MINHAS CRÔNICAS

sábado, 24 de março de 2012

TEMPO RISONHO E FRANCO


            Dias destes passados, conversava com um dos meus netos (11anos) a respeito das suas atividades escolares; depois de ouvir a sua “carga horária” de afazeres diários (colégio durante toda a manhã; período da tarde: natação - 4 vezes por semana; aulas de violão – 2 vezes por semana; aulas de inglês – 3 vezes por semana; uma vez por semana aula extracurricular de robótica, oferecido pelo colégio; tardezinha - quase noite, já no ambiente do local onde ele reside, futebol com os amigos na quadra do condomínio, volta para casa com a mesma condução que o levou, os adorados patins sobre rodas).
                        Ao chegar à casa a mamãe já organizou seu banho, senta um pouco para assistir alguns programas de televisão, intercalado com o manuseio do “Hi Phone”, pela necessidade de se colocar em dia sua correspondência com os amigos e amigas que lhe enviaram mensagens por intermédio do “face book”.
                        Jantar sempre com a família reunida; após breve descanso e “papear” um pouco com o papai, com a mamãe e os irmãos, vai para o quarto fazer os deveres (tarefas) escolares e... dormir, para acordar no dia seguinte bem cedo para reiniciar a labuta diária.
                        Não fiz referência ao fato de que ele mora em um condomínio um pouco afastado de todos os locais destas atividades, tendo que se deslocar (felizmente por automóvel, na companhia do irmão, dos primos e primas, em sistema de revezamento, tendo em vista que os outros têm atividades diferentes) de um lugar para o outro (ainda bem que o trânsito em Goiânia deslancha com real agilidade!).
                        Confesso que fiquei cansado só de ouvir o relato desta “via sacra” diária; será que seria capaz de fazer isto no meu tempo de criança? Observem que a pergunta já embute uma posição do autor deste texto: seria capaz? Para quem sabe ler, “um pingo é letra” como diziam os antigos: estou afirmando que no meu tempo de criança eu não fazia todas estas “estripulias”. Ou será que fazia?
                        Lembro-me que me levantava bem cedo (6 horas), minha mãe já estava com o café, leite quente, chocolate e as quitandas prontas para serem levadas para nosso barzinho da estação da estrada de ferro, onde vendíamos (eu e meu irmão) para os passageiros do trem da Rede Mineira de Viação que circulava naquela hora (06h30).
                        Era o tempo de o trem partir (07 h00), correr para casa levando de volta o material que trouxera, pegar os livros (já estava uniformizado) e correr para a escola que se situava não muito longe da nossa casa e chegar antes do início das aulas (07h30).
                        Grande parte do período da tarde era ocupada na ajuda ao meu pai na capina de milho, feijão, tratar dos porcos, galinhas, ou então atender minha mãe em alguma precisão doméstica (ela era proprietária da pensão); o tempo que sobrava era dedicado a brincadeiras de crianças (pegar passarinhos, jogar bola, pescar e nadar no ribeirão que passava em frente da nossa casa e tantas coisas mais...).
                        Antes de deitarmos fazíamos os deveres da escola, lembro-me que não eram muitos; hoje consigo entender a razão desta “folga”, por vivermos em uma zona rural, as professoras sabiam que quase todos os alunos trabalhavam nas suas casas, portanto, aprendíamos o que se precisava no horário das aulas. Tenho a pretensão de dizer que aprendemos muito!
                        Recentemente tive a oportunidade de ler a autobiografia (El Mundo de Ayer – O mundo de ontem, 1942) do escritor austríaco Stefan Zweig que viveu esta fase encantada da vida na cidade de Viena, no final do século 19.
                        Naquela época, a Áustria vivia sob a Monarquia dos Habsburgo, cujo imperador, Francisco José, se orgulhava em dizer que a educação ministrada às crianças do seu Império era superior a da maioria dos outros países da Europa.
                        Vejam, no entanto, o que pensava o escritor Zweig a este respeito:
              “Cinco anos de escola primária e oito anos de Ginásio, passávamos sentados em banco de madeira, todos os dias de cinco a oito horas por dia e no tempo livre havia os deveres de matérias gerais, francês, inglês, italiano, além do grego e do latim, não deixando espaço para os exercícios físicos, esportes e muito menos para diversões.
                        Até quando me lembro, a atividade escolar era monótona, desalmada e insípida, estragando a época mais formosa e mais livre da nossa existência.”.
                        Algumas páginas depois deste julgamento tão severo, ele acrescenta:
                        “Era um frio esquema de ensino que nunca levava em consideração o indivíduo, que era tratado como um autômato e como tal era classificado “bom”, “suficiente” e “insuficiente”. Havia falta de afetividade humana, o que nos amargurava. Nunca um professor nos perguntou o que desejávamos aprender.”.
                        É difícil analisar estas considerações se lembrarmos de que ele escreveu isto quando estava com 60 anos de idade, em plena II Guerra Mundial, amargurado pela sua situação de judeu perseguido, expatriado (suicidou-se, juntamente com a esposa, quando morava no Brasil, fugindo da perseguição nazista) e, sobretudo sem esperança.
                        Tenho certeza que meus netos, apesar do “sacrifício atual” terão, assim como eu tenho, gratas lembranças deste tempo.
                        Semana passada estive em uma festa cultural no Externato São José, colégio onde todos meus filhos e todos meus netos estudaram ou estudam; comemorava-se o lançamento da “IX Feira de Livros do Externato”, homenageando nesta oportunidade as “Mulheres na Literatura Brasileira”; fiquei feliz ao encontrar quatro daqueles meus amigos “globe-trotters” que mencionei acima; um deles, a mais “sapeca” de todos, declamando poesia em homenagem a minha querida e saudosa Irmã Laura Chaer.
                        Ou Stefan Zweig estava enganado ou o colégio em que ele estudou estava longe da realidade do Externato São José, pois as crianças que vi naquela noite estavam todas felizes em participar da vida do Colégio, mesmo em horário fora das suas rotinas e com frequência não obrigatória!

quarta-feira, 21 de março de 2012

APONTAMENTOS DO JARDINEIRO


SUSSURRO DAS FOLHAS DA AZALEIA    

            Abri a janela do quarto naquela manhã friorenta de inverno e olhei para o céu para me informar de como seria o tempo naquele dia; o sol que normalmente naquela  hora, cumprindo sua rotina, dá sinais de que também acordou e está se levantando, estica seus raios, simulando braços que espreguiçam, e estes furtivamente se desviam das folhas das àrvores,tentando alcançar onde estamos. Sua claridade não se mostra  por inteiro; como se fosse um maestro de orquestra que sabe que a plateia percebe que ele aparecerá para comandar o espetáculo, aguarda que a natureza decida se ele virá.
            Da sacada vi o Dercirio se escondendo da chuva miúda, quase que um chuvisqueiro, debaixo de um pé de munguba, onde conversava com o outro funcionário do jardim com a voz um pouco alterada na altura.
Preocumei-me, porque este não é seu costume; aliás, antes de mais nada acho que preciso apresentar o Dercirio aos leitores que não o conhecem: é a pessoa encarregada das atividades manuais do jardim da Santa T ereza.
No começo ele não gostava do serviço, tendo em vista que estava acostumado com a lida do gado e outras atividades que também exigiam força física, porém, com o tempo foi tomando gosto por esta nova atividade e hoje quem observa o carinho com que ele cuida das flores, pensa que ele foi jardineiro a vida toda.
                        Desço e ao me aproximar dos dois consegui ouvir:
                        - Já lhe expliquei várias vezes que não se deve irrigar as “orquídas” com muita água, elas não suportam, como me ensinou o Doutor, depois que ele fez um “curso de orquida”.
                        Minha chegada foi providencial, pois o outro funcionário já estava “engatando” uma resposta ao Dercirio;  por estar
acostumado com estas eventuais idiossincrasias entre funcionários, resolvi intervir, mudando o enfoque da discussão:
                        - A vida inteira estou envolvido com jardins; minha mãe plantava rosas em latas vazias de querosene e as encostava ao muro na expectativa que elas crescessem e ali se enroscassem, transformando o desajeitado e feioso paredão sem reboco em um mural de ramagens e flores; muito cedo percebi, pelas movimentações da minha mãe, que a palavra mágica a ser usada no jardim é carinho.
                        A jardinagem é uma das poucas coisas do nosso cotidiano em que nunca alcançamos a perfeição; independente de quanto dinheiro se gaste na sua manutenção, do local onde foi escolhido para instalá-lo; o homem poderá trabalhar no projeto que sonhara durante toda a sua vida, depois os seus filhos e os filhos dos seus filhos verificarão que chegaram perto do paraiso com que sonharam,  porém, ainda não o atingiram.
                        Vamos cometer falhas a vida inteira, nunca atingiremos a perfeição, sempre teremos, graças a Deus, alguma coisa para melhorar e
isto é bom; lutamos e nossa luta traz-nos felicidade; nada no jardim pode ser feito com rapidez; ao plantar uma roseira converse com a “muda”, explique-lhe que você irá cuidar da sua vida daqui para frente e em troca, pede-lhe apenas que ela embeleze o seu horizonte com a sua presença multicolorida e espalhe seu perfume ao derredor.
                        Diga-lhe, também, que a brisa da tarde, normalmente suave e delicada, irá levar este perfume para outros viventes, longe daqui; embora ela saiba disto, tenha certeza que gostará de ouvir novamente a afirmativa de que sua vida não será em vão.
                        Pelo silêncio que fizeram, acho que os dois amigos conseguiram entender as minhas divagações, dei-lhes um tapinha nas costas e cada um seguiu o seu caminho; quando chegaram à entrada do orquidário, olharam para trás e falaram qualquer coisa entre si. Será que entenderam?
                        Ao fazer minha caminhada entre os canteiros, observei que as azaleias que plantei há cerca de dois meses estavam florindo, porém não com o vigor e a onipresença que eu desejava; se fosse fazer um comparativo eu diria que elas se assemelhavam ao paciente portador de grave quadro de artrite reumatoide que tenta se levantar da sua cama, faz algum esforço para se sentar, porém verifica que o esforço não é correspondido pela mente que        que sugere que ele se deite novamente.
No entanto observei que as folhas das azaleias, ao receberem o sopro carinhoso do vento que se espalhava pelo jardim, parece que emitiam um sussurro que soava, para quem tivesse ouvidos para ouvir, como melodia.
                        O ruído sussurrante e misterioso provocado pelas folhas, como se acofiassem umas as outras é o eterno segredo da natureza.

quarta-feira, 14 de março de 2012

BATISTÃO FAZ COISAS QUE ATÉ DEUS DUVIDA!



Sei que o enunciado deste texto é uma blasfêmia, porém após a sua leitura, os meus leitores serão tentados a dar-me razão.
Como muitos sabem, o Batistão é um ex-funcionário da nossa fazenda que gosta de contar seus feitos por saber que sempre haverá um ouvinte interessado em conhecer as suas estripulias, nas quais, quase sempre ele envolve algumas outras pessoas, uma delas é o meu amigo Deracino que trabalhou conosco já há algum tempo.
Tudo começou à beira do rio Araguaia, na praia “Mata Corá”, onde Deracino estava ajudando meus amigos João “Filho da terra” e Osmaril a organizarem o acampamento, tido como o melhor de toda extensão do rio.
Segundo Deracino, era uma daquelas inigualáveis tarde-noites no acampamento, quando todos começavam a rodear a fogueira, adrede montada na praia, para ouvir as canções e o violão do João “Filho da terra”; o vento soprava sem força suficiente para fazer banzeiro, porém com a suavidade necessária para tornar o wisquinho com gelo mais suave e agradável, quando chegou o Batistão, vindo ninguém sabe de onde e pediu pouso; solicitação atendida com o aval do seu amigo Deracino.
Após se acomodar na roda, Batistão então contou a razão da sua presença naqueles ermos; ouçam-no, no relato do Deracino:
- Estou vindo da Bahia, mais precisamente de Barreiras, especialmente para caçar uma “queixada” ou porco do mato, como dizem aqui nas beiras do rio Araguaia; como não poderia ser diferente, esta afirmação causou, para dizer o mínimo, susto em todos os presentes.
Antes que alguém o questionasse, ele continuou:
- Vai haver, daqui a seis meses, uma corrida de porcos na feira da cidade e o prêmio é dinheiro para resolver minha vida, ano passado meu compadre Marrequinho quase ganhou, porém um danado de um porco “duroc”, por ter a perna mais comprida, venceu de barbada.
Dividi com o compadre as despesas da minha viagem e vim atrás destes porcos daqui que dizem ser mais rápidos do que cavalo desembestado.
Na verdade estes porcos são muito rápidos, porém são selvagens e violentos; é quase impossível pegar um deles, pois sempre andam aos bandos, disse, sem ser perguntado, o “João Tangerina”, acrescentando alguns outros detalhes da vida destes animais, para assombro de todos, que não sabiam que ele tivesse tanto conhecimento a este respeito.
Aqui, para os leitores que não conhecem o ambiente dos acampamentos da beira do rio Araguaia, preciso dizer que até hoje ninguém desmentiu um companheiro de pescaria, portanto...
 “Anliás”, eu até já cacei um, disse o Batistão, já mostrando um saco de estopa que estava aos seus pés e que, pela movimentação que fazia, dava mostras de haver algum animal no seu interior; os detalhes desta inacreditável captura Batistão não quis contar, talvez para não desmentir o “João Tangerina” que exagerou (?) nas dificuldades.
Quando digo que o Batistão faz coisas inacreditáveis não é exagero; o homem conseguiu pegar no meio da manada de queixadas um filhote que ainda estava mamando e saiu com vida desta empreitada.
“Anlias”, disse o Batistão, tá na hora de dar mamadeira para o bichinho que já está chorando de fome; incontinenti ele pegou o “porquinho” no colo e deu-lhe a mamadeira, na mesma posição como se fora para uma criança; o problema é na hora de dormir, falou ele, olhando um pouco desconfiado para todos os da roda: tem que ser na minha cama, senão ele chora a noite inteira e atrapalha o sono de todo mundo por perto.
Depois de contar detalhes da corrida a que ele iria participar com seu atual “porquinho”, falar da empolgação da população de Barreira com este acontecimento (Um mês antes do dia, ninguém mais fala em outra coisa!), dos preparativos dos competidores (enfeitam os porcos com cintas coloridas, amarram estrelas coloridas, feitas de panos, na testa dos bichos) e fazem apostas, muitas apostas.
Dia seguinte, ao se despedir, Batistão explicou que irá criar na sua casa o “queixadinha” debaixo de grande segredo, até o dia da festa; ao ser abraçado pelo “Grande Chefe” este lhe presenteou com algo que realmente iria definir a corrida a favor do Batistão; leve, disse ele, este “ferrãozinho” que retirei do rabo de uma arraia; na hora da largada, “cutuca” o traseiro do queixada com ele, faça somente na hora certa, porque o efeito é de imediato.
Ao embarcar na canoa, houve o famoso e tradicional “bota-fora”, todos se postaram as margens do rio cantando a conhecida valsa” Quem parte, leva saudade...”; podia-se ver o Batistão chorando copiosamente e gritando – Faz isto comigo não gente boa, acho que vou morrer de saudade “doceis” tudo.
No ano seguinte o Deracino contou o epílogo da história, Batistão, cuidou do “queixada” como se fora um filho, deu-lhe inclusive um nome ”ventania” e parece que o bichinho até entendia ao ser chamado; às vezes Batistão se levantava de madrugada, ia ao chiqueiro e trazia o “porquinho” para sua cama, como isto estava ficando cada vez mais frequente, sua mulher pediu “arrego” e sumiu no mundo.
No entanto ele cometeu um erro que foi fatal para suas pretensões, não seguiu corretamente as instruções do “Grande Chefe”; faltando uma semana para o dia da corrida, Batistão estava ficando cada vez mais agoniado e resolveu testar o “ferrãozinho” antes da hora que lhe havia sido, sabiamente, aconselhado.
Trouxe o “queixada” para a porta da sua casa, mandou o compadre Marrequinho ficar a uma distância de mais ou menos 200 metros e marcar no relógio o tempo gasto entre a largada e a chegada.
- Atenção compadre Marrequinho, fica esperto, gritou ele e incontinente deu uma “picada” no traseiro do queixada; não preciso dizer o que aconteceu:
- Nunca mais viram o Ventania, deve estar correndo até o dia de hoje!

quinta-feira, 8 de março de 2012

SOU ATEU!

                     
                  
               Não faz muito tempo, lembro-me que foi numa destas tarde-noites, em que nos reunimos em tertúlias que acontecem após as sessões administrativas da Academia Goiana de Letras, ao redor da mesa de chá, café e algumas guloseimas, para discutir assuntos ligados à cultura e ao intelecto.
                   O assunto que foi suscitado por um dos acadêmicos presentes eletrizou a reunião, a discussão a respeito da fé; alguns dias depois, o meu querido confrade Dr. Ursulino Leão presenteou-me com um livro que me tem ajudado na reflexão sobre esta problemática, trata-se de “Em defesa de Deus, Karen Armstrong, Ed. Cia. Da Letras, 2009”.
                        Quando se discute a fé é necessário ter em conta a sua contra face, ou seja, a ausência da fé; aquele que acredita, que tem crença, tem sido definido, erroneamente, como o que aceita as doutrinas religiosas, sendo os mesmos chamados de “crentes” por aceitar “em confiança” dogmas estabelecidos por esta ou aquela religião.
                        Esta interpretação fez surgir nos tempos modernos, mais acentuadamente na segunda metade do século XX, dois fenômenos que estão cada vez mais presentes nas discussões religiosas, políticas e filosóficas: o fundamentalismo religioso e o ateísmo, ambos, por serem hermeneuticamente antagônicos, possuem forças suficientes para sustentar suas respectivas posições e manter a discussão.
                        No livro que citei acima a autora faz um enunciado que nos obriga a fazer reflexões antes de colocarmo-nos de um dos lados da dicotomia fé e ateísmo – “Uma das condições para obter conhecimento sempre foi a disposição de abandonar o que pensamos que sabemos a fim de avaliar verdades que nunca sequer imaginamos”.
                       Interessa-me, no momento, discutir o assunto ateísmo que, como sabemos, surgiu com força durante o século XIX e foi impulsionado para as rodas políticas e filosóficas no inicio do século XX com Marx, Nietzsche e Freud, dentre outros. 
                        Sei que o título deste texto é instigante, porém preciso esclarecer que não o endosso, pois, pelo contrário, creio no Grande Arquiteto do Universo; embora tenha pontos de contatos filosóficos com o pensamento Deísta, me julgo no direito de não rejeitar, como eles rejeitam, as religiões que levem ao encontro de uma “convivência criativa, pacífica e até prazerosa com realidades que não são facilmente explicáveis e com problemas que não conseguimos resolver: mortalidade, dor, sofrimento, desespero, indignação em face da injustiça e da crueldade da vida” (livro citado acima).
                        Há algumas semanas atendi em meu consultório médico um casal que se tornou meus amigos; ela apresentava um problema intestinal que poderia lhe trazer preocupações para o futuro, ele que viera apenas como companhia da esposa, era um engenheiro-fazendeiro de bom nível intelectual e, sobretudo cultural.
                         Durante as discussões que permearam a consulta ele me disse com muita convicção: sou ateu, aliás, cada vez acredito menos em um Deus por não existir provas da sua existência!
                        - Você vivencia as coisas que acontecem na sua fazenda? Perguntei-lhe, sob o olhar atento da sua esposa que, por certo não comungava com as suas ideias. Lance os olhos ao seu derredor; por exemplo, você já parou para ver uma vaca dar cria a um bezerro? Esta é uma das provas da existência de Deus; vou lhe contar o que vi:
                        Acho que tudo o que a vaca faz durante as horas que antecedem, durante e após a parição não é racional, é instintivo; ela faz centenas de movimentos, caminha para frente e para trás, para, deita, levanta; ajeita com as patas dianteiras o capim aonde o bezerro irá “cair”; em seguida à parição, acontece o milagre da natureza, a vaca dá um passo para frente (nunca para trás, pois poderia pisotear o bezerro), vira-se, examina-o e cheira-o.
                        A fase seguinte é a mais importante, o bezerro recém-nascido respira ofegante pela presença de secreções ou mesmo parte da bolsa uterina que lhe cobre o nariz, parece que vai morrer sufocado; de imediato a vaca começa a lamber-lhe, iniciando, instintivamente, justamente pelo seu nariz, retirando as secreções que lhe impediam a respiração.
                        Que força é esta que impele a vaca a seguir este roteiro? Por que ela inicia a lamber pelo nariz e não pela parte traseira do bezerro?  Darwin explica isto, é o instinto da preservação da espécie, afirma-me o fazendeiro; de minha parte, respondi-lhe, sempre desconfio das certezas, cultivo, nos assuntos da fé, o valor da dúvida, prefiro acreditar em um Ser Superior.
                        Venha comigo, vou fazer a colonoscopia (exame endoscópico do intestino) na sua esposa e gostaria que você presenciasse algo que acho difícil Darwin explicar; este aparelho possui uma câmara filmadora na sua extremidade distal e à medida que “caminha” pelo interior do intestino, vai enviando as imagens (ampliadas muitas vezes) para o monitor, onde o médico assistente observa possíveis alterações do relevo interno da alça (tumores, processos inflamatórios etc.).
                        Ao iniciarmos o exame, colocamos este pequeno sensor na extremidade (ponta) de um dos dedos do paciente, que registra os seus batimentos cardíacos, cuja audição é ampliada por este pequeno monitor (oxímetro); este acontecimento é um milagre, não da ciência que consegue fabricar esta aparelhagem, mas sim de quem “fabricou” o ser humano com tamanha meticulosidade, onde uma minúscula artéria situada na pontinha de um dos dedos pulsa no mesmo ritmo do coração.
                        Veja aqui a miríade de veias e artérias que são visíveis pela ajuda desta aparelhagem, todas, absolutamente todas, têm alguma função no organismo; veja aquela um pouquinho mais calibrosa que aparece ali do lado direito, olhe as pulsações que ela apresenta e observe comigo que acontece no mesmo ritmo daquela que pulsa na ponta do dedo e todas elas, no mesmo ritmo do coração, conforme estamos ouvindo pelo oxímetro.
                        Não sei se os dois exemplos lhe tocaram, porém gostaria de dar-lhe mais um, agora dentro da sua área de atuação, as ciências exatas, tendo em vista que a maioria dos argumentos que é utilizada pelos agnósticos é a necessidade de se ter fé para acreditar no Ser Supremo.
                        Boa parte do que os físicos nucleares dizem é verdadeiro e pode ser comprovado, mas, às vezes, não é razoável ou racional; não se pode dizer que é razoável ou racional a afirmativa de que a mesma partícula nuclear pode passar por dois orifícios diferentes ao mesmo tempo.
                        Não seria o caso de repetir com o Apóstolo Paulo quando afirma na epístola aos Hebreus: “A fé é a garantia daquilo que é almejado, a convicção daquilo que não é visto”.     

sábado, 3 de março de 2012

VISCONDE DE TAUNAY (1843–1899)

Visconde de Taunay ou Alfredo d’Escragnolle Taunay foi membro fundador da Academia Brasileira de Letras, nasceu no Rio de Janeiro, tendo publicado várias dezenas de livros, além de incontável numero de artigos em jornais e revistas da época, foi político atuante (deputado por Goiás e depois senador do Império), militar (participou, na linha de frente, da Guerra contra o Paraguai).

Após a morte de Dom Pedro II, a quem dedicava a mais absoluta veneração, passou a viver, quase que exclusivamente, para os trabalhos literários, tendo escrito nos últimos anos de vida, milhares de páginas sobre polêmicas, reminiscências, crítica literária e artística, biografias, música, além de dois romances.

De todo o seu acervo, cabe destacar dois romances que passaram incólumes pela prova do tempo: A Retirada da Laguna e Inocência, este último com mais de 35 edições; o leit motiv para escrever o primeiro deles foi a sua participação no episódio militar, que passou para a história como um dos mais heróicos de todas as batalhas travadas pelo valoroso exército do Império Brasileiro, a guerra contra as forças do Paraguai e que ficou conhecido como a Retirada da Laguna.

A inspiração para ele escrever Inocência vamos encontrar no seu livro póstumo “Visões do Sertão – Ed. Cia. Melhoramentos de São Paulo, 2ª. edição, 1928”, onde narra sua volta para o Rio de Janeiro em 1867, após a retirada da Laguna, atravessando, neste percurso, os Estados de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo, em lombo de cavalos.

Leiam alguns excertos do que ele disse:

“...Nesse dia 1 de julho de 1867, à margem do rio Sucuriú, vi um anão mudo, gracioso e ágil nos movimentos, que me serviu de personagem (Tyco) no meu romance Inocência, inclusive seu chapéu de palha furado...”

“... Foi na fazenda do Vau, a mais importante da região. A dona, uma desconsolada viúva, anêmica e parecendo desgostosa com a vida, não nos acolheu mal; tinha uns filhos, o mais velho, devia em breve casar com uma prima, provavelmente, também caquética como o noivo. Foi daí que tirei o assunto para o romance Inocência, cuja heroína eu iria encontrar alguns passos além...Aliás, nesse sertão, próximo de Santana do Paranayba, foi que colhi os tipos mais salientes do livro. Na casa do Sr. Manoel Coelho achei o eterno doente das solidões, queixando-se da falta de médicos, agarrando-se a curandeiros. Foi ele o “pai” de Inocência, o Pereira...”

“...Numa vivenda, bem à beira do caminho, morada de um tal João Garcia, foi que vi o tipo que se transformou em Inocência. Estava eu com muita fome, parei e pela porta escancarada, vi um homem a uma mesa, devorando um prato que me pareceu delicioso.

- O Sr. não convida alguém varado de fome? Com todo prazer é só desapear e vir comer.

Um gostoso refogado de carne de porco com cebolas e farinha de milho; repeti abundantemente.

Após saciar minha fome o homem interpelou-me:

- Por que o patrício não teve escrúpulo de sentar-se à minha mesa?

- Por que deveria? Perguntei, sem entender.

- É, replicou-me a custo, aqui é casa de morfético; levei susto, porém, como recuar? Dali a pouco entrava na sala uma moça na primeira flor dos anos, tão resplandecente de beleza, que fiquei de boca aberta. Então, acha minha neta Jacinta bonita? A pobrezinha da inocente já esta com o mal. Jacinta tornou-se a Inocência; não fiz desta, no entanto, uma infeliz morfética. Do avô tirei o personagem “leproso”, o Mineiro, e lhe dei o nome verídico, Sr. Pereira...”.

Para patentear, mais uma vez, a capacidade de observação do criador de Inocência, vale destacar o diálogo entre um dos seus personagens, o capataz da fazenda do Vau, chamado senhor Pereira, que no romance tornou-se, como dissemos acima, o pai da personagem principal do romance, a Inocência, com o curandeiro Cirino:

“Quem se queixava de engasgues era o capataz de uma fazenda chamada do Vau, distante umas boas cinqüenta léguas.

- Sr. doutor, disse o enfermo, a minha vida é um continuo lidar de sofrimentos. Estou com este mal vai fazer cinco anos no São João, por sinal que me veio com uma grande dor do estômbago. Vezes há que não posso engolir nada, sem, beber muitos golos de água, de maneira que me encharco todo e fico que mal me mexo de um lugar para outro.

- E a dor, perguntou Cirino, ainda a sentes?

- Toda a vida, o que me aflege mais é que há comidas então que não me passam a goela...É um fastio dos meus pecados, boto uns pedacinhos no bucho e parece-me que dentro tenho um bolo que me está a subir e descer pela garganta.”

Nós que lidamos com a Doença de Chagas sabemos que estas queixas são, praticamente, as mesmas apresentadas pelos doentes portadores de megaesôfago chagásico.

Meu colega e amigo Dr. Ulisses Meneghelli, Prof. da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto foi quem, pela primeira vez, chamou a atenção para esta curiosidade, em publicação na Revista Goiana de Medicina em 1992.

Este diálogo, ao lado de mostrar a sensibilidade do autor em captar detalhes que poderiam passar despercebidos ou pouco valorizados para um leigo em medicina, como ele era, deixou a nossa comunidade científica ligada aos estudos da doença de Chagas, absolutamente perplexa.

Sabem por que? A doença de Chagas foi descoberta, cientificamente, em 1909 e este diálogo foi perpetrado em 1867; o mais interessante: hoje sabemos que a região onde Taunay encontrou este personagem do seu romance, era zona endêmica da Doença de Chagas.