MINHAS CRÔNICAS

domingo, 29 de abril de 2012

BATISTÃO CORREU DA ONÇA NO TOCANTINS


                              Estávamos, meu filho José Paulo e meu genro Dr. Antonio, sentados à varanda da casa da fazenda São Pedro, encravada no meio da serra do Monte do Carmo, no estado do Tocantins, aguardando o carvão pegar fogo para assarmos uma picanha; observamos que o Batistão estava muito quieto, um pouco amuado e amargoso, sentado um pouco afastado do grupo, porém, sem desprezar a latinha de cerveja que de tempos em tempos lhe era servida.
                               Dr. Antonio não aguentou aquele silêncio, puxou-lhe a língua com a intenção de ouvir as suas ultimas “estórias”, até porque ele ouvira o outro funcionário comentando a respeito do “apuro” que ele, Batistão, passara no período da manhã.
                               - Batistão, ouvi dizer que você enfrentou uma onça nas imediações da grota some-some?
                               Enfrentou não é bem o que aconteceu Doutor, na verdade o Batistão teve dificuldade para escapar de uma onça vermelha que estava rondando aquelas bandas, disse o Marrequinho, piscando um dos olhos para a plateia e com evidente intenção de “cutucar” o companheiro.
                               Sei que alguns leitores devem estar curiosos tentando se situarem no local onde o Batistão, supostamente, encontrou a temida gata, dou-lhes os detalhes:
                               A fazenda São Pedro tem a topografia um pouco acidentada, principalmente para as bandas de onde estamos falando, a grota “some-some” que, como o nome está querendo dizer, possui uma profundidade bastante avantajada e o seu “apelido” advém do fato, segundo os peões comentam,de que se uma pessoa estiver na sua borda precisará gritar bastante alto para o companheiro que estiver no seu fundo consiga ouvi-lo, pois a voz ... some no caminho.
                               Embora não faça parte desta narrativa, acho conveniente dar esta explicação: é voz corrente entre os peões a “informação” que lhes foi repassada pelo próprio Batistão, de que a voz some no caminho é por causa da inveja do falecido “Zé da grota” que ao cair no precipício, há vários anos, gritou muito e ninguém foi socorrê-lo e agora “ele” quer trazer mais gente para perto dele; não sabemos se isto foi invenção do Batistão; se foi ou não, ele passou a acreditar nesta possível ocorrência e toda vez que é, por dever de oficio, obrigado a ir para aquelas bandas ele nunca vai sozinho.
                -Homem prevenido vale por dois, sempre que surge a ocasião ele repete este ditado com muita convicção.
                               Batistão sempre foi muito supersticioso, acredita em todas as histórias de assombrações que lhe contam; hoje, por exemplo, ele estava bastante preocupado, um cão, que segundo ele, estava muito longe, virou a boca para o lado da sua casa e começou a uivar em plena madrugada, uivo triste, parecendo que queria enviar-lhe uma mensagem; na manhã, ao se levantar, deparou-se com um beija flor muito preto que esvoaçava feito um doido por todos os cômodos da sua casa – Se fosse verde, seria boa noticia, porém, o preto é má noticia, disse ele com muita crença. 
                               Daqui para frente passo a palavra ao Marrequinho, que foi testemunha ocular do ocorrido, para contar-nos a razão do estado de espírito do Batistão:
                               Havia uma determinação de irmos, Batistão e eu, à grota “some-some” buscar um manco de aroeira para substituir outro de angico que havia apodrecido; antes de sairmos, vários outros peões alertaram-nos sobre a presença de uma onça, possivelmente parida de novo, rondando aquelas imediações.
                               Se existe uma palavra que dá sufoco no Batistão, está é onça, todos conhecem seus históricos encontros com o felino e em pelo menos duas vezes, ele passou por grande perigo, uma delas é o acontecido hoje; no caminho ele já foi esconjurando a empreitada – não é por medo, mas sim por respeito, disse ele mais de uma vez.
                               Nossa estratégia era descer no precipício, preparar o pau que levaríamos, amarrar uma corda na sua extremidade e depois vir buscá-lo com o auxilio de um trator que o arrastaria para fora da grota; Batistão pediu-me que descesse primeiro porque ele precisava, antes de nada, definir um plano de fuga no caso de acontecer um desenlace: a gata aparecer.
                               Amarrou a ponta de uma corda em uma árvore “minduim-brabo” localizada nas imediações do buraco e jogou-a para dentro do “some-some”: caso haja necessidade vamos subir feito o Tarzan fazia naqueles filmes de antigamente, vamos trabalhar sem as botinas para termos mais firmeza e rapidez na hora de agarrar no barranco; os cavalos vão ficar já bem de vista!
                               Depois de todos estes preparativos, começamos a lavrar o pau de que precisávamos, notei que o Batistão estava inquieto, azaranzado, olhava para tudo quanto é lado à procura de qualquer sinal de alerta; quem procura acha! De repente ouvimos um barulho vindo de bem longe de onde estávamos e que à medida que os segundos passavam, aumentava o seu volume.
                               - É a onça, fica velhaco home de Deus, vamos subir pra riba enquanto é tempo!
                           Dito isto, Batistão não gangorreou na indecisão nem inzonou na pensa, em duas ou três arrancadas chispou buraco acima, de onde iniciou uma carreira de dar inveja a qualquer cavalo de hipódromo; de um pulo montou no “criolinho” e meteu a espora no sobaco do alazão, deu umas pauladas no lombo do bicho e este empinou e como não animal plancheador, preferiu jogar o Batistão no chão.
                               Ele se esquecera de que o cavalo estava amarrado no “minduim-brabo”!
                               Quanto a onça, tratava-se, na verdade, de um casal de araras azuis         fazendo a maior estripulia.

sábado, 21 de abril de 2012

FOLCLORE GOIANO


                No começo do ano de 1938, o escritor e folclorista paulista José A. Teixeira esteve em Goiás a convite do então governador Dr. Pedro Ludovico Teixeira. Seu desiderato era estudar, in loco o folclore goiano, tendo em vista, segundo suas próprias palavras “ser Goiás o estado mais rico em tradições verdadeiramente nacionais, ainda não deturpadas pela onda europeizante do litoral”.

                 Visitou dezesseis localidades, sobressaindo-se, pela riqueza do material coletado, as de Morrinhos, Itaberaí, Jaraguá, Ipameri, Goiandira e Santa Luzia; nestas cidades sua atenção foi centrada, principalmente em três ramos do folclore: cancioneiro, contos, lendas e superstições.

                O resultado final desta sua peregrinação foi a publicação do livro Folclore Goiano, com duas edições, 1940 e 1958, ambas da Cia. Editora Nacional.

                O escritor e folclorista paulista ficou encantado com a figura do cantador de desafios que é a figura central das festas e pagodes do sertão; este é, normalmente, analfabeto ou semianalfabeto, porém possuidor de “poesia esplêndida, com grande expressividade das imagens, além de prodigiosa memória e grande agilidade mental”.

                O autor faz referência a uma noitada em Ipameri, a convite do prefeito Dr. Frota, quando o cantador Adolfo Mariano, de Goiandira, desafiou um soldado do 6º. Batalhão do exército para um desafio acompanhado de viola; a contenda só terminou de madrugada, assim mesmo pela intervenção do Prefeito, pois nenhum dos dois queria se considerar vencido na porfia.

                Foi, no entanto, em Goiandira, graças à solicitude e, principalmente o espírito clarividente do então Prefeito, Cel. Absay Teixeira que ele, realmente, se aproximou de Adolfo Mariano de Jesus, “homem de meia estatura, moreno, magro, pais mineiros, lê e escreve; sempre com sua viola, toda enfeitada de fitas”.

               Este homem sertanejo, cuja fama, apesar da sua modéstia, corria sertão afora; durante sua vida escreveu versos sonoros para a memória popular, dentre estes sobressaem os referentes à coluna Prestes e à revolução de 1930; sua moda fornece dados históricos e reacionais da população sertaneja, ante estes dois acontecimentos; além deste particular enfoque, sua poesia registrou, também, os velhos processos políticos e eleitorais da época e na região onde morava, quando imperavam a fraude e a violência.

                 A coluna Prestes, como registra a história, deixou marcas profundas e quase sempre amargas na memória da população rural por onde passava; por quase dois anos Goiás foi o palco das suas atividades revolucionárias.

                A revolução de 1930, chefiada aqui em Goiás por Dr. Pedro Ludovico Teixeira, mereceu acolhida mais cordial da população, como atestam os versos de inúmeros cantadores, recolhidos pelo folclorista no seu livro que citamos acima. 

                O que Adolfo Mariano tem a dizer, na verdade ecoando o que pensava o caboclo, a respeito da coluna Prestes eram versos hostis ao movimento, uma vez que a contrapropaganda governamental também trabalhava neste sentido, fazendo ecoar negativamente toda a sua movimentação.

               Acompanhem comigo a reação do poeta-cantador frente aos dois acontecimentos.

             

ABC da revolução- coluna Prestes (alguns versos)



Amigu leia estis versu  

I presti bem atenção,

Neli queru dar us dadu 

Da ultima revolução,

Desde u Piris du Riu              

Até u velhu Catalão.



Coluna Siquera Campus

Chegandu naqueli pontu,

Feis logu requisição

Pidindu cincuenta contu;

Numa ocasião de crisi

Achou todu mundu prontu.



Demoraram alguns minutu

I começô a malvadeza,

U Siquêra autorizô

Qui ali fizesse limpeza,

Saquiasse o dinhêro

U restu desse à pobreza.



Zoroastru di Artiaga

Logu tirô uma linha

Fugiu levandu a mudança

Puxada numa carrocinha

I pidindu aos que ficassi

Ninguem dê nuticias minha.





                                     

Moda da Revolução de 1930 (alguns versos)



Desculpi franquezas minhas,

Licença, caro leitor,

Vou rabiscar estas linhas,

Com frases mesquinhas                           

Di mau improvisador



Por aqui foi importante                     

Não vou escrever mentira,

Só achei interessante,                

Pois até mesmo os defunto    

Deram voto em Goiandira.



Temos em nossa fronteira

Trabalhando com proveito,

Sinhor Absay Teixeira

Nosso futuro prefeito,

Vae seguir bôa carreira

Por ser moço e sem defeito                                                                                         .



Aqui em nosso Estado

Quando soubemos da vitória

Todos que tinham votado

Pelo lado dos Caiados

Deram as mãos a palmatória



Viva o governo atual

O território brasileiro

Aliança Liberal

Plano de bravos guerreiro,

No livrou de um grande mal

Libertou de um cativeiro.



Achei prudente, aliás, como fez o autor do livro, manter a grafia das palavras como foram escritas pelo poeta-cantador, para que fique demonstrada a sensibilidade e a intuição poética que emanava do seu âmago, apesar do seu semianalfabetismo

Na região do sul de Minas Gerais onde nasci, tive oportunidade de ouvir nos idos anos de 1950, geralmente ao redor de uma fogueira, duplas de cantadores em desafio; claro que não ficaram, para mim, registros das letras daquelas cantorias, ficou, somente a marca indelével daquele acontecimento que o tempo não apagou.   

             


quinta-feira, 19 de abril de 2012

TESTEMUNHO DE UM CIRURGIÃO – Meu encontro com Da. Gercina Borges Teixeira

Se observarmos a biografia dos grandes homens iremos sempre encontrar ao seu lado a mulher que lhe dá suporte, embora esta figura nem sempre apareça com a luminosidade merecida; muitas vezes estas criaturas preferem, vencendo inclusive o desejo pessoal de mostrar suas potencialidades, sujeitarem-se ao anonimato, com o intuito de não desviar os holofotes que são dirigidos ao companheiro.
             Algumas delas, mesmo não desejando fazer sombra ao marido, realizam por atos e exemplos, feitos que as põem em evidência no meio da sociedade em que vivem; independentemente dos seus anseios pessoais são colocadas diante de fatos consumados que as obrigam a assumir, de maneira definitiva, o compromisso com a história.
             Todos os biógrafos de Pedro Ludovico Teixeira ressaltam, com justiça, a sua trajetória de vida política, social e familiar, porém, a figura da sua esposa Da. Gercina, cognominada pelo povo da nossa terra de “A grande Dama” nem sempre é realçada com a dimensão que ela merece.
            A história da vida dos homens é escrita em capítulos e a função do historiador é juntar estes fragmentos que ficaram dispersos em épocas que a sombra dos tempos embaralhou e trazer à tona os coadjuvantes do ator principal que, de alguma maneira, tiveram atuação no enredo da vida; alguns destes coadjuvantes não serão lembrados, são como os soldados das frentes de batalha que morrem no anonimato; os que sobrevivem entram para a história como simples narradores dos feitos dos seus generais.
            A minha profissão de médico tem me proporcionado a oportunidade de me aproximar de muitos destes ídolos da vida pública; guardo nas minhas lembranças o relacionamento que mantive com alguns deles, estrelas ou coadjuvantes, sempre motivados por alguma relativa dificuldade existencial que eles traziam ao meu conhecimento, na expectativa de encontrar consolo e possível alivio de sofrimento.
            Poucas profissões permitem, já no primeiro encontro, esta aproximação tão carinhosa provocada pela empatia médico/paciente; o médico (o que tem ouvidos para ouvir) ouve o relato do ser que se posta à sua frente cheio de temores e incertezas; logo no primeiro encontro, como num passe de mágica, adentramos no seu recôndito e passamos a ser testemunhas e confidentes das suas dores e das suas incertezas.
            A partir daí o paciente nos “acompanha” em todas as nossas movimentações diárias, parece que passam a fazer parte da nossa família!
            Não existe honraria maior para um médico do que a de ter a oportunidade de tentar ser útil a figuras que a história registrará com marcas indeléveis; conto-lhes um destes acasos que o destino me reservou - o encontro com Da. Gercina, esposa do Dr. Pedro Ludovico Teixeira.
            Ela veio sozinha (na verdade, provavelmente algum acompanhante ficou na sala de espera), se identificou (claro que não haveria necessidade) como se fosse uma paciente comum; confesso-lhes que fiquei emocionado (eu era tão jovem!); não poderia deixar de saber que estava ali na minha frente uma das mulheres mais importantes da história de Goiás.
            Ela deve ter percebido meu embaraço, ajudou-me a ficar à vontade, iniciando comigo um diálogo que nunca mais iríamos interromper a não ser minutos antes da sua morte.
            Informou-me que foi encaminhada pelo seu cunhado o médico Dr. Diógenes Magalhães, o qual, segundo ela, confiava muito na medicina goiana; chamou-me a atenção a sua maneira simples de se vestir, quase sem adereços e ausência completa de afetação. Fiquei feliz, muito feliz por conhecê-la e principalmente porque ela, como figura humana, ultrapassou os limites das minhas expectativas.
Infelizmente o diagnóstico da doença não lhe era muito favorável, com prognóstico reservado; operada, acompanhei-a no consultório durante muitos meses, nunca ouvi de Da. Gercina um reclamo, um lamento, voltando sempre nos dias marcados para revisões e tratamento quimioterápico (naquela época as drogas apresentavam muitos efeitos colaterais, causando-lhe sofrimento).
            Ela achava tudo natural, não ficava bem para uma “Grande Dama” reclamar de pequenas coisas; tinha somente uma preocupação: - “Não deixe o Pedro se inteirar do meu estado de saúde, ele não tem estrutura para suportar estas coisas”; ela se esquecia de que o Pedro era médico, portanto vivia dia e noite todos os problemas da companheira.
            Há um episódio que preciso realçar para o conhecimento dos goianos: quando falei ao Dr. Pedro sobre a necessidade de intervenção cirúrgica ele não discutiu a indicação; pediu-me o orçamento, disse-lhe que fosse ao Hospital São Salvador para discutir os preços, uma vez que o cirurgião e a equipe nada lhe cobrariam. Alguns minutos depois voltou e pediu-me alguns dias de prazo antes de encaminhá-la para o Hospital. Não lhe perguntei a razão e nem ele falou-me qual seria; depois fiquei sabendo que este prazo seria necessário para ele ir a sua fazenda vender algumas vacas para custear as despesas hospitalares.
              Episódio emblemático da vida pública brasileira se compararmos com os dias atuais; embora Dr. Pedro Ludovico Teixeira tenha “mandado” no estado de Goiás por mais de trinta anos, não tinha condições financeiras para acudir a companheira com quem vivia há quase sessenta anos; pediu-me que adiasse a cirurgia por alguns dias para arrecadar dinheiro para atender as despesas com o internamento hospitalar!
                Infelizmente a evolução da doença foi inexorável; quando pressentimos que a medicina não mais podia ajudá-la, atendemos ao seu pedido de voltar para sua casa, segundo ela disse na ocasião: “Aquela casa da rua 26, onde vivi grande parte da minha vida, me reserva grandes recordações que estão sempre presentes no meu coração”.
            Poucas horas antes de falecer, tive mais uma prova da fibra desta mulher; chamou-me para bem perto, puxou-me pelos braços e falou-me quase que cochichando: “Dr. Hélio, o senhor nunca me enganou, sabia do diagnóstico desde minha primeira visita ao seu consultório, agradeço-lhe a tentativa de enganar-me, porém, não poderia baquear para não transmitir desassossego ao Pedro. Em todos estes anos o Pedro passou por crises piores do que esta que curso agora e nunca deixou transparecer qualquer abatimento!”.
                        Nós médicos, infelizmente, estamos acostumados a ver pacientes morrerem; no entanto, não conseguimos aceitar placidamente a vitória da morte; tomado de pungente emoção beijei sua fronte; senti naquela oportunidade que, com Da. Gercina morria também um capítulo importante da história de Goiás.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

A IGREJA CATÓLICA NA VOZ DE ALCEU AMOROSO LIMA

                 Em 1957, quando sai da casa paterna pela primeira vez na vida e fui para Curitiba à procura do sonho de estudar medicina, levava comigo o verdor,  a coragem da mocidade e a vontade de realizar o desejo acalentado nas previsões da minha mãe; carregava no subconsciente toda a minha formação católica, principalmente minhas lembranças de ter sido “coroinha” na igreja de Gaspar Lopes, lugarejo onde nasci, no sul de Minas Gerais.
                  No segundo semestre de 1958 fui morar em uma “república” e meu companheiro de quarto era um estudante de medicina, para minha sorte, também muito religioso. Gilberto, era o seu nome, ia à missa todos os domingos, levando-me em sua companhia em muitas oportunidades.
                  No livro que escrevi em 2001 (Entre o sonho e a realidade, do Brasil dos anos 60 à Rússia dos anos 90, Ed. Kelps), conto com alguns detalhes uma das lembranças que ficaram marcadas deste convívio fraterno com Gilberto: quando os cardeais da igreja estavam reunidos no Vaticano, decidindo sobre a indicação do sucessor de Pio XII e Gilberto, na sua ansiedade, acabou contaminando-me; achava ele que se não se conseguisse escolher a pessoa certa, poderia criar-se um “cisma” no seio da igreja, com enorme dificuldade para a religião católica.
                  O sinal de que os cardeais haviam chegado a uma definição seria a saída de fumaça branca na chaminé da Santa Sé (Se fosse fumaça preta seria indicativo de que não havia, ainda, consenso no escrutínio). Este acontecimento foi noticiado em edição extraordinária pelo “repórter Esso” e foi recebida, por nós dois, até com emoção.
                 Ao chegar ao apartamento, Gilberto estendeu-me a mão, gesto que não estava entre os seus costumes, dizendo-me com indisfarçável emoção:
                 - O nosso Papa foi escolhido!
                  Bisbilhotando a longa correspondência mantida entre o professor, filósofo, pensador e, sobretudo, fervoroso católico Alceu Amoroso Lima, também conhecido pelo pseudônimo de Tristão de Athayde e sua filha madre Maria Tereza (João XXIII, Ed. José Olympio, 1966 e Cartas do Pai, Inst. Moreira Sales, SP,  2003), procurei focar o período correspondente ao tópico transcrito acima para que os leitores possam  comparar o estado de espírito de dois jovens católicos (Gilberto e eu) com o de quem já era, naquela época, conceituado e respeitado humanista.
                 Alceu Amoroso Lima, então com 45 anos de idade, vivia em Nova York, onde ministrava um curso sobre “Civilização Brasileira” a convite de uma Universidade.
                 Pela correspondência entendemos que havia por parte de Amoroso Lima, preocupação semelhante à  nossa, a respeito da decisão dos Cardeais na escolha do sucessor de Pio XII, senão vejamos:
                “ Carta de 13,10. 1958... Você verá a lista dos Cardeais papáveis. Com que melancolia não vejo ali o nome de Monsenhor Montini, o nosso candidato; 19.10... Eu vim para a Igreja na mesma ocasião em que senti inclinação pelas ideias dos dois últimos Pios. Se agora vier um novo Pio IX ou um novo Pio X, deverei calar minha pena? Houve Papas maus, como homens, ao longo da História. Mas nunca houve Papas errados, como Papas. O que sair do Conclave será o melhor, como Papa, embora possa ou não o ser como homem; 27.10... Ontem houve dois rebates falsos partidos da própria radio Vaticano, que se enganou com a cor da fumaça. Quatro escrutínios em vão; 29.10... Então temos novo Papa, João XXIII. É paternal, os comunistas já o classificam de “um conservador paternalístico”.Era o candidato dos Cardeais franceses, o que nos afasta dos perigos reacionários. Ele é um intervalo, um descanso, um banco, um copo de água, uma cadeira de balanço, depois desta tremenda abertura de caminhos feita por Pio XI e Pio XII.  O Espírito Santo viu isto lá de cima!; 21.01.59...Leio no jornal que o Osservatore Romano de hoje publica um artigo reafirmando a incompatibilidade formal entre socialismo e a doutrina social da Igreja; minha posição é a de um distributivo. Nem capitalismo, nem socialismo. Em Roma, as forças reacionárias é que continuam dominando os círculos do Vaticano. O Vaticano vai guinar para a direita, isto é, para o catolicismo aliado à aristocracia, à burguesia e separado das classes populares”.
                Recorro, mais uma vez, ao meu livro citado acima, e transcrevo mais um trecho das nossas “discussões” a respeito da posição da Igreja Católica no inicio do Pontificado de João XXIII, para que se compare com o que diz Alceu de Amoroso Lima:
              “Estávamos reunidos (jovens universitários, muitas vezes nas mesas dos bares de Curitiba, degustando uns chopes) para analisar a participação da JUC (Juventude Universitária Católica) na formação da AP (Ação Popular), tendo em vista as mudanças que estavam ocorrendo em algumas conceituações filosóficas da Igreja Católica, no Pontificado de João XXIII. A ideia desta corrente mudancista (segundo nosso entendimento) tentava dar novo direcionamento ao pensamento social do catolicismo, ao indicar a opção por um socialismo católico de inspiração não marxista. Esta corrente buscava apoio em pensadores católicos, principalmente Teilhard de Chardin, Maritain e Lebret, que se diziam seguidores de uma “ideologia própria” e chamavam isto de socialismo-humanista”.
               Ao compararmos o que pensávamos ou éramos levados a pensar a respeito do catolicismo “socialista” e o que, realmente, pregavam aqueles pensadores, observamos que nossa opção pelo socialismo-humanista, como doutrina católica, não era, seguramente, a visão daqueles filósofos, pelo menos não era  a de Maritain, a quem Alceu Amoroso Lima, devotava imensa amizade e comunhão de ideias, como vemos na carta que ele,  Alceu, escreveu  para sua filha, madre Maria Tereza, datada de 01.06.59...”Segundo Maritain, civilizar é espiritualizar, a lição de Cristo nos ensina que nada que é construído sobre a matéria é durável. Cristianizar o mundo moderno não é aliar-se ao capitalismo, ao comunismo, aos militares, aos ditadores ou aos partidos, mas arrancar do mundo- ou tentar diminuir- a injustiça, a exploração, a miséria, a doença, o vicio, o pecado, a guerra, a violência e o crime”.
              Tínhamos a pretensão de mudar o mundo e adaptar nossas ideias à da Igreja Católica! 
               Erramos?  Não, tínhamos ilusões! Repito uma citação de Franz Kafka  e que escrevi nas ultimas linhas deste meu livro que referi acima: “Somos levados na vida, muitas vezes, por ilusões; fomos, com frequência, superficiais e otimistas. Os momentos são vividos no lapso dos acontecimentos, depois serão apenas tentativas de reconstrução dos fatos”. 

segunda-feira, 2 de abril de 2012

BORIS PASTERNAK – A LUZ CONTRA A ESCURIDÃO

         Semana passado tive oportunidade de ler uma revista que me provocou um pouco de nostalgia; tive acesso a uma edição do “The Paris Review” publicada no final do verão de 1960, onde é estampada uma entrevista do famoso poeta e escritor russo Boris Pasternak.
                       A citada entrevista, uma das poucas e provavelmente a ultima (ele morreu alguns meses depois) concedida pelo autor de “Dr. Jivago”, foi feita, a pedido da revista,  pela escritora Olga Andreyev Carlisle, na casa onde ele vivia, no vilarejo de nome Peredelkino, distante cerca de 20 quilômetros de Moscou; a nostalgia a que me refiro deve-se ao fato de que em 1998, ao visitar Moscou (Entre o sonho e a realidade – H. Moreira, Ed. Kelps, 2001), estive tão perto deste vilarejo e não tive condições de visitá-lo.
                  Olga conta com detalhes as dificuldades que ela enfrentou para conseguir a entrevista, tendo em vista que naquela oportunidade, ano de 1960, Pasternak andava arredio às manifestações da imprensa, especialmente da ocidental, tendo em vista o fato de que após ter recusado (sob pressão das autoridades soviéticas)a  receber o Prêmio Nobel de literatura que lhe foi conferido em 1957, principalmente pelo seu romance “Dr. Jivago”, ele se refugiou nesta pequena vila, onde morreu meses depois de conceder esta entrevista.
                Acompanhe comigo a descrição das peripécias que Olga enfrentou para conseguir conversar com ele; sintam a emoção da narrativa que ela fez (verdadeira obra literária) e procurem descobrir o que Boris Pasternak “escondia” no seu relato.
                A grande pressão política que ele recebia naquela época pode explicar a razão dele dizer, dentre outras coisas, que não havia “extravios” da correspondência que ele recebia do ocidente; por que então ele foi “enviado” para aquela vila? 
                Estava acontecendo em 1960 justamente o que ele  previu ao participar em Paris no ano de 1935 do Congresso Internacional de Escritores, (sob a presidência de André Gide) e que tinha o intuito  exclusivo de manifestar apoio à União Soviética; ao ser-lhe concedida a palavra ele disse em mensagem cifrada:  “Falar de política? Fútil, fútil... política? Para o campo, amigos, ide para o campo colher flores!”.
                O grande diferencial entre estas duas ocorrências é que, por ocasião daquele congresso ele contava 45 anos de idade e agora 70.
                Escreve Olga “Era um domingo em Moscou, decidi ir Peredelkino; era um dia radiante; no centro da cidade, onde estava, uma chuva de neve batia nas cúpulas douradas do Kremlin, as ruas estavam apinhadas de gente, famílias, que caminhavam descompromissadas com o tempo; tomei um taxi e fui para a vila de Peredelkino, distante 20 quilômetros de Moscou”.
                Ao chegar frente à casa de Pasternak, ela se deparou com um aviso escrito em inglês, na porta da entrada “Estou trabalhando, não posso receber ninguém, por favor, vá embora”; salvou-a de não perder a viagem o fato de que o seu avô, o escritor russo Leonid Andreyev, ter sido grande amigo de Pasternak.
                A casa de Pasternak, continua ela “ localizava-se à beira da estrada, bem próxima das montanhas, onde muitas crianças brincavam de “esqui” e trenós; havia, separando a casa da estrada, uma cerca feita de madeira. A sua varanda assemelhava-se a uma casa de fazenda norte-americana de 50 anos atrás, os móveis são confortáveis, embora velhos transmitem um clima de austeridade e hospitalidade, característica das casas dos intelectuais russos do século 19”.
                Convidou-a adentrar a casa e passou a lhe contar alguns fatos da sua vida presente e passada; muitos escritores e artistas russos, disse ele, viviam naquela vila, em casas conseguidas pela ”União de Escritores Soviéticos”, inclusive o escritor Isaac Babel que morava em uma casa vizinha, onde foi preso pela policia soviética em 1939 e morreu, segundo as autoridades, em um campo prisional na Sibéria em 1941.
Olga continua narrando:  “Alguns passos dentro da casa, iniciando pela cozinha que é pequena, um fogão velho e que tem a função, também, de ajudar a secar a neve das roupas; na sala de jantar, uma janela envidraçada, tendo no seu parapeito, um canteiro de gerânios; nas paredes algumas pinturas que foram feitas por seu pai (Leonid Pasternak), retratando Tolstoi, Gorki, Rachmaninov e algumas gravuras retratando Boris Pasternak, seus irmãos e irmãs quando crianças. Este era o mundo de Pasternak, suas reminiscências à vista, onde escrevia seus poemas sobre sua vida e seus amores de adolescente.
                Ele queria saber noticias sobre política e literatura na França (onde ela morava) e dos Estados Unidos, mostrou estar bem informado sobre os acontecimentos políticos e culturais no estrangeiro; falei-lhe da qualidade musical que ele imprime às palavras, respondeu-me: “Escrevendo ou falando, a musicalidade das palavras não tem nada a ver com som, ela não resulta da harmonia de vogais e consoantes, mas sim da relação entre o falar e sua significação. O significado das palavras sempre é considerado em primeiro lugar”.
                De repente, diz Olga, “dei-me conta de que estava falando com Pasternak, um homem de 70 anos de idade, um ícone da literatura mundial, com aparência jovem e com boa saúde”.
              Um enigmático homem, completo eu, longe daquele que escreveu em 1959 este libelo que transcrevo (os primeiros versos), contra as forças do obscurantismo, ao ser forçado a renunciar ao prêmio Nobel de Literatura.
                Prêmio Nobel (tradução livre do inglês)

                Sou um gangster ou assassino?
                De que crime sou acusado?
                Condenado? Eu fiz o mundo chorar pela beleza da minha terra!

                Mesmo assim, a um passo da minha sepultura
                Eu acredito que a crueldade, apesar do poder da escuridão,
                Será esmagada, com o tempo, pelo espírito da luz.