MINHAS CRÔNICAS

quinta-feira, 20 de outubro de 2011

ESCREVER COMO HEMINGWAY? ESTUDE JORNALISMO!

Durante o século vinte, na minha visão, dois escritores eletrizaram a moderna literatura norteamericana: Scott Fitzgerald e Ernest Hemingway.

Embora haja que se reconhecer que houve muitos outros grandes escritores que serão sempre lembrados, porém, estes dois eram casos diferentes, pois, suas histórias de vida os aproximaram (ambos boêmios), tornando-os amigos e, no final, separou-os.

Por ocasião do primeiro encontro dos dois (em um bar) Fitzgerald já era autor consagrado, principalmente depois da edição do seu livro “Great Gatsby – Grande Gatsby”, porém, Hemingway viria a mudar o estilo da literatura, suas histórias falam das suas experiências pessoais com a guerra, o amor, sexo, dinheiro e, também, religião.

É preciso lembrar que embora fosse um gênio, Hemingway teve que percorrer um longo caminho de aprendizado até atingir quase que a perfeição como contador de histórias; é sobre esta fase de aprendizado que pretendo discutir com meus leitores.

Após terminar os estudos preliminares (high school) na sua cidade natal, subúrbios de Chicago, no estado de Ilinois, onde, aliás, ele publicara algumas histórias ficcionais no jornal da escola, conseguiu, com a ajuda de um tio, uma vaga no jornal “Kansas City Star”, na cidade de Kansas City, no estado de Missouri, em outubro de 1917, para onde se mudou, com apenas 18 anos de idade.

Naquele jornal, como ele contou muitos anos depois, teve a sorte de trabalhar sob as ordens de Clarence Wellington, naquela época o editor chefe da redação, cuja reputação entre os jornalistas era o de ser exigente com seus repórteres, exigindo a manutenção da uniformidade estilística da escrita do jornal, obrigando-os a seguirem os seus “110 mandamentos estilísticos do Star”.

Estes mandamentos eram o guia para cada sentença e cada parágrafo que o repórter escrevia; Hemingway, desde o inicio, aderiu a estas regras estilísticas; conhecê-las era para o jornalista o que para o soldado era entender de as armas de guerra e estes princípios foram por ele considerados em toda sua escrita futura, como afirmou em entrevista em 1954, logo após ter ganhado o prêmio Nobel de Literatura.

Hemingway trabalhou naquele jornal por apenas seis meses, este tempo foi o suficiente para ele adquirir experiência com o mundo real da criminalidade, da violência, da emoção e, sobretudo, com a ansiedade da humanidade, pois, sua atividade era cobrir a movimentação na chefatura de policia e nos hospitais.

Escrevia suas reportagens como se fossem mini-contos, utilizando-se das regras do “Star”: estilo sucinto, colocando, somente, sentenças necessárias, poucos adjetivos, especialmente os extravagantes, como esplêndido, magnificente, deslumbrante, etc.; alguns destes escritos, ou seus personagens, foram aproveitados mais tarde em suas publicações, como no livro de contos “In our time - Em nosso tempo”.

Não cabe aqui transcrever todas as 110 regras do jornal, porém, cito algumas que Hemingway incorporou na sua vida de escritor: Use sentenças curtas; escreva o primeiro parágrafo do artigo com poucas palavras; use linguagem vigorosa, seja positivo, nunca negativo (ao invés de dizer que “alguma coisa não é”, diga o que “aquela coisa é”); não perca tempo e palavras, vá direto ao ponto; examine cada palavra como se a estivesse vendo pela primeira vez; ao escrever sobre o horário do acontecimento, coloque em primeiro lugar o horário porque segura mais a sua frase (“09h30min desta manhã” e não “Nesta manhã as 09h30min”).

Depois da experiência que adquiriu em Kansas City e principalmente com as lições que aprendeu como repórter, passou, segundo disse algumas vezes, a capturar com maior facilidade o que a vida permitia que fosse testemunha; usou o ouvido de repórter para escutar outras pessoas e transformar estas experiências em histórias que passou a contar.

Certa feita pediram-lhe para definir um bom escritor; “primeiro há que se decidir sobre o que se vai escrever, ao invés de escrever sobre o que ele leu, escreva sobre o que ele viveu”; a coisa mais difícil para se fazer no mundo, emendou ele, “é escrever uma história sobre determinada criatura humana, pois, primeiro você precisa conhecer a criatura, depois você precisa saber como escrever, colocar as duas coisas juntas levarão a vida inteira para aprender”.

Outra das suas preocupações, aliás, aprendidas no jornal, era evitar, sempre que possível, o eco das palavras nos textos; no entanto o crítico literário Andrew Wilson, discute esta sentença no seu conto “Kerensky, o lutador”: “No tamanho, Léo era a pessoa certa para dar murros, porém isto nunca iria acontecer com Léo”. O eco da palavra Leo reverbera na frase.

Pode não seguir as regras do jornal, porém, ficou mais poético, penso eu.

Uma pérola da genialidade do artista da escrita, ao ser desafiado:

- Hemingway, você corta as palavras ditas supérfluas nos seus textos, então escreva uma história em seis palavras:

- “Para venda: sapatos infantis, nunca usados”.



sexta-feira, 14 de outubro de 2011

QUAL LIVRO VOCÊ LEVARIA PARA UMA ILHA DESERTA?

No final do ano de 1941, em plena 2ª. guerra mundial, com Londres recebendo ataques aéreos quase todos os dias, um programador da radio BBC de nome Roy Plomley, procurava uma maneira de trazer entretenimento para a população, de modo a aliviá-la um pouco do estresse provocado pela situação.

A idéia surgiu, segundo ele conta em suas memórias, quando em uma tarde estava descansando em sua casa ouvindo uma seleção de músicas que previamente selecionara; imediatamente a encaminhou para a direção da emissora e a mesma foi aceita; o formato era muito simples, consistia em convidar figuras conhecidas da política, das letras e das artes em geral, para escolherem oito musicas que, se pudessem, no caso de um naufrágio, levariam na sua bagagem, para uma hipotética ilha absolutamente deserta.

Para não haver dúvida quanto à exequibilidade do projeto, era colocado na mochila do náufrago, também, um gramofone

O primeiro programa, já então denominado “Desert island discs – discos em uma ilha deserta” foi gravado nos estúdios da BBC no dia 27 de janeiro de 1942 e foi ao ar dois dias depois, diretamente dos estúdios da “defesa britânica”, tendo em vista que a emissora havia sido bombardeada dias antes.

O primeiro convidado foi o comediante austríaco, naturalizado Inglês, de nome Vic Oliver, cuja escolha não foi por acaso, pois, por se tratar de um novo programa, precisava atrair audiência e Vic gozava na época, de enorme prestigio, e sua presença ao vivo no programa, certamente atrairia audiência, por ser realmente muito bom na sua atividade e também, por ser genro de Winston Churchill.

Sua escolha, “Étude No. 12 in C.minor, de Chopin” parece que foi, também, adrede estudada, pois, esta peça tem grande conotação histórica com o momento que a Inglaterra estava vivendo, segundo vemos em Wikipédia “É conhecida, também, como estudo revolucionário e que Chopin a teria composto em prantos, sob os ecos do bombardeio russo sobre Varsóvia e é, também, sabido que foi a última música a ser executada pela rádio livre da Polônia, antes de ser invadida pela Alemanha, no começo da segunda guerra mundial”.

Somente em maio de 1942 Roy apareceu no programa para dirigi-lo, e só deixou de fazê-lo quando morreu em 1985; de 1946 a 1951 o programa ficou fora do ar e, de lá para cá, até os dias de hoje, nunca mais deixou de ser exibido, todas as semanas, as 5ª. feiras, em horário nobre.

A partir daquele ano de 1951, foi introduzido mais um questionamento para o entrevistado; além da musica, ele deveria responder, também, que livro levaria.

Ao fazer uma pesquisa nos arquivos daquele programa, pude observar que durante muito tempo, os entrevistados só escolhiam musicas clássicas, tais como Chopin, Litz, Grieg, Schubert, Gounod, Tchaikovsky, dentre outros e que somente a partir do final do século passado, passaram a ser citados autores de musicas mais populares.

Quanto aos livros, pode-se observar que alguns autores e seus livros são constantemente repetidos pelos entrevistados, sobressaindo o livro de Marcel Proust - A procura do tempo perdido e depois, livros de Charles Dickens, Leo Tolstoi e Oscar Wilde.

Recentemente um site de venda de livros sediado nos Estados Unidos resolveu aproveitar aquela idéia e lançou um projeto denominado “desert island reads – leitura em uma ilha deserta”, cujo formato segue os mesmos passos do original inglês, como uma diferença, a escolha é dirigida somente para livros.

A dinâmica, também, é um pouco diferente, os entrevistados são, na sua maioria, escritores famosos, incluindo dentre eles, o brasileiro Paulo Coelho, que, aliás, escolheu Oscar Wilde, e os livros mais escolhidos foram Moby Dick (Herman Melville), George Bernard Shaw (coletânea), F. Scott Fitzgerald (Gatsby), Jorge Luiz Borges (obra completa), John Milton (Paraíso Perdido), Historias Árabes - 1001 noites e Charles Dickens (obra completa), dentre outros.

O site resolveu, também, entrevistar pessoas comuns, não famosas, da comunidade e o resultado foi, para mim, surpreendente, pois, com exceção de Guerra e Paz de Leon Tolstoi e O Mestre e Margarida de Mikhail Bulgakov, os demais livros escolhidos eram, na sua maioria, do gênero auto-ajuda, tais como: Como convencer os amigos e influenciar pessoas do autor Dale Carnegie, livros ensinando divertimentos com cartas de baralho, livros espirituais e o famoso livro de Daniel DeFoe – Robinson Crusoé’.

Recentemente, visitando meu amigo Prof. Joffre Marcondes de Rezende, amante da boa música de Mozart, Chopin e outros clássicos, falei-lhe sobre este texto; disse-me ele, com uma ponta de nostalgia: como o mundo vem mudando, no que diz respeito à cultura; é uma pena, emendou ele, que naquela primeira “enquete” não tenha sido abordada, também, as preferências de leitura dos entrevistados e, principalmente, não tenha sido investigado o que pensava a comunidade no que diz respeito aos livros.

Será que teríamos surpresas?

quinta-feira, 6 de outubro de 2011

UM DIA NO DIÁRIO DE HUMBERTO DE CAMPOS

Muitos escritores gostam de registrar suas atividades cotidianas em seus diários; o motivo que os animam nesta tarefa é a idéia de que estão escrevendo no presente com os olhos voltados para o futuro.

A literatura registra a presença de muitos escritores famosos adeptos desta prática, destacando-se, apenas para citar alguns exemplos o Fernando Pessoa, Thomaz Mann, André Gide e Virgina Woolf; no Brasil temos, também, vários representantes como Alceu Amoroso Lima, Josué Montelo e Humberto de Campos.

Gostaria de conversar com meus leitores sobre o Diário de Humberto de Campos, famoso escritor, jornalista e político que nasceu no ano de 1886 em Miritiba, hoje cidade Humberto de Campos, localizada no estado do Maranhão e morreu no ano de 1934 com apenas 48 anos de idade; embora não tenha tido muito estudo, tornou-se um dos escritores mais famosos do Brasil no início do século XX, com seus livros (geralmente crônicas mordazes e cômicas e poesias) atingindo tiragens inacreditáveis e inigualáveis na época.

Começou a escrever o diário em 1915, interrompeu em 1917 e voltou a escrevê-lo em 1928, só deixando de fazê-lo oito dias antes da sua morte em 1934; o autor teve o cuidado de guardar os originais nos cofres da Academia Brasileira de Letras, da qual era membro, com a recomendação de se publicá-lo apenas 15 anos após a sua morte.

Esgotado o prazo estipulado pelo autor, a revista O Cruzeiro, a de maior tiragem no Brasil daquela época (princípio de 1950) iniciou a sua publicação em fascículos semanais, com sucesso extraordinário de venda, reforçando, com isto, a sua qualidade de ídolo da literatura brasileira, mesmo passados mais de quinze anos da sua morte; posteriormente (1954) a mesma editora (O Cruzeiro), editou aqueles fascículos em dois volumes do livro que denominou “Diário Secreto de Humberto de Campos”.

É preciso que se diga que a publicação deste “Diário” causou enorme polêmica na época, pois, além de levar o leitor a acompanhar todos os episódios da sua doença, contrariamente ao que fez Virginia Woolf, que praticamente registrou no seu Diário apenas a sua doença depressiva, as anotações de Humberto de Campos continham críticas e comentários mordazes aos seus contemporâneos.

Gostaria de tecer algumas considerações apenas sobre algumas “entradas” do Diário no mês de janeiro de 1928, mês que ele iniciou com bastante otimismo, tendo em vista que era Deputado Federal pelo Maranhão há oito anos, família bem equilibrada, com três filhos, dezessete livros publicados, todos de grande sucesso de vendas e, principalmente, financeiramente em boas condições, como ele mesmo registra.

Naquela época era presidente do Brasil o Sr. Washington Luiz e Humberto de Campos era cotado para ser candidato ao Governo do Maranhão e, no “Diário”, ele não se furtava a discutir esta possibilidade.

No entanto, na vida nem tudo são flores, foi neste ano, no mês de janeiro, que lhe foi diagnosticada a doença denominada acromegalia que, infelizmente, demorou um pouco a ser descoberta, tendo em vista, a precariedade de exames complementares daquela época.

Acompanhem, comigo, algumas “entradas” no Diário, alusivas à sua doença:

“6 de janeiro de 1928 – Sensação de inchaço nas mãos (parece que uso luvas de boxe); Dr. Afonso Mac-Dowel, a quem consultei, chama isto de “edema dos escritores”; paulatinamente edema dos pés, nariz, lábio inferior, língua crescendo na boca. Causa? Amígdalas inflamadas, tratamento – amigdalectomia com muita hemorragia. Explicar tudo isto com a teoria do Dr. Mac-Dowel seria levar muito longe o efeito da pena, por que me incham os pés se eu, ao contrário de alguns colegas da Academia, não escrevo com eles.

Voltei ao consultório, o médico ficou surpreso com meu aspecto, vá fazer urgente uma radiografia, isto deve ser problema da hipófise, a glândula cerebral que preside a circulação e o tratamento é muito sério e demorado; não percamos tempo, senão, dentro de pouco prazo você estará inutilizado para o trabalho.

20 de janeiro – Febre alta; gripe? Consulto médico homeopata, Dr. Raul Hargreaves; receitou-me gotas de 2 em 2 horas, dormi e acordei sem febre; Edmundo Goncourt (escritor francês) dizia que a homeopatia é o protestantismo da medicina. Para meus outros males, vou aderir ao protestantismo. A alopatia mata e a homeopatia deixa morrer!

24 de janeiro – Submeti-me a um exame dental com o homeopata, contei-lhe o diagnóstico sobre o diagnóstico do alopata: meu problema é hipófise;

- Não, disse-me ele, o senhor tem é reumatismo articular. Devia haver um código penal para os médicos!”

Concomitantemente a estas preocupações com a saúde que, diga-se de passagem, piorava progressivamente pela impossibilidade de tratamento adequado naquela época (cirurgia da hipófise), Humberto Campos, ao lado de permitir, pelas “entradas” no Diário, acompanhar peri passo a evolução da sua doença e, principalmente, deixou registrada para a posteridade sua maneira delicada e lírica de narrar os fatos do seu cotidiano.

Finalmente, no dia 27 de novembro de 1934, oito dias antes de morrer, ele escreveu no Diário uma das mais belas manifestações de amizade, ao registrar a morte do seu grande amigo Coelho Neto, cujo último parágrafo transcrevo: “Despeço-me! E deixo que as lágrimas me corram pelo rosto, e que os soluços me tomem o fôlego, profundamente comovido. E mando à sua casa uma braçada de cravos vermelhos para o seu caixão”.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

BATISTÃO ENSINA MEDICINA ALTERNATIVA

Batistão, amigo muito mais que funcionário, tem conhecimento de certas “coisas” que muitas vezes duvidamos; há cerca de dois meses estávamos, na companhia do meu genro Dr.Antônio Leite e de vários peões, sentados à varanda da sede da fazenda Santo Antônio de Edéia, aguardando o carvão esquentar a picanha, quando ele, o Batistão, mostrou, mais uma vez, sua “verve”.

Conversávamos sobre doenças, para variar meu cotidiano de assuntos de saúde e, no meio da prosaria, saiu o assunto da morte do seu sogro, o finado senhor Marcolino Recoreco.

- Dotore, disse Batistão, desviando o olhar da latinha de cerveja que sorvia, dei um pouco de azar, se eu tivesse tido mais prazo para conseguir o remédio, acredito que hoje ele estaria aqui conversando com a nossa turma e contando mentiras.

- Acho difícil Batistão, pois, segundo sei, o caso dele era um câncer em fase muito avançada!

- Espera ai Dotore, só avançou porque nós não tivemos tempo de evitar.

- Que remédio é este, Batistão?

- É o chá de fel de urubu...

-O que?

- É verdade Dotore, atalhou o peão Ressaca, também profundo conhecedor da medicina alternativa, já ouvi falar muito neste chá, porém, tem que ser urubu de cabeça preta, não serve o urubu campeiro.

Batistão, preocupado pela possibilidade de perder os holofotes da discussão, interveio sem olhar para o interlocutor que endossava sua afirmativa – o problema Dotore é a dificuldade para matar o urubu; quando recebi a incumbência, convidei o compadre e cunhado Nico e fomos procurar o disgramado do urubu.

Compadre Nico tinha uma espingarda “rabo de cotia” que era “tiro e queda”, aporém, tinha, pra meu gosto, um defeitinho: o gatilho tinha que ser posicionado debaixo do queixo do atirador, o que dificultava, um pouco, fazer a pontaria; de reserva levamos a espingarda do Xelenguinho, uma “mola de arame”, com o gatilho sendo puxado de lado, bem no rumo do zóio que fica aberto na pontaria, como é o normal.

Prá dizer a verdade, verdadeira, eu prefiro esta à chamada “espingarda do Lao” onde o gatilho é puxado de cima, além de que o quebra espoleta é de tardança, dando até 10 tiros seguidos, sempre com adjutório da escova com lã de algodão para não tardar o disparo.

Sei que muitos dos meus leitores, talvez com exceção do amigo Bariani Hortêncio, que conhece bem este folclore, estão, assim como eu, um pouco confusos com tantas informações; ao tentar clareá-las um pouco, o Batistão, sem dar-me tempo, continuou seu relato:

- Uma vez meu primo Xexeu, lá na Bahia, deu um tiro no namorado da filha dele com uma espingarda “Lazarina”; o cabra da peste ficou oito dias na cama antes de morrer; o fato assustou todo mundo pela resistência do homem, pois, tiro com Lazarina é “pau-bosta”; anliás, quanto mais perto o alvo, melhor, a bala não pega açoite no balote ou no chumbo (sic); cem metros é o ponto, já a “filobé” é de 500 a 1.000 metros, variança de acordo com a pontaria do atirador.

- Batistão, por que este apetrecho todo só para matar um urubu?

- O senhor acha muito porque ainda não procurou matar um; acho que esta ave tem contrato com o capeta ou com as almas das carniças que eles comem. É difícil acertar um tiro num “escumunguento” destes; a gente faz a mira, apóia o coiceiro no queixo, prende a respiração, por causa do fedor da carniça e, prá não atrapalhar a mira, puxa o gatilho com a leveza do andado do gato e, mesmo assim, parece que a bala desvia do rumo; se não fosse a esperteza do compadre Nico, não tínhamos matado o tinhoso.

Vestimos uma capa preta (feita de lona preta) e fomos “arrastejando” até perto da carniça, não sabia se tapava o fôlego para não cheirar ou puxava o ar para acabar o sufoco; estava tudo combinado, quando o compadre Nico piscasse o olho direito, era para armar o tiro, piscar o esquerdo, prender o fôlego e apontar, fechar os dois olhos, prá evitar fagulha de chumbo, era para atirar.

Mas teve um problema, quando ele piscou o olho esquerdo, eu já tava há muito tempo sem respirar por causa da carniça, quando ele piscou o direito, já dei o tiro, não sei como acertei, pois fiz isto com os dois olhos fechados.

Trouxemos o urubu para casa e minha muié foi fazer o chá com o fel, dizem que o gosto é o mais amargo que existe no mundo, não há cristão que não chore na hora de provar; meu sogro estava muito fraco; sentamos o homem na cama e demos uma tigela cheia de chá, goela abaixo. A reação imediata foi um grito, parecia que estava sentindo dor, mas o compadre Nico disse que já era a reação favorável do remédio.

- Bebe compadre, bebe...tigum, tigum!

Ele arregalou os olhos, mas parece que não tinha muita força nos braços para tirar a tigela da boca. Bebeu tudo!

- E houve alguma melhora? Quis saber, um pouco curioso.

- Sei não, porque alguns dias depois ele faleceu, mas durante os dias que ainda viveu, notei umas reações muito esquisitas nele: não conhecia ninguém, eu passei a ser o homem do Parque dos urubus e o Nico, fio dele, passou a ser o pasteleiro do setor Coimbra.