DEIXE-ME CONTAR ENQUANTO ME LEMBRO
VIAGEM ALFENAS / SÃO PAULO
Abril de 1957. Esta data eu nunca
poderia esquecer, pois ficou marcada, de maneira definitiva, em minha vida.
Separou duas fases: a procura de novos caminhos e o sepultamento de um passado
marcado pelas dificuldades existenciais, porém, cheio de encantamento e boas
recordações.
Sr. Zequita Barbosa, meu carinhoso
amigo de todas as horas, embasado na amizade pessoal com a direção do Banco
Nacional, conseguiu minha transferência para Curitiba, estuário final das
minhas esperanças.
Na semana que antecedeu à viagem,
ouvi as opiniões de todos os colegas mais "viajados", Heitor Taylor
do Prado, Fernando Martiniano, Boanerges e Geraldo Olinto Pereira.
Sentia, naqueles conselhos, uma
preocupação muito grande para com o menino que se aventurava para tão distante,
sem nunca ter, ao menos, saído de Alfenas, a não ser para algumas cidades da
redondeza, num raio de, no máximo, 50 quilômetros.
São Paulo era aterradora, havia
desconfiança e o medo do desconhecido; Heitor conversou com o Sr. Carin,
proprietário da jardineira que estava inaugurando a linha direta Alfenas/São
Paulo, pedindo que ele cuidasse de mim na chegada em São Paulo, pois, sendo
menor de idade, teria dificuldades até
para arranjar hotel para dormir.
Fernando ensinou-me várias coisas
sobre viagens, inclusive a maneira de se identificar um táxi, caso fosse
necessário.
- Todo táxi tem a chapa branca,
ensinou-me ele, basta você levantar o braço e gritar: "taxi", que ele
para; não se esquecer de combinar o preço antes ... Este conselho, infelizmente, não foi
entendido como devia, pois, embora não tendo precisado de um, procurei
identificá-los no trânsito infernal de São Paulo e não consegui; só algum tempo
depois foi que descobri que estava à procura de um carro de “faixa branca
oficial”, os usados pelas autoridades.
A viagem foi muito cansativa,
mais de 12 horas, parando em quase toda cidade e lugarejo do trajeto; não fazia
mal, a emoção e a ansiedade pela procura do desconhecido conseguiram suplantar
o desgaste físico.
Vez por outra, atendendo as
recomendações recebidas, Sr. Carin vinha consultar-me se estava precisando de
alguma coisa; sentia plena confiança com aquelas demonstrações de carinho.
Dificilmente
descia da jardineira, aproveitava as paradas para saborear a "matula"
que Lucy, minha irmã, havia preparado (farofa de frango, bolo de fubá, doce de
leite e sanduíche de mortadela).
Quando chegamos a São
Paulo estava começando a escurecer, abri a janela e não tirei os olhos do
trânsito absurdamente movimentado; eu tinha informações a este respeito, porém,
confesso que a realidade ultrapassou a expectativa.
Inacreditável ! ...
A Estação Rodoviária funcionava na
esquina da Avenida São João com a Avenida Ipiranga, desci da jardineira com
total insegurança, parecia um conto de fadas ou um sonho. Nunca havia visto
tamanha movimentação de gente e veículos; tive vontade de voltar para dentro do
carro e aguardar o retorno para Alfenas. No entanto precisava continuar, não
poderia decepcionar meus amigos, meus
parentes e fundamentalmente a mim
mesmo.
Peguei minhas duas malas e não as
soltei mais, parecia que haviam sido coladas em minhas mãos (cuidado com os
ladrões na rodoviária... eles conhecem os marinheiros de primeira viagem... não
converse de maneira alguma com estranhos... etc.); estas recomendações agitavam
minha cabeça de maneira desproporcional
aos "perigos"; parecia que
todos ao meu redor queriam roubar-me ou
coisa parecida.
Sr. Carin indicou-me o hotel onde
deveria pousar naquela noite, bem em frente à Rodoviária, no outro lado da rua.
- Vá para lá, aguarde-me até eu conseguir
fazer todas as coisas necessárias aqui com a jardineira.
Com as duas malas presas às mãos
comecei a longa caminhada no sentido de tentar atravessar a Avenida Ipiranga; nesta
hora começou uma chuva fina e fria, precedida de um vento suave no início e
que, à medida que o tempo ia passando, tornou-se mais agressivo.
Abri o guarda-chuva, segurando-o com
a mão esquerda, fazendo com isto um enorme sacrifício para colocá-lo por sobre
a cabeça, pois, havia a necessidade de, também, alçar a mala deste lado.
Tentei, seguramente, durante uns
vinte minutos sair da calçada; quando colocava o pé no asfalto vinha um carro e
outro e outro; parecia, num determinado instante, que havia diminuído o número
de carros; nova tentativa e debalde; provavelmente, a dificuldade era
alimentada pela insegurança, aliada ao fato de ter que me movimentar com as
duas malas e o guarda-chuva aberto.
Não sei se
a água da chuva me daria um banho maior do que o provocado pelos pneus dos carros
ao passarem pelas reentrâncias do asfalto; não havia alternativa, tinha que
atravessar a rua; enchi-me de coragem e, correndo, consegui chegar até a
"ilha" da avenida. Metade do percurso havia sido vencido.
A chuva aumentou de intensidade e o
vento agora açoitava de maneira impiedosa; não demorou nada e o
guarda-chuva "virou do
avesso", dando-me, com toda certeza,
uma aparência grotesca: às voltas
com as duas malas que estavam ficando encharcadas e, por serem de papelão,
começaram a se desmanchar a olhos vistos. Agora os carros passavam dos dois
lados e, por consequência, jogavam água em dobro.
Novamente enchi-me de coragem e
atravessei a outra metade da rua!
Chegando ao Hotel Rodeio (será que
era este o nome?), identifiquei-me como sendo amigo do Sr.Carin, o que não
adiantou muito, pois, segundo o porteiro, esta pessoa não era conhecida.
- Mas como, você não conhece o Sr.
Carin, proprietário da jardineira de
Alfenas?
- Pode ser que até o conheça,
porém o nome não me é familiar.
- Ele me mandou vir hospedar
neste hotel, daqui a pouco ele passa aqui para assinar minha ficha.
- Você pode aguardar aí, porém,
sem assinatura dele, não podemos hospedá-lo, por você ser menor de idade.
Os minutos passavam com grande
velocidade, minha ansiedade aumentava cada vez mais. E se ele não vier? O que
farei para dormir?
Esperei um tempo razoável e como
Sr. Carin não aparecia, resolvi tomar outra providência; voltar à rodoviária à
sua procura, antes que fosse muito
tarde.
- Deixe as malas aqui, nós vigiamos
para você.
Os conselhos recebidos ainda
estavam muito recentes para serem esquecidos; como poderia confiar em pessoas
que nunca vira antes?
Peguei as duas malas e voltei à
rodoviária, repetindo neste trajeto todas as dificuldades anteriores, com a
única diferença de que agora resolvi assumir, de uma vez por todas, a chuva e
não abrir o guarda-chuva. Grande foi o meu espanto ao chegar
ao guichê da estação e deparar com o Sr. Carin no maior "papo" com
outras pessoas, aparentemente esquecido da minha presença do outro lado da rua,
aguardando-o com ansiedade.
- Vamos lá, garoto! Disse ele ao ver-me
O retorno, agora guiado por quem
conhece as "manhas" do trânsito, foi muito mais fácil.
Registrei-me no hotel, deram-me um
apartamento de frente para a Avenida
Ipiranga; passei a noite toda debruçado na janela, incrédulo com a
movimentação que via. No outro dia segui para Curitiba, porém, esta é outra
história ...