domingo, 16 de fevereiro de 2014
Sabe-se que Freud foi, desde a infância, um leitor dos clássicos da
literatura; quando digo infância não estou exagerando pois, aos nove anos de idade,
ele ingressou no “Gymnasium” um dos mais famosos colégios de Viena, cujo
currículo tinha uma característica que o diferenciava dos demais congêneres: -
respirava-se, nas suas salas de aulas, a atmosfera humanística.
Além
de serem ministradas as matérias ensinadas nas outras escolas, havia no
currículo seis anos para o estudo do grego, oito anos para o latim, além de
estudos específicos sobre a história antiga e a literatura, tanta a clássica
como a contemporânea. Freud foi o primeiro aluno da sua classe durante todo o
curso!
Este
seu interesse, precoce, pela literatura, facilitou-lhe, de alguma maneira, sua
incursão no mundo da mente humana; selecionei um episódio, dos muitos a que
tive acesso, para confirmar esta minha assertiva: Sua paixão pela obra de
Cervantes, especialmente a clássica “Dom Quixote de La Mancha”, a qual ele leu
várias vezes, tendo, inclusive, aprendido o idioma espanhol para entender melhor o “espírito” da
obra.
O
episódio a que desejo me referir encontrei-o na carta que Freud enviou a sua
noiva Martha (fevereiro de 1884), onde ele tenta explicar-lhe seu
relacionamento com um jovem de nome Silberstein, seu grande amigo de juventude;
lá pelas tantas, ele diz a Martha que os dois se apelidaram, mutuamente, de
Berganza e Cipión, nomes tirados, segundo ele,
da obra de Cervantes, quando ambos estudavam espanhol.
A escritora
Marialzira Perestrello, no seu livro “A formação cultural de Freud, 1996”,
despertou-me a curiosidade a respeito do assunto ao afirmar que estes nomes
foram dados por Cervantes a dois cães que conversavam entre si, no conto
“Coloquio de los Perros”.
Encontrei,
como se encontra um tesouro, o livro “Cervantes - Novelas Ejemplares,
Argentina, 1962”, em um sebo sediado na internet; dos seis contos que o compõem
dois fazem parte do episódio a que me referi acima: El Casamiento Engañoso e El
Coloquio de los Perros; conto o resumo de ambos e espero que meus leitores se
surpreendam com algumas conclusões a que chegaram alguns dos biógrafos de
Freud.
No
primeiro conto (Casamiento Engañoso) o narrador (Peralta) conta ao interlocutor
(Sr. Alferes), uma história inacreditável: quando estava internado em um
hospital em Valadolid, Espanha, dois cachorros (Berganza e Cipion) que estavam
deitados debaixo da sua cama, conversavam entre si durante toda a noite.
Claro
que o Sr. Alferes não acreditou na
história, porém Peralta diz ter provas do que estava dizendo: ”tomei nota de
todo o diálogo” e, ao dizer isto “saco
um cartapacio y lo puso en las manos del licenciado – pegou um maço de papel e
colocou nas mãos do licenciado” e este leu o que corresponde ao segundo conto
(El colóquio de los perros).
Este
“diálogo” dos cães vem sendo discutido por muitos que se interessam pela obra
de Freud e principalmente procuram entender o “leit motiv” para ele enveredar
para a nova ciência que ele estava criando – a psicanálise.
Ao se
ler este conto de Cervantes, que viveu de 1547 a 1616, somos obrigados a intuir
que Freud, ao iniciar a sua técnica de “ouvir o paciente no divã do seu consultório”,
deve ter se lembrado deste colóquio
descrito de maneira magistral por Cervantes; é interessante observar que um dos
cães da história (Berganza) conta sua vida para o outro (Cipion) e este ouve
com paciência, com poucas manifestações ou interrupções, como se fora um
analista.
Quase
que no inicio do colóquio Cipion diz a Berganza : “ Fale até que amanheça que
eu te escutarei de muita boa vontade, sem te interromper a não ser que sinta
necessidade de fazê-lo”, ao que Berganza respondeu: “Pois se posso falar com
esta segurança, escuta-me e se você se cansar de ouvir o que estou dizendo, ou
me repreenda ou mande que eu me cale”.
Em um
determinado trecho da fala de Berganza este começa a divagar sobre vários
assuntos e é então chamado à atenção pelo Cipion “Basta Berganza, volte para a
senda da história e caminhe por ai”; de vez em quando a narrativa de Berganza
ficava monótona e repetitiva, então Cipion chamava-lhe a atenção “Basta, vá em
frente, Berganza, porque já entendi”.
Um
analista ficaria feliz de ouvir este trecho da fala de Berganza: “Sempre quis falar, para dizer as coisas que estavam depositadas na minha memória e
por estarem ali há muito tempo, acabava as esquecendo. Agora que estou com este
don divino de poder falar, vou aproveitar o mais que puder, falarei de tudo de
que me recordo, mesmo que seja um pouco confuso”
Conte-me,
diz Cipion “tudo o que recordas, procure
não pular trechos, na verdade, conte o que quiseres e como quiseres” ao que
respondeu Berganza “ agora me vem à memória o que haveria de ter lhe dito no
principio da nossa discussão, não só fico maravilhado com o que falo, como
também fico espantado pelo que desejo falar”.
A
pessoa pode nascer gênio, porém, a vida, os estudos e a cultura, moldam sua
trajetória, acho que posso, modestamente, concordar com o que disse a Profa.
Marialzira Perestrello, autora do livro
que citei acima: Freud, com sua intuição, seguiu mais os escritores do que a
medicina organicista. Cervantes foi-lhe mais útil que a anatomia cerebral.
A MODERNIDADE DA CIDADE DE GOIÁS DO INCIO DO SÉCULO 20
Li,
recentemente, os originais do livro que a escritora Elizabeth Fleury,
Presidente da Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, irá lançar, muito em breve, com o título, ainda
provisório, “Rosarita Fleury, minha mãe”.
Claro que
não tenho permissão para divulgar detalhes do livro, porém, devo dizer que
fiquei entusiasmado e, principalmente
emocionado com alguns dos seus trechos, principalmente quando é contada a vida
pacata dos habitantes da cidade de Goiás no começo do século passado.
As narradoras (Beth e sua
mãe) deixaram-me embevecido pela
descrição que fizeram de episódios culturais e políticos daquela época e
que moldaram a vida de todos os goianos no presente.
Ao
ler este fascinante livro, veio-me a lembrança um trecho de outro livro que
li há algum tempo “A Vida Literária no Brasil 1900, Brtito
Broca” e que me chamou a atenção; conta o autor que o nosso querido escritor
Hugo de Carvalho Ramos, passando férias na bucólica cidade de Goiás, escreveu à
sua irmã em 24 de maio de 1911,
contando-lhe as novidades e, lá pelas tantas, ele diz, textualmente “Este é o
modo de viver sensato, natural na opinião de todos, de um rapaz desocupado ou
de um estudante em férias: beber qualquer droga inferior que seja no Chat Noir”.
Fazendo
uma interface com os costumes da cidade de Goiás naquela época em que foi
escrita a carta de Hugo de Carvalho Ramos, conforme são desenhados pela
Elizabeth e por Da. Rosarita e, diga-se de passagem, por muitos outros
cronistas que ali viveram naquela época,
obrigou-me a fazer uma reflexão sobre a possível existência do citado
Chat Noir, naqueles rincões do estado de
Goiás, naquela época da carta de Hugo.
Para
que os meus leitores entendam esta minha surpresa, passo as lhes explicar a origem
deste nome, para tanto me recorro a alguns livros da minha biblioteca de onde
faremos um ligeiro passeio pelos meandros da história dos costumes e da cultura
dos franceses.
Leio
no livro “Paris Boêmia, Jerrold Seigel” que um cidadão de nome Goudeau ,
nascido em uma cidade do interior da
França no ano de 1850, viaja para Paris
com a idade de 17 anos na busca de uma carreira literária e, um ano após sua
chegada, lança um empreendimento que
viria mudar a vida social e cultural dos parisienses: uma casa mista de
café, literatura e teatro de nome
Hydropathes . Rapidamente surgiram outros “cafés” com estas mesmas
características, sendo o mais popular e duradouro deles, o Chat Noir (gato
preto), localizado em Montmartre.
Estes
Cafés se multiplicaram durante a fase em que se esvanecia o “Fin de siécle”
para dar lugar a “Belle Époque”, época de tensões provocadas pelas especulações ousadas de Nietzsche, da conscientização da existência
do inconsciente proposta por Freud; época do surgimento dos boêmios que
buscavam energias nestes Cafés e nos Cabarés, onde faziam simbiose com a
burguesia.
No
maravilhoso livro “Boêmios, Dan Franck”, o autor faz uma síntese do que ocorria
no ambiente cultural dos anos do final do século 19 e inicio do 20 na cidade de
Paris, para onde a intelectualidade do
mundo inteiro (pintores,escritores e cantores) acorriam em busca de notoriedade
e sobretudo para curtirem a vida; circulavam pelas calçadas e pelos cafés de
Montmartre e Montparnasse; não apenas passearam, amaram, brigaram, incomodaram
e escandalizaram os donos do p0oder e os adeptos do lugar-comum.
Estes
personagens usavam, as vezes, roupas extravagantes, organizavam festas
inusitadas, puxavam o revólver e provocavam o burguês de mil maneiras, por um
motivo essencial, o burguês não gostava deles.
No
livro de Brito Broca, já citado acima, podemos observar que este Café “Chat Noir”, devido a sua fama
e, também, pela influência que a cultura francesa exercia sobre os nossos
costumes no final do século 19 e inicio do século 20, acabou ancorando no Rio
de Janeiro com a inauguração de um similar ao parisiense, pois o que “ os intelectuais, os estetas,
como os chamavam o cronista João do Rio, haviam desejado durante muito tempo,
fora um cabaré, um cabaré à moda do Chat
Noir.
Um
dia chegou a noticia: acaba de fundar-se no Rio um Chat Noir, exatamente nos moldes parisienses,
tudo quanto havia de mais rive gauche.
Foi um acontecimento: ia-se ao Chat
Noir, como a um supremo prazer de arte, dizia João do Rio; Olavo Bilac que se
preocupava com a ideia da morte, escrevia na Gazeta de Noticias que o Chat Noir ia desmoralizar a morte, ainda
ontem , disse ele, naquela salinha cheia de desenhos trágicos, vi muito mocinho
triste e muito velho anquilosado a ouvir com sorrisos, a apoteose da morte
jovial, já temos no Rio um lugar onde se pode confortavelmente rir da morte.
Neste
ponto volto ao inicio do texto, como
poderia a cidade de Goiás, no inicio do século 20, com as características
sociais que conhecemos, não só pelo relato do livro que a escritora Elizabeth
Fleury irá publicar muito em breve, mas, também, pelo que conhecemos por intermédio de muitos
outros autores que se preocuparam em desvendar os costumes da população daquela
cidade nos primórdios da era republicana no Brasil, abrigar uma boate no estilo
da Chat Noir.
Será
que Hugo de Carvalho Ramos estaria, realmente, frequentando uma Chat Noir em
Goiás ou simplesmente ele “desejava” uma boate naquele estilo, onde poderia
mudar o rumo das suas férias, como aquele trecho da carta afirma:
“Este é o modo de viver sensato, natural na opinião de todos,
de um rapaz desocupado ou de um estudante em férias: beber qualquer droga
inferior que seja no Chat Noir”.
Assunto
para pesquisadores: teria existido a tal
boate em Goiás daquele tempo?
O estranho diário de uma senhora inglesa do século XIX
Não faz
muito tempo li uma resenha do livro “The private diary of a victorian lady – O
diário privado de uma senhora da era vitoriana” no London Review of books que aguçou minha curiosidade; adquiri o
livro, gostei do que li e resumo-o para meus leitores
O livro conta uma
verídica e inacreditável história ocorrida no século 19 na Inglaterra, cuja
personagem principal é a senhora Isabela Robinson e os principais coadjuvantes são o engenheiro Henry Robinson e o médico Edward
Lane, sendo que este último entrou na
história porque estava no lugar errado na hora errada.
Isabela (já era viúva,
31 anos de idade) casou-se com Henry, em 1844, na cidade de Londres e cinco
anos após mudaram-se para Edimburgo (Escócia), onde conheceram Lady Drysdale,
cuja filha (Mary), era casada com o médico Dr. Edward; como acontecia, com
frequência, na Inglaterra da era Vitoriana, algumas pessoas ricas, que era o
caso da Lady Drysdale, costumavam fazer
reuniões( chá das cinco) nas suas casas, quando se reuniam, a convite do
anfitrião (ã), uma variada gama de pessoas ligadas à cultura, como escritores,
intelectuais livre pensadores, artistas, atrizes para discutirem assuntos
culturais.
Foi em uma dessas
“soirées” que Isabela conheceu o Dr. Edward, quando conversaram animadamente
sobre assuntos os mais variados possíveis, desde enfoques sobre a solidão em
que ela vivia e discussões a respeito de poesia, literatura, especialmente
sobre Lord Byron e Goethe, música, política,
viagens em balões, descrença em Deus, universo e, até sobre medicina, como ela
escreveu no seu “Díario” ao voltar para a casa.
Por aquela época Isabela
percebeu que Henry casou-se com ela apenas pela herança que ela possuía e,
principalmente, passa a perceber que seus mundos são completamente distintos,
enquanto ela se interessava pela literatura, ele só pensava em negócios, que,
aliás, trazia-lhes enorme conforto material, pois possuíam outras casas em
outros locais da Inglaterra e na Itália, com cinco empregados domésticos,
verdadeiro luxo na época, tendo em vista que apenas 1,2% dos 10 milhões de
habitantes da Inglaterra em 1867 ganhava mais que 300 libras por ano e apenas
50 mil pessoas, que era o casa deles, ganhavam mais de 1.000.
Isabela era dez anos
mais velha que Dr. Edward e, segundo ela mesmo escreve no seu “Diário”, não era
uma moça bonita, no entanto isto não impediu que ela se apaixonasse por ele,
principalmente pela afinidade cultural que percebera; com o tempo estes seus
encontros deixaram de ser estritamente culturais e passaram para o idílio
definitivo, narrado por ela no “Diário” com riqueza de detalhes.
No ano de 1856 Isabela
teve que ser internada para se tratar de uma
difteria e nos momentos de delírio febril “entregou” o que guardava no
seu consciente, Henry que já estava desconfiado, vasculhou suas gavetas e
encontrou o “Diário”, onde ficava provada a sua infidelidade.
Incontinente
ele entrou com pedido de divórcio junto à Corte de divórcios e causas
matrimoniais; era muito difícil se conseguir o divorcio naquela época, o homem
deveria provar adultério da esposa, e a mulher, além de adultério do marido, deveria provar que
teria recebido duas graves ofensas (agressão física, por exemplo); Henry alegou
que a esposa cometera adultério e como evidência apresentou o “Diário” de
Isabela.
No dia 14 de junho de
1858 a Corte se reuniu para julgar o caso, com grande presença de público e da
imprensa; o advogado de Henry solicita que seja aceito como evidência do
adultério, contrariando a tese da defesa, o “Diário” de Isabela ; após
discussões entre defesa e acusação, a Corte aceitou o “Diário” como peça do
processo; o Presidente da Corte pediu que as mulheres presentes no auditório se
retirassem porque haveria passagens no Diário não agradáveis para os ouvidos
das senhoras.
O advogado de Henry
passou a indicar algumas passagens (entradas) do “Diário” a serem lidas pelo
serventuário – Dia 7 de outubro de 1854, quando Isabela e Edward se beijaram
pela primeira vez e ( ...) 16/10, “Fomos
de carruagem para a estação e no caminho ele agarrou-me nos seus braços e
tivemos indecente e carinhosa intimidade” (...).
Várias testemunhas foram
invocadas por ambas as partes, inclusive o médico Edward que, aliás, negou, com
veemência, o adultério, porém, nenhuma delas acrescentou nada que pudesse
provar ou descartar os fatos registrados no “Diário”; como ultima cartada, a
defesa alegou “insanidade mental da ré”, afirmando que tudo o que ela escrevera
no “Diário” era invenção da sua mente doentia, carente de afeição matrimonial e
intoxicada pela sua leitura de ficções literárias.
Finalmente a Corte
concluiu pela absolvição de Isabela, por falta de provas concretas de adultério
e negou o divorcio.
Houve
grande cobertura da imprensa, com as devidas cautelas para não trazer detalhes
do “Diário” que pudessem provocar constrangimento para as famílias; o jornal Saturday Review, publicou um ensaio
sobre o livro Madame Bovary de
Flaubert, cuja heroína, pretensamente, foi o modelo seguido por Isabela.
Por incrível que possa
parecer, as mais famosas mulheres retratadas como adúlteras nas novelas
escritas no século 19 (Bovary-Flaubert; Anna Karenina-Tolstoi; Therése
Raquin-Zola), morreram por suas próprias mãos, Isabela teve um abscesso em um
dedo e morreu de septicemia em 1887, com 70 anos de idade.
VIENA - A VISÃO DO TURISTA E A DO HISTORIADOR
Quando
estive em Viena no inicio da década de 1970 animava-me, exclusivamente, o
aspecto turístico da viagem; estava envolvido com as imagens coloridas dos
filmes musicais que assistira quando criança e adolescente.
Procurei “reencontrar” os
seus decantados bosques, embalar-me, se possível pessoalmente, com as valsas de
Strauss, principalmente o “Danúbio Azul” e o “Canto dos bosques de Viena”;
procurei vestígios da “Família Trap” e, com as ilusões dos meus olhos de
sonhador, admirar as águas azuis do rio Danúbio.
Tinha um encontro marcado
com Sissi, a Imperatriz, no Palácio de
Schonbrunn; precisava certificar, pessoalmente, o local onde morara a família
de Dona Leopoldina, ex-esposa do nosso Imperador Dom Pedro I e ver as pinturas
que retratavam nossos antepassados.
Não conheci Viena! Naquela
época não conhecia sua história, suas artes e sua literatura; principalmente
não percebi, com os olhos curiosos do historiador que ainda não era, que Viena
ainda mostrava sinais da destruição provocada pela segunda guerra mundial,
terminada há menos de três décadas.
A partir da década de 1980,
voltei várias vezes a Viena, agora, embora ainda turista, com visão mais
humanística da vida que nos rodeia; cada reencontro, escudado nas leituras que
iam sendo acumuladas pela maturidade intelectual, trouxe-me sedimentação de
cultura.
Certa feita, sentado a uma
mesa de um café situado na Ringstrasse, enquanto saboreava um cappuccino,
folheava um livro que adquirira em uma livraria nas imediações, escrito por um
americano de nome Carl Schorske (Fin-de-siécle Vienna - Politics and Culture -
Viena fim de século, política e cultura); inteirei-me de alguns fatos ligados a
esta tão importante via publica.
Após a revolução de 1848, as
forças liberais que assumiram o governo de Viena, embalados pelas ideias do
modernismo que assolavam a Europa, resolveram construir esta via que circunda a
chamada parte velha de Viena; para muitos historiadores esta construção
representou uma mudança estética e política da cidade.
Viena foi, possivelmente, o
ultimo bastião europeu das fortificações ao redor de uma esplanada de
construções que serviam como centro administrativo do Império e que se mantinha
isolado dos seus subúrbios, como mostra um mapa de 1844, inserido no citado
livro.
No lugar desta fortificação
construiu-se a Ringstrasse e optou-se, ao longo da sua extensão, pela
construção de uma série de edifícios públicos com vários estilos
arquitetônicos, como o neogótico, neobarroco, neorrenascentista e neoclássico.
A leitura daquele livro
levou-me, em outra oportunidade, década de 1990, a procurar o local onde frequentavam,
no final do século 19 e inicio do 20, os escritores e os poetas austríacos.
O café Griensteidl, localizado
na Michaelerplatz, tem uma história inacreditável, digna de ser mencionada,
senão vejamos: foi inaugurado em 1847 dentro do espírito de todos os
“Wienerkaffeehaus”; ali o freguês pode permanecer o dia todo, consumindo apenas
água, aliás, gratuita e renovável por garçons sempre simpáticos; funcionou até
1897, portanto durante cinquenta anos e foi reaberto em 1990 e continua com as
mesmas características de antigamente, como pude constatar pessoalmente.
Do mesmo modo que ocorria no Rio de Janeiro em datas semelhantes, onde
um grupo de intelectuais da época (Olavo Bilac, Guimarães Passos, Emilio de
Menezes. José do Patrocínio, Bastos Tigres, dentre outros) frequentavam as
confeitarias Pascoal e Colombo, situadas as ruas Gonçalves Dias e Ouvidor,
respectivamente (O Rio de Janeiro do meu tempo, Luiz Edmundo, Ed. Conquista,
1957) também em Viena os intelectuais escolhiam os cafés para os seus
encontros, o Griensteidl era o preferido por um grupo, autodenominado Jung wien
(jovens de Viena).
Arthur Schinitzel, médico por
insistência do pai, porém, com a mente toda voltada para a literatura, era o
timoneiro deste grupo que incluía, dentre outros, o escritor e ensaísta Alfred
Polgar, o poeta, contista e romancista Peter Altenberg, o poeta, ensaísta e
jornalista Karl Kraus e o romancista de primeira grandeza, premio Nobel de
Literatura, Herman Broch.
No final do século 19 e inicio do 20,
Viena era considerada a cidade com melhor padrão de vida da Europa, era o
centro de arte moderna e da cultura, era o período do Império Austro-Húngaro,
quando sua população triplicou, passando de 730.000 em 1880 para 2.100.000 em
1910.
Daquele grupo habituée do café
Griensteidl, Schinitzel era, de longe, o de maior talento, tendo sido um dos
precursores do romance realista em língua alemã, haja vista o seu livro
“Crônica de uma vida de mulher” (Ed. Record, 2008).
Por ter estudado psiquiatria,
interessou-se pela hipnose, tendo, inclusive antecipado ideias a serem
preconizadas por Freud na descoberta da psicanálise.
Em 1983, conforme anotação que fiz na
folha de rosto, veio-me às mãos o livro “A Morte de Virgilio” (Ed. Nova
Fronteira, 1982 - Hermann Broch), como vimos, pertencente ao grupo de
Schinitzel; abandonei-o por considerá-lo com linguagem hermética e de difícil
leitura, provavelmente ainda traumatizado pela tentativa de ler, sem sucesso e
na mesma época, o livro Ulisses de James Joyce, ambos com estrutura semelhante:
monólogo intimo; pretendo voltar a enfrentá-los!
VILA DA SAUDADE
Muitos
anos depois, já com os cabelos embranquecidos pela neve do tempo, o “menino”
voltou à Vila da Saudade; chegou com a predisposição de reencontrar a sua alma
nas reentrâncias do passado do qual ele participou como sujeito de algumas ações.
Sentou-se na pedra que teimava
em permanecer no mesmo lugar e de onde costumava mergulhar nas águas barrentas
e velozes do ribeirão; olhou para o lado da antiga casa que continuava de pé e
sentiu, estranhamente, que sua vista procurava visualizar algo que não mais
existia. Uma lágrima rolou pelo seu rosto, com suavidade, em direção da
comissura labial, esquentando-lhe o rosto e salgando-lhe a boca, outra e mais
outra acompanharam o percurso daquela primeira.
Um choro convulsivo sequenciou
aquela tímida manifestação de emoção. Fechou os olhos e, em lapsos de tempo,
uma miríade de acontecimentos desfilou, repentinamente, pelo seu pensamento;
parecia, pela facilidade com que ele encontrava para programar aqueles reencontros,
que os fatos e os personagens estavam acomodados em uma prateleira com as
respectivas catalogações; bastava, tão somente, identificar o que desejava ver
e com quem desejava conversar. Estava ao alcance das mãos.
Caminhou solitário pelas ruas,
tentando identificar, entre as pessoas que caminhavam, pelo menos um rosto,
qualquer rosto, que lhe trouxesse de volta o passado. Viu, assentado em um toco
de madeira localizado na calçada de uma casa, uma figura humana que lhe causou
forte impressão. Era muito idoso, seu rosto, seus cabelos e principalmente o
seu olhar perdido no horizonte denunciavam o seu grupo etário.
O “menino” se aproximou
com cautela; tentou identificá-lo, porém, não foi capaz. Não resistiu à
tentação, assentou-se no chão, ao seu lado; só agora verificou que o homem
idoso nem percebera a sua presença; parece que dormia, tocou sua mão que estava
pendente, aparentemente procurando o cão que estava deitado ao seu lado.
Tocou-a com cuidado, preocupado
em não assustá-lo; o homem idoso movimentou a cabeça e só agora o “menino”
percebeu que ele não estava dormindo.
- Quem está aqui? Perguntou o ancião,com voz compassada e
sem força.
O “menino” ainda tentou se identificar, porém,
verificou que seria inútil.
- Sou um
antigo morador da Vila da Saudade, gostaria de conversar sobre o nosso passado.
- Qual passado
a que você está se referindo; na minha idade esta expressão não tem muito
sentido.
- Quando falo
em passado estou querendo dizer que gostaria de conversar com o senhor sobre a
nossa vida passada, sobre a vida dos antigos habitantes da Vila da Saudade.
- Não me
provoques, não me peça para voltar ao passado; falemos do presente, mesmo
porque meu tempo hábil para falar do
futuro já esgotou. O meu presente ainda é vida, que é o que vale. Para dizer a
verdade, não estou seguro se estou realmente vivendo, pois, pelo que entendo,
viver não é só deixar passar as horas, desperdiçando o tempo, sem contar com um
dos sentidos mais importantes da comunicação. A minha hora veio, passou e não
volta mais!
Aconselham-me a descansar; não passo
mal, apenas estou velho, isto é, deixei de ser moço, ultrapassei a transição;
veio o crepúsculo, a luz diminuiu e desfez o contorno das coisas reais que um
dia gostei de ver. Meu entendimento confunde luz com penumbra, tudo é prenúncio
de noite; a deficiência chegou, sem antes passar pelo estágio de piora,
instalou de maneira brusca e definitiva, negativando o otimismo. Parece que as
minhas horas da tarde chegaram sem convite e até sem aviso; parece, pela óptica
do meu amor próprio, que chegaram cedo.
- O senhor se
sente aborrecido com as circunstâncias da sua vida?
- Não, nunca me sinto aborrecido,
tenho, como ultima instância, a minha própria companhia; quanto às
circunstâncias, vivo com as minhas. Não procuro, nem ao menos contorná-las,
vivi meu tempo, assim como os habitantes da Vila da Saudade viveram a deles.
Não tente trazê-los de volta, não invoque as suas presenças, deixe-os na paz
que merecem.
Tudo o que eu falar não mais
corresponderá à realidade daqueles dias, não posso falar por você, pois nada
sei a seu respeito, nem ao menos a sua idade.
Quanto
você está dizendo? Feliz a idade sua,
conheci-a, recordo muito bem, foi antes da presença desta neblina; conheci-a
antes disto, quando pelas manhãs, independente do local onde morava, todas as
neblinas, de todos os dias, eram azuis, havia, ainda, a bruma que envolvia todo
o horizonte, por detrás da névoa havia, sempre, o brilho do sol; época ditosa
da infância.
Depois... depois, aquele círculo
divertido e principalmente feliz, se converteu, para nós que deixávamos de ser
crianças, em um caminho que, progressivamente, começou a se estreitar,
até alcançar um desfiladeiro, que é onde me encontro.
Este caminho você percorrerá,
plante flores no seu itinerário, o perfume que emanará deste canteiro, servirá
como guia e encantamento para seus dias de possível angústia. Quando você
encontrar espinhos, sublime-os e repita para você mesmo:
- Aqui deveria haver flores,
afaste os espinhos e colha as flores!
Perdoe-me, mas vou ter que me
recolher, a disciplina me obriga a permanecer aqui no sol apenas o tempo
estipulado para minha segurança; amanhã, talvez, estarei aqui de volta, se isto
acontecer e se você se dispuser de tempo e paciência, voltaremos a conversar
mais um pouco.
Lembre-se, o tempo que passou não
volta mais!
PARA ONDE VÃO AS NOSSAS LEMBRANÇAS DA INFÂNCIA? FREUD EXPLICA!
Outro
dia, passeando com minha neta Marília pelos jardins da Santa Tereza, vii o
entusiasmo com que ela observava os detalhes do mundo que a rodeava, ali uma
flor mais saliente e perfumada, acolá a escultura da “Deusa do Cerrado” que as
mágicas mãos do artista Luiz Olinto a colocou em destaque; quase de frente à nossa casa, um pássaro, no caso
um “João de barro”, sentou-se em um arbusto bem perto de nós; para todas as
coisas havia o questionamento: o que é isto? O que é aquilo? Por quê? Por quê?
Fiquei
imaginando: quando ela crescer, do que se lembrará? Ficarão vestígios destes
momentos? Muitos, ou a maioria deles, será esquecida, será como se não
houvessem existido; para onde irão estas lembranças? Algumas delas, poucas,
poderão ser recuperadas com o auxilio de um adulto que as presenciou e tentará
ajudar com narrativas do acontecido.
Segundo
Freud estas lembranças ficarão armazenadas no inconsciente, esperando a
oportunidade de serem recuperadas, agora com a ajuda da ciência que ele
inventou e que denominou de psicanálise; antes que possa ser mal entendido,
preciso dizer que não tenho formação psicanalítica, sou apenas um modesto
estudioso do assunto.
Em uma
oportunidade estive na casa onde Freud morou por muitos anos, em Viena,
Bergasse 19, onde é hoje um museu; confesso que fiquei emocionado ao adentrar a
sala que lhe servia de consultório, dentre tantos detalhes à vista do visitante
(tesouros antigos que cobrem mesas, paredes recobertas de quadros, vitrines),
chama a atenção o divã, onde se deitava o paciente para a consulta e a sua mesa
de trabalho, sobre a qual pode se observar algumas estatuetas de deuses da
Grécia, Roma, Egito e das Índias, peças arqueológicas adquiridas nas suas
incursões em lojas de antiguidades.
É sabido que
Freud gostava de discutir com seus pacientes a razão da sua coleção de
antiguidades, dando explicação entre as diferenças psicológicas que existem
entre o consciente e o inconsciente; enquanto que o nosso consciente sofre o
desgaste da vida cotidiana, o inconsciente permanece quase que inalterável,
dizia ele, acrescentando: - como aquelas estatuetas que foram recuperadas em
escavações arqueológicas, muitas delas não imagináveis pelo seu descobridor.
Freud dizia
para alguns de seus interlocutores que ele era, também, um arqueólogo, só que
ao invés de utilizar os instrumentos manuais próprios daqueles profissionais
(enxada, pás, picareta), utilizava com seus pacientes histéricos, em
substituição à tradicional anamnese médica, outro método de investigação que
era capaz de fazê-los falar sobre os sintomas que os atormentavam; naquela fase
inicial de suas investigações Freud assumiu a hipótese, perigosa para a época,
da etiologia sexual da histeria.
Para tentar
convencer seus pacientes e, principalmente a classe médica da época, sobre esta
sua teoria, utilizava-se de metáforas, dentre elas, destaco a que utilizou na
sua famosa conferência “Etiologia da Histeria” proferida em 1896, que provocou
tanta reação, às vezes agressiva, por parte da classe médica que lotou o
auditório da Sociedade Médica de Viena para ouvi-lo.
Acho, disse
ele: - que poderá haver outro meio de se chegar à etiologia da histeria, sem o
auxilio consciente do paciente, pois sabemos que o dermatologista poderá
diagnosticar a sífilis pelas características visuais de uma lesão, embora o
paciente possa negar o contato sexual com um paciente infectado; na histeria
ocorre o mesmo, podemos descobrir as suas causas a partir de sintomas,
aparentemente sem importância para o paciente, porém esclarecedores para o
médico conhecedor da nova técnica que estou propondo, a psicanálise.
Para que
possam entender este novo método de investigação, recorro a uma nova
comparação: Suponhamos que um explorador chegue a um determinado lugar, onde
existe algumas ruínas, restos de muros, fragmentos de colunas e algumas lápides
com inscrições inelegíveis; ele pode simplesmente interrogar alguns habitantes
da região, obter informações sobre aquelas ruínas e sua história, tomar notas
das respostas e prosseguir sua viagem.
No entanto
ele poderá, se tiver alguns instrumentos úteis para o trabalho de arqueologia,
fazer outra coisa: conseguir auxilio de alguns habitantes do local e fazer um
trabalho de escavações e descobrir, a partir das ruínas que eram vistas, o que estava sepultado; se
tiver êxito na empreitada, os descobrimentos se explicam por si mesmos ( os
restos de muros eram o recinto de um palácio, os fragmentos das colunas,
poderiam pertencer a um templo, as inscrições nas lápides, poderiam ser um novo
alfabeto de um idioma, cuja tradução poderia indicar insuspeitados dados sobre
o ocorrido no passado e em comemorações dos quais foram erigidos aqueles
monumentos).
O que mais
escandalizou o auditório foi a sua afirmação final: “A causa da histeria está escondida
no inconsciente e o seu conteúdo será, necessariamente, sexual e acontecido na
fase infantil e que foi apagado do consciente pela tendência defensiva contra
uma penosa recordação inconsciente”.
Felizmente,
a maioria dos acontecimentos ocorridos na infância e que ficou escondida no
inconsciente, não são traumáticos, podendo ser, pelo contrário, até bastante
prazerosos, se recuperados.
.
COMO O VISCONDE DE TAUNAY “DESCOBRIU” OS PERSONAGENS DO SEU LIVRO “INOCÊNCIA”.
Visconde de Taunay ou Alfredo d’Escragnolle
Taunay (1842-1899) foi um dos membros fundadores da Academia Brasileira de
Letras; nasceu no Rio de Janeiro, tendo publicado várias dezenas de livros,
além de incontável numero de artigos em jornais e revistas da época, versando
sobre reminiscências, crítica literária e artística, biografias e música; foi
político atuante (deputado por Goiás e depois senador do Império) e militar
(participou na linha de frente da Guerra contra o Paraguai).
Após a morte de Dom
Pedro II, a quem dedicava a mais absoluta veneração, passou a viver, quase que
exclusivamente, para os trabalhos literários, tendo escrito, nos últimos anos
de vida, dois romances que passaram incólumes pela prova do tempo: “A Retirada
da Laguna” e “Inocência”, este último com mais de 35 edições.
A inspiração para
ele escrever “Inocência” vamos encontrar no seu livro póstumo (Visões do
Sertão, 1928), onde narra sua volta para
o Rio de Janeiro em 1867, após a retirada da Laguna, atravessando, neste
percurso, os Estados de Mato Grosso, Goiás, Minas Gerais e São Paulo, em lombo
de cavalos.
Leiam comigo alguns
excertos do que ele escreveu naquele livro:
“...Nesse dia 1 de
julho de 1867, à margem do rio Sucuriú, vi um anão mudo, gracioso e ágil nos
movimentos, que me serviu de personagem (Tyco) no meu romance “Inocência”,
inclusive seu chapéu de palha furado...”.
“... Foi na “fazenda
do Vau”, a mais importante da região. A dona, uma desconsolada viúva, anêmica e
parecendo desgostosa com a vida, não nos acolheu mal; tinha uns filhos, o mais
velho, devia em breve casar com uma prima, provavelmente, também caquética como
o noivo. Foi daí que tirei o assunto para o romance “Inocência”, cuja heroína
eu iria encontrar alguns passos além...Aliás, nesse sertão, próximo de Santana
do Paranayba, foi que colhi os tipos mais salientes do livro. Na casa do Sr.
Manoel Coelho achei o eterno doente das solidões, queixando-se da falta de
médicos, agarrando-se a curandeiros. Foi ele o “pai” de Inocência, o
Pereira...”
“...Numa vivenda,
bem à beira do caminho, morada de um tal João Garcia, foi que vi o tipo que se
transformou em Inocência. Estava eu com muita fome, parei e pela porta
escancarada, vi um homem a uma mesa, devorando um prato que me pareceu
delicioso.
- O Sr. não
convida alguém varado de fome? Com todo prazer é só desapear e vir comer.
Um gostoso
refogado de carne de porco com cebolas e farinha de milho; repeti
abundantemente.
Após saciar minha fome o homem
interpelou-me:
- Por que o
patrício não teve escrúpulo de sentar-se à minha mesa?
- Por que deveria?
Perguntei, sem entender.
- É, replicou-me a
custo, aqui é casa de morfético; levei susto, porém, como recuar? Dali a pouco
entrava na sala uma moça na primeira flor dos anos, tão resplandecente de
beleza, que fiquei de boca aberta. -
Então, acha minha neta Jacinta bonita? A pobrezinha da inocente já esta
com o mal; Jacinta tornou-se a Inocência; não fiz desta, no entanto, uma infeliz morfética. Do avô
tirei o personagem “leproso”, o Mineiro, e lhe dei o nome verídico, Sr.
Pereira...”.
Para patentear,
mais uma vez, a capacidade de observação do criador de Inocência, vale destacar o diálogo entre um dos seus personagens, o
capataz da “fazenda do Vau”, chamado senhor Pereira, que no romance tornou-se,
como dissemos acima, o pai da personagem principal do romance, a Inocência, com
o curandeiro Cirino:
“Quem se queixava
de engasgues era o capataz de uma fazenda chamada “ do Vau”, distante umas boas cinquenta
léguas.
- Sr. doutor,
disse o enfermo, a minha vida é um continuo lidar de sofrimentos. Estou com
este mal vai fazer cinco anos no São João, por sinal que me veio com uma grande
dor do estômbago. Vezes há que não
posso engolir nada, sem, beber muitos golos de água, de maneira que me encharco
todo e fico que mal me mexo de um lugar para outro.
- E a dor,
perguntou Cirino, ainda a sentes?
- Toda a vida, o
que me aflege mais é que há comidas então que não me passam a goela...É um
fastio dos meus pecados, boto uns pedacinhos no bucho e parece-me que dentro
tenho um bolo que me está a subir e descer pela garganta.”
Nós que lidamos
com a Doença de Chagas sabemos que estas queixas são, praticamente, as mesmas
apresentadas pelos doentes portadores de megaesôfago chagásico.
Meu colega e
amigo, Dr. Ulisses Meneghelli, Prof. da Faculdade de Medicina da USP-Ribeirão Preto, foi quem, pela
primeira vez, chamou a atenção para esta curiosidade, em publicação na Revista
Goiana de Medicina em 1992.
Este diálogo,
ao lado de mostrar a sensibilidade do autor de “Inocência” em captar detalhes
que poderiam passar despercebidos ou pouco valorizados para um leigo em
medicina, como ele era, deixou a nossa comunidade científica ligada aos estudos
da doença de Chagas, absolutamente perplexa.
Sabem por quê?
A doença de Chagas foi descoberta, cientificamente, em 1909 e este diálogo foi
perpetrado em 1867; o mais interessante: hoje sabemos que a região onde Taunay
encontrou este personagem do seu romance, era zona endêmica da Doença de
Chagas.
ACAMPAR NAS PRAIAS DO RIO ARAGUAIA! HAVIA A MESMA MAGIA HÁ 150 ANOS!
Frequento os acampamentos do rio
Araguaia desde 1966, quando ali fui pela primeira vez; desde então, nunca mais deixei de visitá-lo pelo menos uma vez
ao ano, quase sempre na companhia da querida família Costa Campos e, de uns tempos para cá, com a família do
amigo Juarez Lobo.
Tenho tido, portanto, a oportunidade
de acompanhar o desenvolvimento da cidade de Aruanã, naquele tempo pretérito
vivendo a efervescência do bar do Elpidio, lugar de encontro obrigatório de
toda a comunidade boemia das barrancas do nosso rio; hoje, após a dinâmica gestão do ex-prefeito Hermano
de Carvalho, a cidade transformou-se, realmente, em um polo turístico de Goiás,
com quase todas as comodidades necessárias ao conforto do visitante.
Sentados em cadeiras, protegidos do
“perigoso” sereno, debaixo do ranchão (segundo o Juarez Lobo, não estamos mais
em condições de ficarmos expostos à “intempéries”), conversávamos, Juarez Lobo,
Rui Pacheco, Omari Costa Campos e eu,
sobre os tempos idos e vividos à beira do nosso rio; contei-lhes sobre a viagem
que o ex-presidente da antiga Província de Goiás, Couto de
Magalhães, fez no ano de 1863, quando
percorreu grande extensão do rio em barcos à remo.
Couto de Magalhães deixou registrado em um
livro (Viagem ao Araguaia, 1863) todas as peripécias daquela viagem, inclusive
com descrição do percurso entre a cidade de Goiás e Santa Leopoldina (antigo
nome de Aruanã), feito em lombo de animais, com duração de sete dias. Este é o
primeiro grande contraste, hoje percorremos este trecho em poucas horas, com
ótima estrada asfaltada, em vias de ser duplicada.
Transcrevo um pequeno trecho da
descrição da localidade de Santa Leopoldina (Aruanã), feita por Couto de
Magalhães naquele seu livro:
“O Presídio de Santa Leopoldina
está colocado na margem direita do Araguaia, junto à barra do rio Vermelho; é
um povoado nascente e que promete próspero futuro.
Foi fundado a primeira vez, no
mês de março de 1850, pelo doutor em matemática, João Batista de Castro Morais
Antas, na presidência do Dr. Eduardo Olimpio Machado; destruído em 1853, foi de
novo fundado em 1855, sob a presidência
do Dr. Antonio Cândido da Cruz Machado no largo dos Tigres, à margem do rio
Vermelho, de onde foi removido para o lugar em que agora está, em 1856, sob a
presidência do Dr. Antônio Augusto Pereira da Cunha.
Hoje conta com 30
casas, entre as quais uma com telhas; a casa da
administração tem 66 palmos de frente, 18 de altura e 45 de fundo, sendo
toda construída em aroeira; a barreira do rio dista 14 braças da primeira rua
de casas e deve ter outro tanto de altura”.
Quem conhece os
acampamentos do rio Araguaia sabe que após a terceira cervejinha (nunca é
cervejão), os assuntos variam de acordo com a inventividade do freguês, são
“filhotes” que escaparam do anzol na hora de embarcar na canoa, é o pirarucu
tão grande que exigiu três homens para puxá-lo para fora d’água e mais algumas
outras mentiras, que sempre provocam gargalhadas homéricas.
Nosso
grupinho, os da melhor idade, não fugia à regra, conversávamos sobre tudo e
sobre nada, apenas pelo prazer de provocar o companheiro e colocá-lo na
berlinda, inventando assuntos os mais estapafúrdios possíveis, apenas para
provocá-lo, com a certeza de que logo em seguida receberá o troco; Omari Costa
Campos é o mais prolixo, inventa histórias sobre acontecimentos “ocorridos” no
Araguaia, alguns impossíveis de terem acontecido, como o caso do pescador, seu
amigo (portanto, mentiroso como ele), que enfrentou, sozinho, uma tribo de
índios na ilha do Bananal, presumindo que o mesmo venceu a porfia porque,
senão, quem iria contar a história, uma vez que o dito cujo estava sozinho.
A discussão só fica séria quando alguém grita: gente! A
lua vai sair!
Começa a escurecer, o sol, que não
mais pode ser visto mostra, ainda, sua
grandeza resplandecente por intermédio dos seus últimos raios que teimam em
permanecer no horizonte, desafiando a claridade da lua que duvida da sua
própria força e ainda não o enfrenta; no entanto, a natureza resolve intervir e
põe fim a esta disputa.
Inicialmente , o sol que até aqui
lutava para manter sua hegemonia, rende-se à formosura da companheira de
eternidade e mergulha, aos poucos, é verdade, porém, como se fosse um
trapezista que perdeu o equilíbrio, falta-lhe sustentação e cai no abismo do
poente, escrevendo mais um capítulo dos mistérios da vida.
No
inicio percebemos um clarão que surge
com toda intensidade por detrás das árvores que margeiam o rio, paulatinamente
descobrimos de onde vem a claridade: uma esfera, como se fora um passe de
mágica, vem despontando e vai subindo aos poucos, acabando por ofuscar as
estrelas que estavam nas suas imediações; agora seus raios luminosos alcançam o
leito do rio e se refletem nas águas que uma brisa gentil provoca um discreto banzeiro,
só visível pela câmara fotográfica dos artistas Frederico e Juliana Riccioppo.
Espetáculo inacreditável, dá-nos
vontade de ajoelhar na areia e agradecer ao Grande Arquiteto do Universo que,
com mãos invisíveis, sustenta a esfera luminosa na imensidão do espaço.
Para termos uma dimensão do que representa
este momento para o visitante do rio Araguaia, transcrevo um pequeno trecho do
livro escrito por Couto Magalhães já
citado acima:
“Ancoramos em uma das
maravilhosas praias que o rio vai formando nas suas margens, na sua descida
rumo ao oceano; acendemos uma fogueira e sentamos ao seu redor, enquanto um
índio preparava uma tartaruga moqueada para nosso jantar. Impossível esquecer
esta impressão! O céu estava um pouco
nublado, o vento soprava com delicadeza, porém, de maneira intermitente,
algumas gotas de chuva caíam, sem no
entanto nos aborrecer, apesar da sua frialdade; paulatinamente, como se fora
combinado, as nuvens se dissiparam e o céu tornou-se límpido.
As
estrelas, distribuídas na abóboda celeste como se fossem ali colocadas pelo
pincel de um artista, foram, paulatinamente perdendo a majestade da
onipresença; era a lua que despontava no oriente, ainda vista de muito longe,
pequena, porém já com luminosidade suficiente para suplantar suas companheiras
do infinito eterno. Calma, senhora de si e da sua hegemonia, revestida do
encanto mágico e também melancólico onde tem residido, eternamente, na alma de
todos os sonhadores, vem subindo lá do infinito, sem nenhuma sustentação
aparente. Sua luminosidade, clareando as campinas adjacentes e refletindo nas
águas calmas do rio, leva-nos a sonhar, trazendo-nos vagas saudades e incertas
esperanças.
A noite era silenciosa; se o indivíduo
que participa, com a sua presença, deste cenário, não se acautelar, pode
assumir um estado de espírito que é uma mistura de nostalgia e alegria,
nostalgia pela solidão e alegria por desfrutar das benesses, como diria um meu
amigo fraterno, oferecidas pelo Grande Arquiteto do Universo”.
Cento
e cinquenta anos separam estas duas descrições, a magia do encantamento é a
mesma!
AMADEUS MOZART – A MÚSICA E A MAÇONARIA, duas vertentes na sua vida.
A cidade de
Salzburg, localizada na Áustria, perto da fronteira com a Alemanha, incrustada
entre as montanhas dos Alpes, é considerada uma das mais bonitas da Europa; o
turista que a visita pela primeira vez não deixará de ficar extasiado com a
arquitetura das suas casas, das suas ruas e, principalmente, sua aparência de
tranquilidade.
Para todos os
lados que nossos olhos se dirijam, veremos montanhas, quase sempre cobertas por
neve no seu cume e as geleiras que, ao se liquidificarem, escorrem ladeira
abaixo para formarem, aqui em baixo, na planície, o rio Salzach que cruza a
cidade em toda sua extensão.
Não há como
não se extasiar com a beleza dos seus múltiplos jardins, a visão romântica de
muitas igrejas, quase todas seculares, com suas torres lembrando o estilo da
época medieval, seus castelos, alguns suntuosos como o de Hohensalzburg,
localizado em posição proeminente, assombreando, como fazia há muitos séculos,
os habitantes da cidade.
Suas alamedas,
algumas estreitas e floridas, levam-nos, com pouco esforço imaginativo, de
volta a um passado de quase três séculos; misturamos com o gentio do século XVIII,
ouvimos o burburinho de carruagens e o tropel de cavalos nas vias pavimentadas
de pedra.
Se, nesta viagem,
esperamos a chegada da noite, veremos os encarregados da iluminação daquela
vila de dez mil habitantes, descerem em algazarra pelas ladeiras, empunhando
tochas em suas mãos calejadas da labuta diária.
Neste ambiente
bizarro e cheio de contrastes, onde o poder absolutista dos mandarins sobrepunha-se à vontade de qualquer habitante, onde
a promoção social era praticamente impossível e aquele que, embora tivesse
algum mérito pessoal, não pertencesse à casta dominante, só atingiria posições
de destaque se transigisse nos seus princípios para agradar aos poderosos.
Neste local, onde
a vista circunvoava o romantismo da natureza da região, no dia 27 de janeiro de
1756 nasceu Wolfgang Amadeus Mozart, uma estranha força que nasceu com a luz
para resplandecer na escuridão dos costumes.
Seu pai, Leopold
Mozart, foi um músico sem expressão, porém,
percebeu que era o pai de um gênio e assumiu esta missão, desde os primeiros
sinais do talento musical do filho, estando sempre ao seu lado, tanto na
juventude como na vida adulta, passando a viver, daí em diante, praticamente,
em função da sua formação.
Mozart viveu sua
infância neste ambiente majestoso da natureza, em meio a jardins que emanavam a
fragrância das flores trazida pelos ventos dos Alpes que corriam pela planície
da Baviera.
Dedicava,
praticamente, todo seu tempo em função da música; aos cinco anos de idade
já compunha, aos seis, fez sua primeira excursão à Corte de Maximiliano
III em Munique, onde se exibiu publicamente, aos sete, excursionou, durante
mais de três anos, pela França e Inglaterra.
Por ser
considerado gênio e precoce, Mozart era motivo de curiosidade cada vez mais
aguçada nas cortes européias, sendo, por isto, muito requisitado para viagens.
Em 1781 casou-se
com Constance, que lhe deu seis filhos, sendo que apenas dois deles
sobreviveram; a luta pela sobrevivência era muito difícil, pois, Mozart nunca
conseguiu um cargo público que lhe desse tranquilidade
financeira para trabalhar com a sua musica.
Na sua
peregrinação na busca de uma oportunidade, teve que se humilhar, como registra
a história, frente ao Arcebispo Hieronymus Coloredo, governante de Salzburg,
que o expulsou da sua sala; somente em 1787, quatro anos antes da sua morte,
ele foi nomeado para o cargo de Real e Imperial Compositor da Corte, porém, com
ordenado, até vexatório, para os padrões da época.
Mozart trabalhava
até 14 horas por dia, compondo por encomenda, peças musicais, óperas,
sinfonias, além de se apresentar em saraus e concertos.
Foi nesta época
que ele se aproximou de um grupo de pessoas que não aceitava a hegemonia do
poder absolutista, discutiam e pregavam a vitória do espírito e do intelecto;
estes homens, que vieram desempenhar uma grande influência na sua vida, eram
livres e de bons costumes.
É de se ressaltar
que pertenciam a esta classe de homens, algumas das grandes expressões da
intelectualidade da época, como Goethe, Schiller, Herder e Fichte.
Eram os maçons!
No final do ano de
1784, Mozart foi admitido na Ordem Maçônica em uma loja, de nome Benevolência,
da cidade de Viena; a partir daí, pode-se verificar grande influência do
simbolismo da Ordem na sua obra.
Em uma
oportunidade consegui encontrar e adquiri em uma loja de discos de Salzburgo um
“vinil” compacto com todas as suas peças maçônicas; a primeira composição que
ele fez para uma ocasião maçônica foi a cantata “Fesellenreise - K. 468”,
dedicada ao seu pai, também maçom; muitas outras seguiram-se a esta, como “Die
Maurer Freuse – K. 471”, “Música para funeral maçônico – K. 477”, “Canção para
abertura e fechamento da Loja – K. 483 e K. 484”, “Alma da criação – K. 429”,
etc.
No entanto, os
iniciados na Ordem consideram como uma das suas mais belas produções maçônicas
a Ópera “A Flauta Mágica”, levando Goethe, após assisti-la, escrever: “A
maioria dos espectadores irão gostar, os iniciados na Ordem maçônica, como eu,
irão entender o simbolismo que encerra esta peça”.
Nove semanas após
a estreia desta ópera, no dia 5 de dezembro de 1791, Mozart morreu, quase que
na miséria.
NAQUELE TEMPO PARIS ERA UMA FESTA!
Na época do Império, todo literato que militava nas letras brasileiras
tinha um sonho: Ir à Paris, fonte e sustentação de toda a cultura mundial
da época; o francês era a segunda língua da elite intelectual brasileira.
Por muito tempo, ainda, Paris cidade continuaria a ser considerada a
Meca da cultura universal; por uma questão de justiça histórica, somos
forçados, se voltarmos alguns séculos na história, a aceitar que a pujança
desta “República das Letras” nos remete, inclusive, ao século XVII com a força
literária de Racine ou de Moliére, de Voltaire, Diderot, Rousseau, Danton e
Marat no século XVIII, e Sainte-Beuve, Zola, Maupassant no século XIX.
O nome, “República das Letras”, na verdade foi cunhado pelo escritor e,
muitos anos depois, membro da Academia Francesa de Letras, Jean Guéhenno para
identificar a Rive Gauche (lado esquerdo do rio Sena), local onde ele morava nos
anos 30 do século passado; disse ele “Ela, a república das Letras, está
contida em algumas casas parisienses, numas poucas e amontoadas redações de
revistas e editoras, em alguns estúdios de desenho, alguns cafés, alguns
ateliês de artistas e alguns sótãos. Não é fácil penetrar nesse mundo. O
verdadeiro diálogo se dá entre algumas dezenas de escritores que se aceitam uns
aos outros, e só isto”.
O bairro Montparnasse era o que havia sido anteriormente Montmartre, o
local identificador desta efervescência de ideias, especialmente pela presença,
ali, de uma infinidade de cafés, onde se reuniam os intelectuais, cujas
produções culturais, artísticas e, inclusive suas frustrações amorosas, eram
discutidas com todos os frequentadores e, quiçá, com o resto do mundo.
No entanto, o “ponto” mais famoso de encontro da intelectualidade da
época, Saint Germain-des-Prés, surgiu com a repentina aparição de André Breton
e seu grupo de surrealistas, que começaram a frequentar o Café Deux Magot, além
de Picasso que frequentava o café Flore.
A França vivia o tempo de intervalo entre duas guerras; havia o desejo
de sublimar os efeitos, ainda muito vivos, das feridas causadas pelo conflito
da primeira guerra mundial e a incerteza do porvir, que já escurecia o céu
no horizonte das nações que alguns anos depois iriam entrar, novamente, em novo
conflito, arrastando nesta avalanche, como sabemos, a França e o mundo de
sonhos deste grupo de intelectuais.
Como sói acontecer quando se reúne uma miríade de livres pensadores,
havia, ali também, um emaranhado de díspares visões críticas e políticas, para
se falar o mínimo; no entanto, sentavam-se às mesmas mesas, discutiam, se
agrediam mutuamente, às vezes chegavam à via dos fatos, porém, mantinham a
harmonia civilizada da aceitação das opiniões dos contrários.
Chama a atenção, consultando a bibliografia à nossa disposição, que
embora frequentassem os mesmos lugares, normalmente os escritores de grande
prestigio, como Gide, Maurois dentre outros, moravam no Rive Droite (lado
direito do rio Sena), o que era motivo de “desprezo” pelos demais, pois ali era
o local das grandes residências e grandes hotéis.
Por outro lado, os moradores da Rive Droit queixavam-se do “preconceito”
da revista Nouvelle Revue Française que afirmava: “... Se uma pessoa não
mora na Rive Gauche, não se trata de um escritor de verdade”; pela mesma época
vários escritores norte-americanos (Hemingway, Fitzgerald, Gertrude Stein,
dentre outros) também circulavam por estas mesmas ruas, porém viviam,
aparentemente, uma vida um pouco apartada dos escritores franceses.
“Shakespeare and Company”, uma livraria fundada por uma americana de
nome Sylvia Beach, localizada na rue de l’Odéon, na Rive Gauche, tinha
uma característica diferente das demais: além de vender, também emprestava livros,
era o ponto de encontro desta gente que citei acima, assim como de alguns
outros que não pertenciam a este grupo, como o escritor Irlandês James Joyce,
que por qualquer motivo, não tinham disposição para compartilhar a sua mesa de
café com desconhecidos e iniciar um diálogo ou talvez uma aproximação
literária.
No seu agradável livro “Paris é uma Festa”, Hemingway confirma esta
assertiva ao escrever: “Ali era uma lugar acolhedor e alegre, com um grande
fogão aceso no inverno, mesas e estantes de livros, novidades na vitrina e, nas
paredes, fotografias de famosos escritores vivos e mortos”.
Depois veio a guerra, com todos os horrores que conhecemos; aquelas
vozes, tão propensas a aceitarem as discordâncias de pensamento com seus interlocutores,
assumiram posições políticas; alguns, na realidade, a maioria, permaneceu com o
discurso condizente com o seu passado, outros debandaram para o outro barco;
alguns outros, por uma questão de justiça histórica, sem entrar no mérito,
permaneceram fiéis às suas ideias e assumiram posições de relevo na nova ordem
que se instalou na França ocupada.
O relato da participação da intelectualidade francesa nos acontecimentos
da segunda guerra mundial, ainda não está completo, sabemos que muitos foram
julgados e condenados pelas suas ideias, outros lutaram e morreram ao lado das
forças da resistência, outros, sem alternativa, conseguiram fugir, outros
ainda, como André Breton (suposto apoiador dos comunistas) e Victor Serge
(apoiador, realmente, de Stalin) se esconderam, junto com outros intelectuais,
na zona não ocupada da Franca, nos arredores de Marselha, onde permaneceram por
mais de dois anos.
A
parte lamentável, para dizer o mínimo, do após guerra foi o julgamento daqueles
intelectuais que participaram do conflito abastecendo as trincheiras do
inimigo, os chamados “colaboracionistas”.
Porém, esta é outra história!
;.
BRINDEMOS A FELICIDADE COM UMA TAÇA DE VINHO!
Já
estávamos há uma semana em um Resort em Porto de Galinhas, bela praia
localizada nas imediações de Recife e já começávamos a “cansar” dos
restaurantes da região; por mais que o ambiente da praia nos provoque para a
degustação de camarões e outros frutos do mar, chega um ponto que ultrapassa o
limite do bom senso.
Meu genro,
Dr. Antonio Leite, consultou um nosso fraterno amigo comum, o Torres, que
embora esteja morando em Goiânia, nasceu em Recife, portanto... Bendita a hora
que falamos com ele, indicou-nos o restaurante Domingos, com o respectivo
endereço.
Ambiente
simpático e, sobretudo acolhedor; fomos atendidos com grande simpatia,
inicialmente por uma recepcionista que sabia o que estava fazendo; depois, já
sentados à mesa, dois “curumins”, com discrição e cortesia forneceu-nos a lista
de vinhos; quase que de imediato, o garçom que iria nos atender durante toda a
nossa permanência se aproximou da mesa e se colocou à nossa disposição.
Em comum
acordo decidimos escolher o vinho, antes de definirmos o cardápio da refeição;
depois de breve discussão, houve consenso para o maravilhoso vinho argentino –
Angélica Zapata que como sabemos, é um Cabernet Sauvignon, no caso presente, da
safra 2007; as duas damas, Marilia e Ana Paula, fizeram a prova, aprovado!
A presença
deste vinho levou-nos, Marília e eu, a recordar da última vez que estivemos na
região de Mendonza-Argentina, onde tivemos oportunidade de provar uma
infinidade de vinhos, a maioria deles proveniente da uva Malbec; falamos da
nossa visita à “bodega” Alta Vista, de proprietários franceses, onde provamos o
maravilhoso “Alta Vista Classic”, feito da uva Cabernet Sauvignon. Ao
despejá-lo no cálice, exibe sua exuberante cor vermelho-purpura, aroma intenso
de frutas e ao prová-lo, quase não se percebe a presença do tanino, persistindo
o gosto na boca por muito tempo. Vinho extraordinário!
Antonio
propôs um brinde, quando até a Marilinha fez tin-tin com o seu copo de guaraná;
o comandante do brinde disse algumas palavras referentes à nossa estada tão
agradável e, sem delongas, houve a tradicional “batida de copos”; alguém já
disse que a felicidade são momentos felizes; estávamos felizes!
Antonio
Neto, como sempre muito curioso, quis saber quem inventou o tin-tin; dei-lhe a
explicação que ouvi, há muitos anos do Dr. João Damasceno Porto, médico amigo e
amante do vinho, embora ele tenha me afirmado na ocasião, que não tem
compromisso com estes dizeres, ouçam o que expus ao meu neto:
- Dionísio,
deus grego do vinho e da fertilidade (não confundir com Baco), iniciou a
prática de fazer o som ao bater duas taças uma na outra, para que a experiência
sensorial de degustar um vinho seja mais completa; o vinho evocava, até então,
quatro dos cinco sentidos (vista, olfato, tato “na boca” e gosto), a audição
estava ausente, portanto...
Não sei se foi de Dionisio esta outra afirmativa: -
Normalmente o brinde deveria, não por casualidade, começar no final da comida,
depois que o prato principal e a sobremesa já foram terminados, momento em que
estamos em paz com nosso estômago e com a língua “mais solta”.
João Paulo, que até aquele momento nada falava, só ouvia,
aliás, como é o seu costume (que Deus me perdoe esta mentira!), quis saber, com
a nítida intenção de dar um aperto no Vô, de onde veio a palavra tin-tin; para
azar do “vagabundo”, desta vez eu sabia a explicação e divido minha “sabença”,
como diria meu amigo Batistão, com meus leitores que ainda não sabem:
- Tin-tin é expressão universal, é uma onomatopeia da palavra
chinesa chin-chin (chin – felicidades, chin-chin, muitas felicidades).
Como todos observaram, nada falei sobre o prato que
escolhemos (bacalhau), sobre o soberbo e gabaritado atendimento prestado pelo
maitre Marcelo Melo e tampouco falei sobre a suavidade do piano que tocava, à
surdina, no fundo do restaurante, músicas suaves, como convinha; é sempre
assim, o vinho, como aconteceu com o Angélica Zapata daquela noite, costuma
assumir a onipresença do ambiente onde ele é degustado e principalmente as
circunstâncias que leva um grupo de pessoas, como acontecia ali, a comungar
momentos de felicidade pelo encontro, que será único, como sempre é único cada
encontro.
Não sei se
foi o vinho que tornou o bacalhau tão apetitoso ou se foi a nobreza do
atendimento do maitre Marcelo Melo, que tornou aquele momento único e especial,
ou se foi o piano, executado pelo pianista Eron Silveira, que harmonizou ainda
mais o que já estava agradável.
Não sei! Por mais que tente encontrar palavras que sintetizem
esta harmonia, não consigo, porém, acho que estou em boa companhia; vejam o que
disse o escritor argentino Ernesto Sabato:
- Bastam umas poucas notas para que Mozart (Eron Silveira)
crie uma atmosfera tão sutil e inefável que um escritor não conseguirá, jamais,
suplantá-lo com qualquer número de páginas que ele escreva.
Foi o que aconteceu naquela noite quando o pianista tocou, a
nosso pedido, a maravilhosa canção austríaca “Edelweiss-edelvais” como grande
finale.