MINHAS CRÔNICAS

quarta-feira, 26 de janeiro de 2011

BATISTÃO E O LADRÃO DA MADRUGADA.

Naquele dia Batistão já chegou um “pouco alterado” em casa; como aconteciam todos os sábados, encontrara alguns amigos de vizinhança, costumeiros parceiros de tertúlias no buteco-armazém do lugarejo e bebera todas as que tinha direito; aliás, todos beberam todas.
Narandinha, como sempre, o aguardava com ansiedade, não com aquela emoção própria dos amantes que se preparam para receber o parceiro da noite; ela sabia que a demora teria uma razão, que aliás, ela já antevia pelos antecedentes.

Há muito já havia terminado o “Jornal Nacional”, juntamente com os três filhos já havia recolhido ao aconchego dos cobertores; a chuva miúda e fria, acompanhada pelo barulho suave do vento nos galhos das árvores ao redor da casa, propiciava um ambiente acolhedor e próprio para o sono.

Antes de se deitar, deu mais uma olhada no espelho da penteadeira e, por incrível que pareça, desejou que o Batistão estivesse ali para se enrolarem debaixo dos cobertores e se aquecessem mutuamente; alguns minutos depois de conciliar o sono, foi despertada por fortes pancadas na porta da sala, seguidas por gritos impositivos:

- Abre Muié, estou molhado igual a um pinto sem galinha pra cobrir

- Abre, se não eu arrombo a porta!

De um salto, Narandinha já estava abrindo a porta e, ao invés de receber o beijo que ela poderia almejar, levou um empurrão que quase a jogou de costas.

- Que demora! Vê como estou molhado!

A figura era patética para não dizer hilariante, Batistão era só barro da cabeça aos pés, roupas completamente encharcadas; seus passos eram semelhantes aos de um portador de lesão ao nível do bulbo cerebral, ou, para não ser tão cruel, ao de um portador de labirintite: cambaleava para todos os lados, suas palavras eram desconexas e suas tentativas de ação eram impedidas pelo descontrole completo dos movimentos.

Com muito custo Narandinha conseguiu convencê-lo a tomar um banho para poder se deitar, o desejo dele era ir para cama do jeito que estava.

- Água fria? Você quer que eu pegue uma pneumonia galopante (??)

Narandinha, se houvesse um jeito de adivinhar os seus pensamentos, ainda nutria uma leve esperança de, após o banho, o efeito do álcool diminuísse um pouco e o ambiente propicio, desse oportunidade de se enrolarem nos cobertores.

Ledo engano, na tentativa de ajudá-lo, acabou tomando outro banho e muitas quedas no cubículo do chuveiro; carregá-lo até a cama foi um dos episódios difíceis da noite. Batistão era corpulento, alto, musculatura avantajada, contrastando com a Narandinha que era baixa e magricela.

Enrolou-o em uma toalha e pediu socorro às duas filhas mais velhas, Xilibene e Maribete; as três, após um esforço inaudito, conseguiram arrastar o Batistão para cima da cama.

Quando Narandinha voltou ao quarto, após tirar a roupa que estava molhada e vestir uma “combinação”, encontrou o Batistão nos braços do Morfeu, curtindo um sono profundo; apagou a luz e deitou na beirada da cama que lhe restava e, também, dormiu sonhando, provavelmente, com a irrealização de mais um desejo.

Algumas horas depois, um barulho despertou Narandinha; no inicio pareceu-lhe que um galho de árvore caíra sobre a casa; a persistência do barulho, agora mais perto do quarto, levou-a a se preocupar e, na medida em que o barulho aumentava, agora localizado em vários pontos do forro da casa, aumentava-lhe o pavor e a insegurança.

- Batistão, Batistão, ô Batista!

- Acorda homem de Deus, acorda homem!

Seus apelos eram seguidos por sacudidas cada vez mais violentas no corpo do companheiro, naquelas alturas curtindo a 3ª. fase da bebedeira.

Xilibene,.... corre para cá!

O aviso chegara tarde porque os gritos de Narandinha para tentar desperta o Batistão, aliados ao barulho localizado no forro, já havia empurrado as duas filhas e mais o menino, conhecido como Baguncinha, para o quarto do casal.

- Tá louca mulher? Vou te dar uma “currigenda” para aprender a respeitar meu sono!

- Batistão, tem gente em cima da casa, escuta para você ver!

Batistão sentou na cama e então percebeu que alguma coisa estranha, realmente, estava acontecendo; Narandinha, Xilibene, Maribete e Baguncinha já estavam debaixo da cama, só com as cabeças para o lado de fora, todos chorando em coro.

- Tem ladrão aqui em casa, Batistão!

Ainda meio atordoado, Batistão, de repente recebeu uma energia que só a liberação instantânea de adrenalina é capaz de produzir, de um salto pegou a cartucheira que estava dependurada detrás da porta; não estou convencido se foi a adrenalina ou o medo que o despertou completamente, permitindo-lhe que se movimentasse com inusitado desembaraço no interior do quarto, às escuras, sem tropeçar em nenhum objeto.

O silêncio foi quebrado por um barulho que a emoção reprimida, multiplicou de intensidade, parecia que vários corpos se movimentavam, ao mesmo tempo, bem no forro do quarto; num ato de coragem, Batistão arrebentou a janela no peito e caiu no terreiro,misturando-se à lama, rolando com a cartucheira na mão.

Narandinha ao perceber a fuga do companheiro, descobriu que ficara, na companhia dos filhos, à mercê do ladrão, acumulou toda a energia que lhe restava e deu um grito que ecoou na madrugada.

- Batistão! e nóis?

- Fica velhaca mulher, foi a resposta que ouviu!

Neste momento, um som estridente e agudo encheu o quarto, agora vazio, Narandinha e os filhos já haviam mergulhado no vão da janela e se contorciam em dores, provocada pela queda.

- Miau!

Um casal de gatos, a fêmea em cio, despencou do forro do quarto, aproveitou a janela aberta e pulou por cima de todos os fujões.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

O FASCINIO DOS PRODUTOS DE BELEZA

Há cerca de três anos, Marília e eu andávamos, descuidadamente, pelas ruas de Londres, quando deparamos com uma loja na Bond Street que chamou a nossa (da Marília principalmente) atenção: era uma loja da Rimmel, marca de produtos cosméticos tão conhecida do público feminino; não preciso dizer que minha cara metade fez a festa!
Semana passada deparei-me com um artigo no jornal “London Review of Books” que me levou de volta àquela nossa viagem; a articulista (Bee Wilson) fez uma resenha do livro “A history of the global beauty industry – Geoffrey Jones - História da globalização da indústria da beleza”, que tomo a liberdade de resumir para meus leitores.
Em 1916, de acordo com o autor do citado livro, apenas 1/5 da população norteamericana usava algum produto cosmético ou de toalete, isto quer dizer que 4/5 dos americanos não usavam pasta de dente, xampu, desodorante, batom ou algum tipo de gel para os cabelos; em 1914 o faturamento da indústria de produtos de beleza (excluindo o sabão de banho) era, ao preço de hoje, 380 milhões de dólares; em 2008, apenas uma indústria (Proctor & Gamble) faturou 26 bilhões de dólares e o total de gastos com fragrâncias, cosméticos e produtos de toalete no mundo, gira ao redor de 330 bilhões de dólares ao ano.
Estas cifras falam por si mesmas, a indústria de cosméticos, a partir do século 20 vem, cada vez mais, investindo na propaganda para convencer as mulheres, principalmente as do mundo ocidental e, também os homens, sobre a necessidade de se usar, diariamente, cremes e poções para diminuir o suor, para colorir os lábios e amaciar as mãos e perfumar-se.
O perfume foi o primeiro setor do “mercado da beleza” a se tornar uma indústria global, segundo consta, pelas mãos do Italiano Johann Farina que em 1709, produziu a Água de Colônia (homenagem à cidade de Colônia, Alemanha, onde ele morava) que, diga-se de passagem, não era, originariamente, um produto de beleza, mas sim para tratamento de dor no estômago e tratamento de verminoses.
Tudo mudou quando Eugène Rimmel abriu no ano de 1834 uma loja de perfumaria na charmosa Bond Street em Londres, conhecida até os dias de hoje como “House of Rimmel- Casa de Rimmel”; a marca Rimmel é hoje uma das preferidas pela juventude Londrina, principalmente após passar a contar com a maravilhosa “top model” Kate Moss como sua divulgadora exclusiva.
Rimmel com a idade de 24 anos já era considerado um visionário no mundo dos cosméticos, descobrira o que fazer para vender seus produtos para todo o mundo; primeiramente ele viu que a embalagem (caixa, desenho das letras e figuras) do produto era tão ou mais importante do que o próprio produto; foi o primeiro a produzir catálogos dos seus produtos e a propagá-los nos programas dos teatros e finalmente, ele vendeu a idéia de que beleza deveria estar sempre ligada a duas cidades, Londres e Paris, “quartel das perfumarias do mundo“, como ele anunciava.
Outro grande triunfo de Rimmel foi conseguir divulgar a idéia de que seus produtos eram os preferidos por muitas famílias reais da Europa; seus perfumes eram “O perfume da Realeza”; foi ele, também, quem criou a primeira máscara, não tóxica, para aumentar o volume dos cílios e, com isto, realçando o olhar e mesmo a feição dos rostos femininos; esta invenção tornou-se tão popular que hoje é confundida, em muitos países, com o próprio nome da marca Rimmel, semelhantemente ao que ocorre com o nome da lâmina de barbear da marca Gilete.
Apesar da grande divulgação dos produtos cosméticos, assinale-se que na época da 1ª. guerra mundial havia resistência para o uso de maquiagem coloridas, pois os rostos coloridos eram associados aos das prostitutas, porém, por ocasião da 2ª guerra o batom colorido tornou-se de uso universal; em 1960, cerca de 90% das garotas americanas com idade entre 14 e 17 anos usavam batons.
Muito cedo Rimmel descobriu que os consumidores, principalmente as consumidoras, não gostam de produtos baratos e nem tão pouco dos acessíveis para toda a população; a venda do “Chanel número 5” despencou quando passou a ser encontrado em farmácias nos EEUU, recuperou seu prestigio (vendas) quando voltou a ser vendido em casas especializadas em perfumes; baseado nestas evidências entende-se por que alguém seja capaz de gastar 500 dólares por um pequeno pote de creme “Clé de Peau Beauté”, considerado o mais caro do mundo e de efeito tão efêmero.
Quando escrevia este texto resolvi folhear a coleção de revistas e jornais do começo do século 20 que possuo em meus arquivos e deparei- me com algo inusitado: em 1913 a revista francesa “L´Illustration” em edição recheada de discussões sobre a guerra eminente, estampa, para aproveitar o espaço da mídia, uma bela propaganda de perfumes “Bois-Charmant”; em maio de 1944, um mês antes do desembarque das tropas aliadas na Normandia, a revista Inglesa “The Sphere” trazia, com destaque na sua capa, propaganda de produtos cosméticos.
Em abril de 1934 o jornal mais importante do triângulo mineiro, “O Araguari”, propagava, em página inteira, a “Casa Annibal” daquela cidade, que vendia, dentre outras coisas (produtos agropecuários, principalmente), artigos de perfumaria, aliás, com bastante destaque para este item.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

TESTEMUNHO DE UM CIRURGIÃO – Encontro com Dom Fernando Gomes dos Santos.

Neste ano que findou o ex-arcebispo da Arquidiocese de Goiânia, Dom Fernando Gomes dos Santos completaria, se vivo fosse, 100 anos de idade.
No desempenho da minha profissão de médico tenho tido a oportunidade de me aproximar de muitas pessoas da vida cultural, econômica, religiosa, política e social de Goiás, Dom Fernando foi uma destas personalidades; um momento de dificuldade existencial motivou este evento.
Lembro-me como se fosse hoje do nosso encontro, era final do mês de maio do ano de 1985, recebi telefonema da enfermeira e minha colega no Hospital das Clínicas da Fac. de Medicina da UFG, Maria Aparecida Veloso, solicitando-me que fosse ao Hospital Santa Helena examinar Dom Fernando que ali estava internado.
Conhecia-o pelas suas ações pastorais e sociais, porém, nunca havia tido a oportunidade de me aproximar daquele homem corajoso nas suas posições e ações e, sobretudo, com uma áurea de defensor dos mais fracos e indefesos; de alguma maneira, que não consigo explicitar, nasceu, naquele primeiro encontro, uma grande empatia entre médico-paciente, que foi fundamental para a continuidade do tratamento que lhe propus.
Na minha vida de estudante em Curitiba nos idos anos de 1957-64 participei, como quase toda a juventude estudantil daquela época, das lutas políticas, com forte militância na esquerda, principalmente nos anos que antecederam à revolução de 1964; tínhamos grande afinidade com uma parcela importante da igreja católica, principalmente depois do Concilio Ecumênico Vaticano II, convocado pelo Papa João XXIII; Dom Fernando viveu, como sabemos, intensamente os ensinamentos emanados daquela encíclica Papal.
Pena, para mim, que aquela ocasião não era propicia para discutirmos estes assuntos e tentarmos fazer uma interface entre as suas posições e as minhas, na época, um pouco descrente com a mãe Igreja Católica; era o tempo em que comecei a “ouvir” Alceu de Amoroso Lima na procura de ajuda para vencer minhas dificuldades espirituais.
Foram dias de grande tensão, pois sabia, pelo diagnóstico da sua doença, que estava diante de um quadro clínico desafiador; nosso primeiro diálogo define toda sua personalidade:
- O senhor terá que se submeter a uma intervenção cirúrgica.
- Por quê?
- O senhor está com uma lesão no intestino que necessita ser retirada.
- Os senhores médicos julgam que tudo podem, até mesmo agredir o corpo humano com o bisturi; no entanto, nada sabem. Não tenho a menor preocupação em saber se trata de uma lesão maligna ou benigna; só quero saber do que vou ser operado. O resultado final pertence a Deus!
Alguns dias após este diálogo, infelizmente, estive presente nas exéquias de Dom Fernando; justamente 72 horas após a intervenção cirúrgica, ele que estava apresentando evolução pós-operatória sem nenhuma intercorrência (deambulando e se alimentando), fez uma grave arritmia de miocárdio, que já se apresentava com quadro de arteriosclerose, seguida de parada cardíaca.
Durante as mais de quatro horas em que permaneci ao seu lado na câmara mortuária, no interior da Catedral Metropolitana de Goiânia ouvindo os cânticos, orações e, sobretudo, os sermões, senti emoção ao presenciar tamanha demonstração de carinho por parte da população de Goiânia e lamentei o fato de que nosso “encontro” tenha acontecido somente naquela oportunidade, em momento de tanta dificuldade para ele.
Aprendi com a vivência na minha profissão a assumir uma postura de humildade perante o corpo humano, deixando sempre para o Criador a palavra final; daquela vez não foi diferente: quando os acontecimentos médicos encaminhavam para um desenlace feliz, surge a fatalidade, mostrando as nossas reais limitações.
Hoje, 25 anos depois daquela semana que deixou marcas indeléveis na minha vida profissional, continuo envolvido com o pensamento de Alceu de Amoroso Lima na procura de minha afirmação nos ensinamentos da Igreja Católica; costumo repetir o que Amoroso Lima disse para sua filha, madre Maria Teresa, abadessa do Mosteiro de Santa Maria, em uma das suas cartas que, diariamente e por mais de 30 anos, ele lhe enviava:
- Eu creio e isto me basta!
A crença, a fé, não pressupõe, obrigatoriamente, a presença da razão; por não podermos demonstrar a existência de Deus por meios de fácil entendimento direto da razão não prova a sua inexistência. Muitas manifestações sobre o mundo material, tidas como verdadeiras, podem não ser racionais; para ficarmos em um exemplo, gostaria de lembrar que boa parte do que os físicos nucleares dizem é verdadeiro e, principalmente, pode ser comprovado, porém, não achamos, de sã consciência, razoável que uma partícula nuclear possa passar por dois orifícios diferentes ao mesmo tempo.
Como conclusão, podemos afirmar que a ciência negocia com certos artigos de fé, como qualquer outra forma de conhecimento; o escritor Richard Dawkins, no seu livro “Deus, um delírio”, declara que a ciência está livre do principal vicio da religião, que é a fé, esquecendo-se ele que, sustentar que na obra de um cientista não existem pressupostos que não sejam baseados em evidência é, seguramente, o reflexo de uma fé cega, aquela que não sente o tremor da duvida.
A fé não pode ser tida como um saber, afirma Hannah Arendt; bem o contrário, resulta de um engajamento que opera para além das categorias da razão, ou contra a própria razão; quando Deus lhe pede que sacrifique o filho, Abrãao conserva sua fé em Deus, apesar do absurdo e da crueldade dessa demanda.

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

UM PERSONAGEM DE MARK TWAIN VIVEU EM GASPAR LOPES

Acho que o nome Mark Twain não precisaria de apresentação para a maioria dos meus leitores, pois, como sabemos, trata-se de um dos maiores escritores norteamericanos, seu romance publicado em 1884, com edição em português, intitulado “As aventuras de Huckleberry Finn” o identificou como um dos grandes humoristas da literatura mundial, e, ao lado de ”Moby Dick” escrito por Herman Melville, tornou-se referência para todos os romancistas americanos.
Seria exagero afirmar que Mark Twain não sentia muito apreço pelos homens, porém, sua obra, ao lado de destilar humor, às vezes explícito, mais das vezes sutil, é carregada de certo pessimismo pelas ações dos homens do seu tempo e, provavelmente, pelo nosso contemporâneo.
Neste livro que citamos acima, há uma página onde Twain narra um duelo entre dois homens e as suas conseqüências; o realismo da descrição leva o leitor a ter a sensação de estar assistindo, ao vivo, os lances dos protagonistas.
Antes de transcrever alguns trechos desta narrativa, preciso explicar a razão do título deste texto e após lerem o meu relato, certifiquem-se se não tenho razão em achar que o escritor Mark Twain se “baseou” no meu conterrâneo João Segundo, para escrever o capitulo XX daquele seu livro.
Gaspar Lopes, onde nasci e vivi a maior parte da minha infância, é um pequeno lugarejo escondido entre as montanhas de Minas Gerais; seus habitantes viviam quase que exclusivamente em função da movimentação da Rede Mineira de Viação; sua rua principal (acho um exagero esta denominação, pois, eram tão poucas as suas ruas, eram tão poucos os seus habitantes...), onde se localizava o seu comércio, era o escoadouro da nossa movimentação.
João Segundo, um dos seus habitantes, era um homem de estatura baixa, porém bastante forte e, principalmente, valente; trabalhava na Rede Mineira de Viação e morava com a sua família em local um pouco afastado do lugarejo; embora fosse um homem trabalhador e cumpridor dos seus deveres, tinha um grave defeito: bebia demais nos finais de semana.
O problema não era somente a bebida que incomodava a população, mas sim suas impertinências; não havia um sábado ou domingo que não houvesse uma briga provocada por João Segundo; muita gente dizia que nestas oportunidades “descia-lhe um espírito mau”, bastava alguém olhar “atravessado” para começar uma discussão e consequente briga.
Tive oportunidade de ver muitas destas brigas (na verdade, a criançada ficava torcendo para que isto acontecesse), pois, tendo em conta o fato de que ele não usava nenhuma arma a não ser a força dos seus punhos, não havia perigo para os assistentes.
Um dia, o céu entrou de nublar-se na sua vida; de tanto insultar um homem mais velho, com palavras de baixo calão, proferidas, inicialmente na via publica, depois, na frente da sua casa, apesar dos apelos que lhe eram dirigidos, não só pela família como por parte de muitas pessoas que se aproximaram dele, para que parasse com as agressões, João segundo recebeu um tiro proferido pelo homem mais velho.
Não vou entrar em detalhes sobre a sequência destes acontecimentos, pois, não pretendo que meus leitores julguem que estou usando um artifício muito utilizado pelos escritores: A ficção imita a realidade na narrativa ficcional; peço-lhes, apenas, que leiam comigo o resumo do que escreveu Mark Twain:
“Um bêbado, Boggs, tinha a mania de insultar e ameaçar as pessoas; um dia ele foi desafiar o comerciante do vilarejo. Boggs parou o cavalo na frente da loja e gritou – Pode ir saindo daí, Sherburn! Sai daí e vem para a rua enfrentar um homem. É você que eu vim pegar, seu cachorro, e dessa vez você não escapa. Continuou xingando Sherburn de tudo quanto é nome que se lembrava, e foi juntando gente na rua para assistir, rindo e achando graça naquilo tudo. Depois de algum tempo, um homem aparentando 55 anos de idade, saiu da loja e a multidão foi abrindo ala para ele passar. Ele falou ao Boggs, bem devagar e com muita calma: - Já estou cansado desta história, Boggs, mas vou deixar você falar o quiser por mais uma hora, nem mais um minuto, entendeu? Depois disto, pode enfiar onde você quiser que vou acabar com você.
Boggs, por seu lado, continuou insultando o homem de 55 anos de idade, as pessoas já não davam risadas, alguns tentam acalmá-lo, lembrando-lhe que faltavam apenas 15 minutos para a hora estipulada; nada o convence, continuava xingando o homem da loja, buscaram sua filha para convencê-lo, inútil.
Então, ouviu-se uma voz que grita o nome de Boggs, todos se viram e lá estava o homem de 55 anos de idade, no meio da rua com uma pistola na mão, todos correm e a pistola é detonada no peito do beberrão”.
O final do episódio não cabe aqui neste espaço, aconselho meus leitores a lerem o livro, posso, no entanto, afirmar que o homem de 55 anos de idade, sofreu uma tentativa de linchamento pela multidão que, de alguma maneira, incentivava, até minutos atrás, as diabruras de Boggs; foi “salvo” pela sua coragem de enfrentar a multidão, chamando-a de “bando de covardes”, repetindo as palavras que Twain colocava na sua boca e que eram a síntese da própria vida do autor do livro – Ele, Mark Twain, sempre esteve pronto para morrer, só assim entendemos seu humor; conhecia e podia distinguir os covardes na meio da massa humana.