenho gravada da minha avó Benedita ou “Vó Dita” pode representar algum simbolismo: vejo-a sentada em um tamborete na frente da sua casa de adobe, fumando um cachimbo de barro; sua pele era morena escura, rosto quase quadrado, salientando o músculo zigomático, voz baixa, quase que evitando sair entre os lábios grossos e sem delicadeza.
A expressão do rosto, dominado pela tristeza dos seus olhos, não transmitia vivacidade, cabelos escorridos e com a textura grossa, denunciando a possível origem cafuza.
Não sei se é verdade, meu pai dizia que ela nascera no estado do Rio de Janeiro, era, portanto, segundo ele, “carioca”.
Até quando consegui descobrir, parece que os pais dela vieram de Portugal, região de “Trás os Montes”; como ela foi aportar, sozinha, em Harmonia, só Deus sabe.
De todos os meus tios, irmãos do meu pai, o mais ligado a nós era o tio Zé Francisco, possuidor de um pequeno sitio nas imediações da estação de Harmonia, local onde existia, segundo me disse um dia, o Hildebrando, telegrafista da estação, a maior reta de toda a Rede Mineira de Viação.
Tio Zé casou-se várias vezes, sempre devido ao falecimento das seguidas esposas.
Quase perto do final da sua existência, visitei-o em sua casa em Alfenas; continuava a mesma figura alegre e comunicativa, apesar de contar, naquela época, com mais de 95 anos de idade.
“Como estão seus filhos, tio Zé?
“Morreram muitos; fulano, por exemplo, morreu de velho!”
Meu pai, Antonio Moreira, mais conhecido como Nico guarda-chaves, possuía muitos traços fisionômicos do tio Zé Francisco: rosto de pele encardida, não só pela exagerada exposição ao sol, como principalmente pelo DNA da minha avó Benedita; cabelos um pouco encaracolados, penteados para trás, deixando antever uma pequena “entrada” para uma possível calvície que, de resto, nunca aconteceu.
Seus olhos eram vivos e acompanhavam as expressões da face quando conversava; rosto liso, sem barba ou bigode. Fechava, paradoxalmente, um pouco os olhos para tentar enxergar algum objeto mais diminuto.
Contava-nos, com ar de galhofa, que certa vez estava sentado na plataforma da estação de Gaspar Lopes “lendo” um jornal, para impressionar um amigo; por não saber ler, não observou que o mesmo estava de “cabeça para baixo”. Ao ser questionado pelo citado amigo para aquela situação, respondeu, sem perder a pose:
“Já li, agora estou dislendo!”
Outro dia, revendo uma antiga fotografia da minha primeira comunhão, feita na frente da igreja de Gaspar Lopes, reconheci alguns amigos de infância (Alirio, José Victor, João Batista, dentre outros); senti muita saudade. Lembrei-me, como se fora uma associação de idéias, do leiloeiro das festas da igreja, gritando até a rouquidão:
- Quanto me dão por este cartucho?
Vamos ajudar a igreja do padre Albertino.
Quem dá mais?
Vamos agora leiloar este molho de canas de açúcar para a meninada. Quanto nos oferece o Mário Moreira, o rei de Gaspar Lopes?
Não me peçam para declinar o nome deste homem, que apesar do seu pouco aculturamento, conseguia contagiar a todos, sabia respeitar a maior cultura da minha mãe, deixando-a orientar-nos no caminho da educação.
Sinto orgulho de ser filho do Nico guarda-chaves de Gaspar Lopes!

DEIXE-ME CONTAR ENQUANTO ME LEMBRO!

A MARAVILHOSA LUA DO TOCANTINS
Dedicado ao confrade Mario Ribeiro Martins

Chegamos, José Paulo e eu, à fazenda São Pedro, localizada no alto da serra do Taquaralto, mais ou menos às oito horas da noite. A lua, a maravilhosa lua do Tocantins, iluminava nossa estrada como se fosse um imenso holofote sustentado na imensidão do firmamento pelas mãos do Grande Arquiteto do Universo.
Havia uma aura positiva naquela viagem, estávamos comemorando cinco anos de aquisição daquelas terras; quantos sonhos foram depositados naquele empreendimento, quantas dificuldades foram vencidas pela força da juventude; ao chegarmos ali em 1985, não tínhamos idéia do trabalho que nos aguardava: transformar trezentos e cinqüenta alqueires de capoeira em uma fazenda.
Não adianta tentar descrever o nosso sentimento de júbilo, somente os que viveram desafios semelhantes poderão aquilatar a nossa sensação de vitória; enfrentamos dificuldades inacreditáveis, principalmente pelo isolamento (o vizinho mais próximo estava a mais de 50 quilômetros de distância), perigos com animais peçonhentos, animais selvagens ( vimos onça cruzando nossa picada a algumas dezenas de metros à frente), enfim, o homem só contava com o homem que estivesse próximo de si.
Recapitulava estes acontecimentos enquanto nossa camionete caminhava pela estrada que construímos dentro dos limites da fazenda, apertei a mão do José Paulo e transmitimos, um ao outro, o sentimento de fraternidade familiar e, principalmente, de companheirismo, pois ele foi um dos meus mais assíduos parceiros nesta aventura.
Sentimos emoção naquele aperto de mão, sempre iremos lembrar!
As noites aqui na Fazenda são agradáveis e tranquilas, praticamente nenhum ruído, a luz é artificial (lamparina, velas e lampião a gás) o que torna o ambiente diferente de tudo a que estamos acostumados.
Sentamos em alguns tamboretes na varanda, rodeados pelo nosso funcionário “Zé tratorista” e sua esposa Rosealindes; José Paulo, como sempre, dava provas de como se prepara um bom churrasco de picanha; enquanto aguardávamos que a carne chegasse no “ponto”, o papo corria solto, sobre uma variada gama de assuntos.
O whisky com gelo, desce redondinho e com suavidade, o churrasqueiro exige uma dose em troca de uma rodada de carne, “Zé tratorista” e Rosealindes contam suas “estórias”, algumas incríveis, outras aceitas como verossímeis com certa dificuldade.
- Certa vez, ficamos nós dois (a Rosealindes grávida) durante seis dias parados na estrada, devido a um defeito na camionete, não passando nem uma viva alma para socorrer-nos durante todo este tempo; ainda bem que eu estava armado, comemos até macacos.
- Certa vez, tive que andar cinco quilômetros de marcha ré, porque a marcha “encavalou” bem no meio de uma “estrada de areal” e se eu “apagasse” a camionete não tinha como dar partida, pois o motor de arranque estava estragado e a Rosealindes não daria conta de empurrá-la, ficamos, com os pescoços duros durante uma semana de tanto olhar para trás.
Muitas e muitas outras estórias são narradas, todas com a confirmação da Rosealindes , sempre seguidas de gargalhadas e mais gargalhadas.
No entanto a mais incrível da noite é o caso do trator em que entrou ar na distribuição e apagou no meio do cerrado, longe da casa.
“Zé tratorista” veio buscar Rosealindes para ajudá-lo; foram de jeep e levaram, junto com eles, uma menina, irmã da Rosealindes.
Amarrou-se um cabo de aço entre o trator e o jeep e o “Zé tratorista” deu todas as instruções possíveis para a esposa e para a menina:
- Quando alcançar uma certa velocidade, você solta este pé daqui do pedal e depois de andar um pouco, torna a pisar no mesmo pedal e vai pisando devagar neste outro pedal do freio para o trator parar, porém, funcionando.
- A menina vai com você para te ajudar a lembrar, tá bom ?
Não chore bem, se você ficar nervosa é pior, e eu não tenho outra opção a não ser você, num raio de mais de 50 quilômetros.
Tudo entendido, “Zé tratorista” entra no jeep, Rosealindes e a menina no trator e lá vão para o encontro com o destino.
- Quando eu levantar o meu braço, você solta o pé esquerdo e depois faça o resto que te orientei, ta bom?
O tranco foi perfeito, o trator “pegou” de primeira, porém, o Zé não avaliou bem o estado emocional da esposa, pela primeira vez sentada ao volante de um possante trator Ford, ela que nunca havia, ao menos, dirigido um velocípede.
Era muita emoção acumulada, a partir do tranco, Rosealindes não se lembrava de nenhuma outra instrução recebida, muito menos a menina, que ao ver o choro da irmã, não só passou a chorar como a gritar.
O Zé diminuía um pouco a velocidade do jeep para ver se ela estava seguindo as instruções, mas observava que o trator se aproximava de maneira muito perigosa da sua traseira; gritar para dar instruções não adiantava pelo próprio barulho do motor do trator, o desespero era evidente, rodava para todos os cantos do pasto e o trator atrás, o suplício parecia não ter fim.
Depois de passar pela sua cabeça todas as soluções possíveis, levou uma “chicotada” no pescoço que só não fraturou porque não era o dia; a Rosealindes havia dado uma freada violenta no trator, tão violenta que rebentou o cabo de aço que ligava as duas viaturas.
Completamente atordoado pelo choque, o Zé ainda acumulou forças para manobrar o jeep e correr até o trator e assumir o volante.
Hoje Rosealindes virou tratorista de mão cheia!

BISBILHOTANDO A CORRESPONDÊNCIA ALHEIA

Estamos vivendo em um tempo em que normalmente as pessoas não mais escrevem cartas, os meios de comunicação, principalmente o e-mail, que são colocados à disposição do homem atual, mudaram completamente este costume.
Na década de 1960, quando fazia residência médica em São Paulo, mantive com Marília, na época minha noiva, uma longa (mais de duzentas cartas) correspondência epistolar; o carteiro da rua oito, segundo ela me conta, de longe já gritava:
- Hoje tem carta!
Como lembrança daquele tempo (o das cartas epistolares) só sobrou nosso arquivo secreto, algum dia...
Outro dia, manuseando meu “sebo” de preciosidades, deparei-me com algumas correspondências românticas que foram, a maioria, postumamente editadas em livros; algumas delas, trocadas por personagens hoje bem conhecidas do publico leitor, são muito interessantes, principalmente pela curiosidade em bisbilhotar a intimidade de um romancista, por exemplo, que levou-nos a viajar, na sua companhia, pelo mundo ficcional.
Encontrei, também, algumas outras, embora sem a visibilidade que a notoriedade expõe, pelo menos um dos missivistas, e que levou-me a imaginar aquele momento de enlevo que permite uma pessoa abrir o coração, não se preocupando com as possíveis ciladas do futuro, no que diz respeito à continuidade do relacionamento.
No ano 144 da era cristã, Marco Aurélio, naquela, época futuro Imperador de Roma, escreve para Fronto, seu professor e amante, uma carta de amor, onde ele descreve, sem nenhum romantismo, o seu dia-a-dia na Corte Imperial “...Estou dormindo tarde, peguei um resfriado e fiz gargarejo com água e mel, fui ver um sacrifício na companhia de meu pai...” depois ele pergunta à sua mãe “O que você imagina que meu Fronto está fazendo agora?”
Marco Aurélio termina a carta, como deve ser uma carta de amor, “...Adeus meu Fronto, onde você esteja meu querido mel adocicado, meu amor, meu prazer. O que existe entre você e eu? Amo você e você está longe...”.
James Joyce desde muito cedo tinha certeza de que seria um grande escritor, disse isto, muitas vezes e a vários interlocutores; muitos só acreditaram depois da publicação de Ulisses, uma das maiores obras literárias do século vinte.
Este Irlandês que mudou a história do romance, além de gênio, era, também, humano e como tal teve uma vida sentimental muito movimentada, destacando-se o seu envolvimento com Nora que durou mais de 30 anos.
Existem registrados vários episódios da sua vida em comum, ater-me-ei apenas a transcrição de trechos de algumas cartas enviadas por Joyce; por oportuno, fugirei da inacreditável correspondência escatológica e obscena, em pálida homenagem ao artista da escrita.
Ciúmes: “ ...na altura em que eu tinha o hábito de estar contigo, noite sim, noite não, tinhas encontros com um amigo meu à frente do Museu, andavas com ele pelas mesmas ruas, descias o canal, passavas pela casa onde costumávamos subir...Diz-mo, quando ias com outro ( um amigo meu) para aquele campo ao pé do Dodder (nas noites em que eu lá não estava), costumavam deitar-se no escuro, como fazias comigo e dizia-lhes (mas o que é isto, querido) como me dizias a mim?”
Arrependido: “...Peço-te, minha querida Nora doce e nobre, que me perdoes a vil conduta, perdoas-me, coração querido, não perdoas? Perdoa-me, minha adorada. Gosto de ti, e só imaginar-te com aquele infame e vulgar celerado me enlouqueceu a tal ponto.Da-me os teus lábios, amor....”
Amor extremado: “...Boa noite, bem amada rapariga, minha noivazinha, meu terno amor da Irlanda. Como eu gostaria de surpreender o teu sono! Há um sitio, Nora, um estranho sitio onde eu gostaria agora de beijar-te. Que não é nos lábios, Nora. Sabes qual é? Boa noite amada!”
Romântico: “Eu queria ficar naquele coração/Como peço e bato à sua porta!/Onde só pode haver paz./Rigores eu teria mais doces/Se ficasse naquele coração”
Amor maduro: “...Amo-te profunda e sinceramente, Nora. Sinto agora que sou digno de ti. Não há uma partícula do meu amor que te não pertença.Gostaria de dar-te tudo quanto tenho, todo o saber que possuo, todas as emoções que eu próprio sinto ou senti, todos os meus gostos e desgostos, todas as esperanças ou todos os remorsos”
Para concluir, gostaria de relatar a estranha, para dizer o mínimo, carta que deu inicio ao relacionamento entre o prêmio Nobel de Literatura, o escritor americano John Steinbeck e a sua ultima esposa, Sra. Elaine Scott.
Estava ele vivendo no seu refugio na California “um selvagem e violento tempo de coração despedaçado” após a separação da sua segunda esposa, quando recebeu a visita de uma amiga, trazendo, a tiracolo, a “pretendente” Elaine.
Quando ela partiu, ele mandou-lhe a seguinte carta:
“ Sou um viúvo com 10.000 acres de terra no Arizona e sete cabeças de gado e se você souber tirar leite, eu ficarei satisfeito se você trouxer um balde, seja pacienciosa, não queira se casar, venha para a terra de Deus”
Resultado? Casaram-se um ano depois desta carta, foram felizes até a morte!

NÃO EXISTE PANELA SEM TAMPA ou O AMOR É LINDO!


Ouvia, com paciência é verdade, porém, só fingia que acreditava no que a sua madrinha Ordália dizia, todas as vezes que se encontrava com ele:
- Meu afiado José Francisco, você tem que ter paciência, a sua cara metade ainda não surgiu não é por você não ser muito afeiçoado de aparência, como você pensa, ela vai aparecer, de repente, numa hora destas; não existe panela sem tampa.
O espelho, que consultava todos os dias, não deixava, no entanto, que ele se enganasse: José Francisco não havia sido bem aquinhoado pela mão da natureza; tinha a feição toda cheia de manchas e cicatrizes, advindas, provavelmente, de varicela adquirida na infância; para complicar, era um pouco zarolho, seqüela, segundo sua mãe, de um estupor na infância, provocado pelo reflexo do sol dentro da bacia cheia de água, quando tomava banho com o estômago cheio.
Fora estes inconvenientes, ele até que poderia ser aprovado em outros testes, não muito exigentes, sinalizadores de beleza física: era alto, para alguns mais implicantes, um pouco acima da média, uns dois ou três centímetros menos que 2 metros, braços compridos, porém, consentâneos com o tamanho do tronco, destoando, um pouquinho, o avantajado volume das mãos, aliás, fazendo simetria com o tamanho 44 dos pés.
- Dê tempo ao tempo, dizia-lhe sua consoladora madrinha, todos somos filhos de Deus, um dia, quando menos você esperar, vai aparecer alguém que não está procurando somente beleza física e então você vai poder mostrar seu valor. Beleza não se põe na mesa, o que vale é o caráter e este você tem pra dar e vender.
Quantas vezes José Francisco, postado de frente ao seu inimigo espelho, ainda presentes as palavras consoladoras da madrinha, tentava combater o desânimo, olhava de lado, de frente, se afastava um pouco, se aproximava e finalmente, por estar sozinho, repetia para si mesmo:
Que cara este cafumango foi arranjar, meu Deus do céu!
Os argumentos dos pais, principalmente do seu pai, destoavam um pouco do arquitetado pela madrinha, provavelmente por aceitarem que não conseguiram transmitir ao filho nenhum traço de beleza que, de resto, eles mesmos não possuíam.
- Meu fio, feio é roubar e não poder carregar, tem tanta gente pela redondeza mais feia que você e no, entanto, não vive se queixando da vida; olha a Maria do Rosário, fia do senhor Turdilho, além de não ser esta belezura capaz de fazer alguém se enrabichar, ainda sofre desta manqueba, que é restolho da paralisia infantil, porém, nunca fugiu de uma prosaria com ninguém.
Parece que este argumento foi mais convincente, José Francisco estava sentado à porta da casa, quando viu a Maria do Rosário passar, naquela passada difícil, quase que arrastando uma das pernas, cumprimentou-o, como sempre fazia, e continuou na sua caminhada rumo à sua casa, situada a algumas centenas de metros de distância.
O sorriso dela havia sido tão espontâneo, aliás, como sempre fora, só que nunca havia sido notado por ele; parece que ela, naquele dia, segurou um pouco mais o olhar no rumo do José Francisco...Será? Ou estaria ele vendo fantasma onde não existia?
De toda maneira ficou no ar, alguma duvida: seria olhar de melúria que José Francisco vira ou seria o desejo de tê-lo visto que estava se apossando, de mansico, daquele pobre e sofrido coração.
Independente da conclusão, o fato é que daquele dia em diante a pequenina e frágil Maria do Rosário passou a fazer parte do mundo de José Francisco.
Não se conteve, contou para sua madrinha os apertos do peito.
- Meu afiado, sei que ela não é um pancadão que enche as vistas de qualquer um, porém, não é nenhuma galinha na manguara que não tem preço, ela é piquitita, tem aquela dificuldade para andar, mas é de boa família; ôta José Francisco, minhas preces foram ouvidas, não banque o estabanado porque ela pode assustar com o seu porte, vai com calma porque ela não é de regateirage.
Era isto que o já apaixonado José Francisco queria ouvir, sentiu uma bambeza nas pernas só em pensar numa maneira de se aproximar, quis perguntar para a madrinha como fazer, porém, achou que isto seria muito abuso e desistiu; acharia um jeito!
Aconteceu! Já era de tardinha, naquela hora do lusco-fusco, quando os pássaros começam a cantar para encontrar a companheira ou o companheiro desgarrado, quando o sol já desapareceu, porém, seus raios iluminam o topo da montanha, parecendo existir ali, um enorme espelho a refletir por toda a encosta; hora romântica e encorajadora, até para os mais tímidos; hora que José Francisco avistou Maria do Rosário vindo no seu rumo, absorta no seu pequeno e rotineiro mundo.
- Posso te ajudar a carregar esta trouxa de roupa?
- Poder pode, mas num precisa!
- Além disto, precisava te perguntar uma coisa que está engasgada na minha pensa há muito tempo: se aparecesse um homem mais comprido que ocê, bem mais feio, porém, cheio de boas intenções e se te perguntasse na bucha: Vancê tem coragem de fazer um compromisso com este manguarão?
Uai, José Francisco, se esta criatura estivesse disposta a amparar uma baixinha, cambeta, igual à chita, nem feia nem bonita, porém, cheia de amor para dar, eu teria.

AMOR DE VIUVA DEIXOU ZEQUITA JURURU

Ela era, realmente, uma caboclinha bonita, Zequita tinha razão em ficar enfeitiçado; além de tudo, a disputa para conquistá-la não havia sido fácil, havia vários outros pretendentes com a mesma expectativa.
Para ir à igreja na sua companhia, ela vestia aquelas roupas de chita estampadas, muito rodadas, fazendo frufru quando ela caminhava, o ombro, como convinha, era quase que descoberto, seu pescoço, modelarmente torneado, sustentava um rosto lindo e inocente; quando ria, o riso era leve, sem rumor, tal qual moça de família. E seu andar? Parecia o pisar de uma garça com a intenção de ser caçoísta com o companheiro: exagerava um pouco, porém sem exagero, o requebro do quadril.
Seu olhar? Ai meu Deus de misericórdia, quanta doçura! Deixava a moçada alvoroçada e com o coração em constante bate-bate; não lhe tiravam os olhos como se fossem jacarés chocando ovos, pareciam gaviões andando de um lado para o outro, comendo com os olhos aquela avezinha sem defesa; porém, ficavam somente na vontade porque aquela rolinha tinha dono.
Podem acreditar, os dois saindo da igreja era a própria imagem da felicidade, não havia dúvida, parecia que nasceram um para o outro.
Não existe felicidade sem fim, de repente as coisas podem mudar e com Zequita também aconteceu, sua vida mudou; de repente, todos os que o rodeavam perceberam, passou a não cumprir alguns comezinhos deveres da labuta diária: esquecer de soltar o cavalo após a chegada do pasto, apartar a vaca do bezerro no final da tarde e outras coisas assim.
Da Martinha, sua mãe, foi uma das primeiras a perceber a mudança e, como toda mãe, passou a ficar preocupada; a primeira coisa que fez foi discutir o assunto com o marido.
- Por que será que o nosso Zequita anda tão jururu? Está parecendo aquelas pombas juruti que ficam roncando na beira do ninho sem ovo!
- Me disseram, vou só repetir: naquela viagem que ele fez lá pros cafundó daquelas cordas de morro, apalavrou com aquela viúva endinheirada; não há de ver que a diaba ainda está usando roupa preta e já está exibindo a força dos seus trinta mil pés de café!
- Vamos lá e venhamos cá, não acredito, pois, o nosso Zequita tem um rabicho antigo com a fia do compadre Messias e todo mundo está esperando um desfecho e, ademais, não boto fé naquela muié prosinha, desrespeitadeira de defunto fresco que vive tocando viola sem corda, piscando o zóio e dando risadinha pra todo cristão que passa por aquelas bandas só porque tem condições de fazer subir fumaça no fogão, por sua conta.
- Acho que é por isto mesmo, o nosso fio, que sempre foi corajudo, parece estar meio azaranzado com a situação, seu coração deve estar balangando; este tipo de mulher quando aprochega do cidadão, enseba mais que capim catingueiro-roxo de manhã cedo que molha a barra da calça e só enxuga com o sol esturricando, enxuga, mas fica meloso.
- Não entendi, acho que você não está falando coisa com coisa, está parecendo aquelas pessoas que ficam lobisomando por ai, provocando zunideira nos ouvidos dos outros; se apruma homem, não vê que nosso fio Zequita tá precisando de ajuda?
Felizmente para os aflitos pais, Da. Martinha e seu esposo, a solução para o problema veio do além, como passo a explicar, aliás, vou repetir a versão que corria de boca em boca.
A sirigaita da viúva morava, como informei no inicio, lá no alto do espigão mestre e para chegar até lá, era necessário atravessar um trecho de estrada que diziam ser assombrada, por causa da presença de uma enorme figueira, de cujos galhos caíra e morrera uma mulher, há muitos anos.
A descrição que fazem daquela criatura realmente mexe com a sensibilidade das pessoas: era muito magra, baixa estatura, cabelos enormes e emaranhados, unhas muito grandes e pontiagudas, olhos esbugalhados e vermelhos; vestia-se com um camisolão branco.
Ao caminhar e ela fazia isto, praticamente, a noite toda, sua língua, que era muito comprida, arrastava-se pelo chão e era pisada, praticamente, a cada passo.
O mais assustador eram os gritos de dor que ela lançava no silêncio da noite a cada possível descuido ao pisar na dita cuja.
Não sabemos se o Zequita se esqueceu deste pormenor, mas a verdade é que em uma destas noites muito escuras, ele estava voltando da casa da viúva e ao passar por debaixo da figueira, deu de cara com a mulher cabeluda.
O resultado deste inusitado encontro foi o desfazimento do compromisso que fizera, nunca mais quis saber de voltar por aquelas bandas.
Sei que existe certa curiosidade dos leitores em saber se o final foi feliz; foi em parte, porque o pai do Zequita descobriu que a mulher cabeluda daquela noite, era a sua própria esposa que resolvera fazer o sacrifício de se travestir, para salvar o filho daquela enroscada; a filha do Sr. Messias nunca soube deste amor impossível do seu amado.
O pai do Zequita passou, a partir daquele dia, a ficar desconfiado se a esposa não seria a verdadeira mulher cabeluda, aliás, desconfiança que nunca mais acabou.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

DUAS CRIANÇAS NA CHUVA


Ontem, ao caminhar pelo Setor Universitário em Goiânia, com algumas das suas ruas mal cuidadas, emolduradas por residências simples e de acabamento pobre, divisei duas garotas de mãos dadas. Chovia mansamente e a água escorria rua abaixo com velocidade, porém, com maciez proporcionada pelo asfalto liso, quase sem atrito. Conversavam animadamente, provavelmente não sobre as agruras da vida e as dificuldades existenciais enfrentadas pelas suas famílias; conversavam, tenho certeza, sobre as mesmas coisas que as crianças desta idade conversam: bonecas e outras ilusões.
Aparentavam cinco e sete anos de idade, respectivamente; os seus cabelos, caídos sobre as costas, eram lisos e compridos, porém, permitiam que um vento suave, quase que uma brisa, brincasse com os mesmos.
A água da chuva, molhando suas vestes e os seus rostos, dava-lhes uma aparência de frescor, exaltando as suas figuras de inocência e, como se fora um passe de mágica, um raio de sol atravessava a tênue cortina de água e iluminava seus rostos radiosos.
Os pés estavam descalçados, como convinha para aquela situação e a água batia de encontro aos mesmos, fazendo miniaturas de cataratas; pelos seus olhares consegui auscultar a sensação agradável que isto lhes proporcionava.
Nestas horas, o pensamento de uma criança realiza os sonhos inatingíveis pela realidade do cotidiano; consegue deslumbrar um mundo que não é apercebido pelos adultos, soltam-se barcos pela correnteza e embarca-se no calmeiro das ilusões, rumo ao desconhecido.
Ninguém para interferir, tentando mudar o rumo da embarcação!
A mais velha (velha?) usava um vestido vermelho, com comprimento abaixo dos joelhos, adornado por uma gola branca, toda rendada. Um par de brincos argolados enfeitava aquele seu rosto suave.
A outra estava vestida com maior modéstia (seria possível?), exibia uma fita disposta como tiara, realçando a tez lisa e bonita.
De vez em quando as duas agachavam, dando a impressão que procuravam alguma coisa perdida; seguramente analisavam o mundo imperceptível aos demais mortais, sempre insensíveis às pequenas nuanças da natureza: uma formiga, por exemplo, que lutava, agarrada a uma folha para sobreviver àquele "dilúvio", sendo jogada pela correnteza rumo ao desconhecido. Pode ser, também, que tenham visto uma fenda no asfalto por onde a água penetrava, levando consigo tudo o que podia carregar e o que cabia naquele buraco.
A formiga agarrada na folha, balançando e trombando com as reentrâncias do caminho, tinha alguma esperança de chegar a um destino, provavelmente escapar da corredeira com vida e reiniciar o ciclo biológico em outras plagas, longe do ponto de origem. Aquelas que foram levadas para o interior da fenda do asfalto, figuram na lista dos caminhantes das estradas sem volta.
Tive que seguir meu caminho, a necessidade de conviver com o tempo disponível, impõe-nos uma rotina, a que nos submetemos com disciplina, até sem percebermos. Deu-me vontade de libertar das amarras que me prendem á idade adulta e segurar nas mãos daquelas duas crianças e trocar opiniões sobre a necessidade da chuva, do buraco e da corredeira engolfar a formiga nos seus tentáculos e carregá-la, rumo ao desconhecido, contra a sua vontade.
Elas, provavelmente, não me dariam uma explicação lógica (nossa lógica nunca é a lógica delas), mas me informariam no seu linguajar simples e direto:

Existe tudo isto porque, se não houver chuva, não haverá flores e, sem flores, não haverá a alegria da vida das formigas!

Se eu não conseguisse entender, entreolhariam e despediriam com um sorriso de desapontamento e, lá na frente, ainda de mãos dadas, olhariam para trás e os seus olhares denotariam que sentiam, mais uma vez, muita pena dos adultos.





sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

DEIXE-ME CONTAR ENQUANTO ME LEMBRO
(janeiro de 1998)

PESCARIA NA COMPANHIA DOS PEÕES
Semana passada estive na Fazenda de Edéia, fui com Batistão; diverti-me bastante com as suas estórias.
Quando começou o lusco-fusco da tarde resolvemos, Batistão, Nandinho e eu, irmos pescar lá para as bandas do pasto sucuri, em um poço feito pelo ribeirão Fala a verdade e cevado pela dupla, nas “horas vagas”, como me afirmam.
Enquanto eram ultimados os preparativos (colocar linha, anzol, chumbada, arrancar minhocas) a conversa que rolava era a respeito de pescarias anteriores naquele lugar.
- Uma vez peguei uma traíra soberba, tinha quase dois palmos, infelizmente não consegui tirá-la para fora d’água porque a linha arrebentou, por isto, daquela época em diante, só uso linha sacudida.
- Batistão, também não é preciso exagerar, linha 80 é para pegar filhote!
- Prefiro pecar por sobra do que por falta seu Dotô!
O único medo que tenho daquele poço é da tar de sicuri, diz o receoso Nandinho, acho que ela mora por lá, pois, já vi rastro dela no capim que rodeia o córrego.
Dotô, o senhor vai a pé? Pergunta, a até agora calada Didalva, esposa do Nandinho, para em seguida sentenciar: o senhor não tem costume e o capim está batendo na cintura do cidadão e acho perigoso.
- É só uns trechos que estão assim, não tem perigo não seu Dotô, é prosaria desta mulher implicante!
Por via das dúvidas e, principalmente, para não ser descortês com a observação da dama, mandei arrear um cavalo, de preferência o mais alto deles, com a desculpa, para não parecer que estava “fugindo da rinha”, de que na volta o capim estaria molhado e não gostaria de pegar um resfriado...
Se a justificativa me absolveu não sei, mas que consegui ver um discreto ar de riso no rosto da conselheira Didalva, isto eu vi!
Na beira do poção, como era de se esperar, a conversa correu solta, centrada, principalmente, na vida do bom Nandinho.
- Como é, ocê tem furado o queijo?
- Tem melhorado um pouco, uma vez a cada quinze, vinte dias, porém, ainda não está do meu gosto.
- Ocê tem que dar um jeito homem, arranja outra mulher.
Aqui preciso dizer, embora sem muita convicção, que estou achando que o Batistão está com uma mensagem cifrada, acho que ele está querendo empurrar uma cunhada dele, como veremos no final da história, para cima do Nandinho.
- Batistão, foi bom você tocar no assunto, você sabe que a Nilda me mandou uma carta e que a guardei no vão das telhas lá da sua casa?
Apenas por ingênua curiosidade, quis saber os dizeres da mesma e a razão do inusitado esconderijo, até porque, a partir do momento em que você toma conhecimento de um segredo, passa a ser participe do mesmo.
- Uma porção de coisas seu Dotô! Muitas coisas não consegui entender direito, não sei se é por causa do meu estudo que não é muito bom ou a letra dela que é muito “garranchada”. Ela fala até uns palavrões.
- Palavrão?
- Diz que está louca para transar comigo, me matá de sofreguidão, nem sei o que é isto?!
- Nandinho, uma vez, antes de você juntá os trapos com a Didalva, a minha comadre Nilda me disse que achava que ocê não era de nada, ela disse que foi na sua casa, te espremeu num canto do quarto, te agarrou e nada...
- Também pudera Batistão, como eu poderia fazer alguma coisa, sabendo que o marido dela estava por perto?
- Bobage sua, o marido não queria nem saber dela e ela o achava meio vinte-e-quatro.
- É, pode ser que ele fosse meio frescão, mas só de olhar para aquele morenão com dois metros de peito, qualquer um assusta, não é mesmo? Depois, meu irmão me preveniu para não me enroscar com ela, porque é “chifre” na certa.
- Agora ela está bem mais calma, casou com um catatau meio estrangolado, arengueiro feito ele só, porém, bravo que nem um baguá bulindo as orelhas.
- Mas ela continua frequentando o bailão que estava acostumada?
- De jeito nenhum, o baixinho não a deixa por os pés para fora de casa!
- E a Tereza Batistão, já arranjou home?
- Ainda não, anliás, ela tá que manda recado para você (aqui, no meu entender, começam as manobras do Batistão...)
- É, ela é muito gostosa!
- Só isto? Ela é gostosa e fogosa! E os olhos tiranos que ela tem? Se eu fosse você, largava esta sua mulher e amarrava as trouxas com a Tereza.
- Você sabe que tenho vontade de fazer isto Batistão, mas estou achando difícil largar esta mulher, já dei todas as indiretas e diretas e nada. A ultima vez que brigamos, foi por causa de sexo, ela agora quer que eu use camisinha!
- Por que camisinha, você está com AIDS?
- Deus me livre, esconjuro! O medo dela é eu passar a minha diabetes para ela!
Sei que os leitores devem estar curiosos para saber se pegamos algum peixe.
Nenhum!



COMO MARMOTINHA CONQUISTOU O SOGRO

Ontem, o João da Tereza, mais conhecido como João “come quieto”, sendo que este último apelido, só pode ser dito na sua ausência, pelas suas possíveis conotações mundanas e, principalmente, pelo seu novo estilo de vida, como iremos informar, terminou o serviço de “bateção” do pasto.
Veio receber o que lhe é devido, trazendo, na carona da sua moto, um seu irmão que é surdo e mudo, cujo nome, por óbvias razões, nem sempre é declinado.
Fiquei sabendo, pela nossa conversa que tanto ele como o irmão são crentes e estão fazendo todo o possível para salvar a alma do nosso funcionário Marmotinha e este não está nada satisfeito com o assédio, pois, além dos dois, existe um outro peão vizinho, de nome Dilvanir, que professa a mesma religião e tem, também, prometido a ele, a certeza de ajudá-lo a achar o caminho do céu.
Se a oferta não exigisse nenhum sacrifício em troca, acredito que o Marmotinha, pela sua formação, aceitaria sem pestanejar, porém, nem sempre as coisas que almejamos são alcançadas sem nenhuma pertinácia.
O problema é que, para este bafejo da sorte, segundo as orientações dos dois “pastores”, o penitente teria que abdicar de alguns privilégios terrenos, tais como:
Não assistir televisão, não ligar o sistema de som e não ingerir bebidas alcoólicas de maneira alguma.
Quando ouvi esta relação de proibições, comecei a pensar com meus botões: não acredito que o Marmotinha terá condições de receber a graça prometida; a televisão está de tal maneira embrenhada no dia/dia da família que acho difícil ele atender esta exigência, mesmo porque, o contrato está sendo feito com a intenção de salvá-lo, porém, a sua mulher e os seus filhos não foram consultados e não sei se estão interessados em expiar a sua alma.
O sistema de som, comprado com o auxilio das economias da mulher, com quinze prestações ainda a pagar, será outro motivo de dificuldade para ser colocado na mesa de negociações, senão vejamos:
Marmotinha adquiriu, bem antes de comprar o aparelho, uma grande quantidade de fitas K7 (todas com músicas sertanejas), deixando claro, com este gesto, aliás, com bastante antecedência, o desejo de se deleitar com as vozes dos seus cantores favoritos.
O João da Tereza, ou João “come quieto” (que ele não nos ouça) sabe, de antemão, das dificuldades que enfrentará para convencer o Marmotinha a abandonar esta “tentação do Satanás”; aliás, quando ele fala esta palavra tão sonante, porém, tão carregada de maus presságios, seu irmão, o surdo-mudo, provavelmente decifrando a linguagem dos seus lábios, colocou os dedos indicadores na testa, como se fossem chifres do capeta e sinalizou com a boca, como se estivesse soltando fogo pela dita cuja.
No entanto, a última exigência da lista, largar de beber, creio ser a mais difícil, se não impossível de ser atendida, pois, Marmotinha gosta muito de uma pinguinha, segundo ele, desde menino; na verdade, nunca bebeu para “descornar”, mas sim para enfrentar alguma tristeza da vida, alguma contrariedade, para comemorar alguma alegria, alguma “paixão recolhida”, etc.
O “etc” fica por conta da minha interrupção, se não teria que narrar para meus leitores, todas as razões por ele enumeradas e esmiuçadas nos detalhes; vou contar, para não cansá-los, apenas um dos acontecimentos mais pitorescos desta sua desventurada vida de “bebedor”.
“Uma vez, namorava minha atual esposa, aliás, tentava fazê-lo, pois havia muitas barreiras a serem vencidas e, uma delas, a mais difícil, era “dobrar” o pai dela, um homem muito bravo, adquirindo maior coragem quando ficava “tocado” pela pinga.
Nestas horas, poucas pessoas tinham a coragem de contrariá-lo, partia logo para a ignorância.
Eu ficava só rodeando a casa do quase futuro sogro, esperando a oportunidade de me aproximar, quando ele não estivesse “tocado”; infelizmente esta fase nunca consegui observar, nem mesmo seus vizinhos conseguiram.
Estava ficando cada vez mais impaciente com a situação, já havia transcorrido mais de um ano, para ser exato, um ano e cinco meses; um dia, para minha salvação, um irmão do homem, que era encarregado do barco que atravessava o rio, compadeceu de mim
e fez a seguinte proposta:
“ Você compra três botijões de gás e coloca na minha camionete, fugiremos por este mundo afora até o gás acabar, garanto que o homem não vai achar vocês de jeito nenhum”.
A proposta era boa, porém, me deu outra idéia: precisava mostrar para o sogro que estava bem intencionado; a casa que ele morava era de sapé, aproveitei um dia de sol muito quente e um vento suave, fiz uma tocha de fogo e joguei em cima da tapera; logo em seguida comecei a gritar
- gente, óia o fogo!
Entrei correndo pela casa adentro, arrastei todo mundo para fora, inclusive o sogro, naquela altura sem condições de caminhar pela bebedeira do dia.
Por azar, o fogo alastrou para a cozinha, onde um botijão de gás ainda não havia sido consumido.
De longe se ouviam as explosões!
No final tive que ajudar o sogro a construir outra casa, o homem ficou convencido da minha honestidade, casei com esta mulher e estamos sendo felizes, não é mesmo benzinho?”.
Vou reavaliar esta felicidade, não sabia desta história, disse ela, ainda incrédula.