MINHAS CRÔNICAS

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

O COLECIONADOR DE BUGIGANGAS

Sei que muita gente gosta de colecionar objetos, tais como livros, revistas e tantas outras coisas mais, consideradas por muitos como “bugigangas”. De minha parte, acho que herdei de minha mãe esta mania; depois que ela faleceu, minha irmã que morava com ela, presenteou-me com uma infinidade de guardados que os mantenho com carinho.

Algumas vezes utilizo estas relíquias em minhas crônicas, contos e até mesmo na ficção, neste último caso aproveitando situações provocadas por seus amigos e parentes da época e que ela registrou com letras legíveis, redondas e com erros gramaticais.

Muita gente censura esta mania, argumentando que nós, os arquivistas ou colecionadores, vivemos focados no passado, que não mais voltará; para os mais íntimos, argumento que o reencontro com estas lembranças leva-me ao passado sim, porém com o intuito de reviver as emoções, pois muitas vezes participei das mesmas de corpo presente.

O falecido escritor e famoso colecionador de artes, membro da Academia Francesa de Letras, Maurice Rheims cunhou a seguinte frase que aceito como identificadora da minha personalidade: “Um homem normal, sem complexos, tem poucas chances de se tornar um grande colecionador”.

Para que eu não passe, daqui por diante, a ser conhecido como uma pessoa anormal e complexada, gostaria de informar que estou na boa companhia, embora sem o mesmo brilho intelectual das mesmas, de muita gente famosa, como Freud e Axel Munthe, para citar apenas dois famosos médicos.

Há alguns anos tive a oportunidade de visitar o local onde era o consultório de Freud em Viena (Berggasse, 19); confesso que fiquei emocionado ao deparar-me com o seu famoso divã onde se deitavam os pacientes a serem por ele analisados e de ver algumas das esculturas da sua coleção (originariamente eram mais de duas mil peças, entre vasos, estátuas, bustos, papiros, etc.) e, principalmente, a estatueta de Isis amamentando o filho Hórus, considerada por Freud a peça mais importante da sua coleção.

Freud se tornou um colecionador de objetos de artes no final dos anos 1890, justamente na época que escrevia “A interpretação dos sonhos” quando ele passou a comparar o processo psicanalítico à arqueologia, pois “O psicanalista, como o arqueólogo, deve descobrir uma camada após a outra da mente do paciente, antes de alcançar tesouros mais profundos e valiosos”.

Na época daquela publicação (A interpretação dos sonhos) Freud já possuía bom conhecimento sobre a mitologia egípcia e por causa aumentou gradativamente seu acervo de material arqueológico, principalmente estatuetas, provenientes do Egito; sem a pretensão de estar com a verdade, teorizo sobre a razão deste seu atavismo por Isis.

Antes de entrar nas minhas considerações, preciso voltar um pouco na biografia de Freud, quando ele estava com oito anos de idade; naquela oportunidade ele teve um “sonho cheio de ansiedade, que lhe provocou choro ao despertar”: - viu sua mãe morta, sendo carregada para dentro do quarto por duas ou três pessoas que tinham bicos de pássaros, e colocada sobre a cama.

Para que meus leitores possam entender um pouco mais este emaranhado de informações, preciso dizer que Isis, segundo a mitologia egípcia, era irmã de Osiris, com quem se casou e teve um filho de nome Hórus, que era o deus com cabeça de falcão; em 1931 Freud comprou uma pequena escultura, considerada como a representação de Hórus (datada, provavelmente, dos anos 600 a.C.) denominada “Figura com cabeça de falcão”.

Se o sonho é a manifestação de um desejo como afirmava Freud, ele organizara um funeral egípcio para sua mãe que no sonho é tratada como uma rainha egípcia, pois é carregada por deuses, por Hórus, o filho (Freud?), para o leito funerário.

Aquela escultura (cópia?), a figura de Isis que vi no consultório de Freud, mostrava uma bela mulher, magra e esguia, amamentando o filho Hórus, cuja lenda salienta que foi irmã e esposa de Osiris, a maior divindade egípcia, o deus da vida, da morte e da transformação e que foi assassinado pelo seu irmão Seth, cortado em pedaços e estes foram depois dispersados; ressuscitou graças à intervenção de Isis que conseguiu juntar todos os pedaços do seu corpo.

O mito, Isis juntando os pedaços do corpo de Osíris para reconstituí-lo, provavelmente sugeriu para Freud alguma analogia com a psicanálise que, num passe de mágica, consegue juntar todas as peças do enigma que constrange a mente humana, por intermédio das narrativas de recuperação realizadas no divã.

Quando escrevia este texto, lembrei-me de uma lenda que me foi contada por um amigo fraterno, um homem justo, verdadeiro archote da fé e que tem alguma relação com o que relatei acima; trata-se da “Lenda de Isis e Osiris”; vou resumi-la:

“São três personagens, todos irmãos: Osiris, filho do sol, Isis, filha da lua e Tifon, filho dos ardentes ventos do sul. Embora irmãos, Osiris desposa Isis, mais tarde nasce o filho Hórus; outra irmã de Isis (Neftis) desposa Tifon. Osiris foi coroado rei e, dentre as suas atribuições, deveria fazer o julgamento dos mortos no salão da justiça.

O morto faz sua confissão, seu coração é então colocado em um dos pratos de uma balança,enquanto no outro figura o símbolo da verdade, representado por uma pena de avestruz; se o prato da balança pender para o lado do coração, portanto mais pesado que a pena, o morto será considerado condenado.

Gostaria de destacar que Isis se postava sempre atrás de Osiris implorando misericórdia para o morto”.

Minha filosofia de vida levou-me a colecionar, além de “bugigangas”, muitas lendas semelhantes a esta!

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

FREUD E A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL

Certa vez, conversando com um amigo polonês que hoje reside nos Estados Unidos, fez-me ele uma afirmativa que sempre trago de volta nas minhas pesquisas sobre as guerras mundiais: - você, que não viveu o problema, não tem a mínima ideia do que seja vivenciar esta tormenta.

Este meu querido amigo, juntamente com a sua família, viveram sob o jugo nazista na segunda guerra mundial!

Realmente, por mais que procuremos entender a repercussão da guerra no seio de uma família, cujo país esteja envolvido no conflito, jamais conseguiremos apreender o torvelinho de emoções que ela provoca.

Segundo David Fromkin (O último verão europeu, 2005) mais de 20 milhões de soldados e civis perderam a vida na 1ª. Guerra mundial e outros 21 milhões foram feridos.

A população austríaca, como de resto toda a população europeia daquela época, vivia uma fase de calmaria e prosperidade, pois há mais de meio século não havia guerras entre as grandes potências e o verão de 1914, quente e ensolarado, era considerado um dos mais belos da memória recente, como escreveu o escritor austríaco-judeu, Stefan Zweig: “raramente experimentei verão mais exuberante, mais belo e, estou tentado a dizê-lo, mais estival do que este agora de Viena”.

Dentre os habitantes de Viena daquela época existia um homem que, pela sua personalidade introvertida, vida tão cheia de dificuldades econômicas e, principalmente, sujeito ao preconceito racial por ser judeu, provavelmente não concordasse totalmente com aquela afirmativa do seu amigo; Freud, por razões que não cabe aqui discutir, não gostava de Viena e não era tão otimista para endossar as palavras do seu amigo Zweig.

Provavelmente ele pressentia a presença de nuvens carregadas no futuro e deveria saber, pela evolução dos acontecimentos políticos, que a aparente calmaria poderia dar lugar à tempestade; foi isto o que aconteceu, justamente naquele verão de 1914 estourou um dos maiores conflitos que a humanidade tinha visto até então, a 1ª. guerra mundial.

Um conflito com esta magnitude provoca, em escala imensurável, enorme sofrimento às populações envolvidas; conheço um pouco, por pesquisas, a sua repercussão na vida de Sigmund Freud; permito-me trazer aos meus leitores algumas reações deste gênio da humanidade, expressas em cartas que ele costumeiramente escrevia, quer em resposta a alguma indagação de caráter científico, de conselhos aos seus seguidores psicanalistas ou de caráter familiar e a clientes.

É sabido que Freud era um inveterado escrevedor de cartas; contam-se milhares delas, como informa seu filho Ernst Freud (Correspondência-1873-1939, 1960); com o intuito de acompanhá-lo (bisbilhotando suas cartas) durante este terrível tempo de guerra (1914-1919), referirei, pelo espaço que me é concedido no jornal, somente a alguns excertos da sua correspondência com a psicanalista russa Lou Andreas Salomé, naquela época vivendo na Alemanha.

Durante este período de tempo (1914/19) foram trocadas entre os dois quase cem cartas, todas elas manuscritas e, chama a atenção como veremos, o estoicismo de Freud, pois apesar de dois dos seus filhos e um genro estarem participando do campo de batalhas da guerra, ele conseguiu manter seu ritmo de trabalho, publicando vários textos em revistas especializadas, além de alguns livros.

Parece que os dois viviam, como costuma acontecer com os cientistas, absorvidos exclusivamente com o mundo da ciência, abstraindo-se dos graves acontecimentos que os rodeavam; Lou Andreas enviava-lhe cartas com até dez páginas, discutindo casos da sua clínica particular e ele lhe respondia dando sua opinião.Vejam comigo os resumos de algumas delas:

25.11.1914 – “... Nossos encontros das noites de 4ª. Feira (Freud reunia seu grupo de psicanalistas todas as 4ª. Feiras na sua casa) têm lugar hoje apenas duas vezes por mês...”

30.07.1915 – “... Há cerca de uma semana nosso filho mais velho foi atingido por uma bala, felizmente acertaram somente o quepe e o seu braço...”

09.11.1915 – “... Minha introdução às “Leituras em psicanálise” está pronta para ser publicada ... Meu filho mais novo teve um golpe de sorte, acabava de sair da trincheira que foi bombardeada, todos os seus companheiros morreram...”

27.07.1916 – “... Entre todos os meus livros A Vida cotidiana faz a melhor carreira, no momento estou preparando a sua 5ª. edição; meu terceiro filho, o engenheiro, partiu ontem para o treinamento militar em Cracóvia; meu livro sobre os Sonhos está terminado, faltam apenas as ilustrações...”

14.06.1917 – “Caro Professor, obrigada por ter-me enviado seu novo livro – Conferências Introdutórias sobre psicanálise, atirei-me sobre ele como um homem faminto...”

01.07.1918 – “... Dentro de alguns dias irei para Budapeste, onde um amigo ofereceu-me acomodação em sua vila, se não fizer muito calor, terminarei aí a 5ª. edição de - A Interpretação de Sonhos...”

Como assinalei no inicio deste texto é impossível aquilatar as emoções das pessoas que viveram pessoalmente a tormenta de uma guerra; ao tomar conhecimento por intermédio destas e de outras cartas dirigidas também, a outros interlocutores, da capacidade de concentração que Freud mantinha para continuar produzindo sua ciência, obriga-me a considerá-lo um homem acima do normal.

Esta assertiva pode ser confirmada se considerarmos o fato de que durante esta fase (1914/19) foram publicados alguns dos seus grandes clássicos, tais como “Totem e Tabu”, “A História do movimento psicanalítico”, “O Narcisismo”, “O inconsciente”, “A Fantasia”, “Luto e melancolia” e muitos outros.

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

DIÁRIO DO JARDINEIRO

VOCÊ SABE PLANTAR AZALEIAS? NÃO SABE? VOU LHE ENSINAR!

A primeira coisa a fazer é definir com muito carinho o lugar onde você pretende plantá-las; azaleia (Rhododendron simssi) é um arbusto que precisa de sol, bastante iluminação e, principalmente, ser plantada em local onde você possa vê-la todos os dias; acreditem, elas são orgulhosas da sua floração que, aliás, poderá ser vermelha, branca, rosa ou mesclada de duas, às vezes mais de duas cores; por isto gostam de se exibirem, diz o jardineiro W. John no seu singelo livro “A Garden Diary by an Amateur Gardener – Diário de um jardineiro amador, London - 1937”.

Não sei onde aquele jardineiro descobriu isto, porém como ele fez esta afirmação em plena efervescência política que antecedia a segunda guerra mundial, época de descrença nos rumos da humanidade, acho que devo acreditar no que ele disse, aliás, para dizer a verdade,depois que o homem ultrapassa os sessenta anos de idade, poucas coisas lhe parecem absurdas.

Aqui na Santa Tereza não foi difícil escolher o local onde plantá-las, pois, bem de frente ao nosso quarto existe um jardim; na verdade, não querendo ser exibicionista, devo dizer que para todos os lados que olhamos ao redor da casa existe jardim, porém este especial que mencionei seria o lugar ideal, pois a primeira coisa que fazemos de manhã cedo ao abrir a janela da pequena sacada, é cumprir o ritual de examiná-las, como elas gostam, conforme nos ensinou o jardineiro inglês.

Este pequeno canteiro tem algumas características que gostaria de descrever para que meus leitores entendam o ambiente onde plantei as azaléias; ele tem o tamanho ideal para o meu desiderato: grande como a sofreguidão do adolescente que encontrou o primeiro amor e pequeno o suficiente para abrigar a desilusão da sua perda.

O canteiro era povoado, antes desta decisão de plantar azaleias, com margaridas de vários matizes de cores, com predominância das brancas e amarelas que são as preferidas do nosso jardineiro Décio; quase que nas suas duas extremidades existem dois tocos de caules que restaram de dois pinheiros que foram derrubados há muito tempo por terem ultrapassado o seu tempo biológico de vida.

No ápice destes dois “caules”, hoje já apodrecendo, fixei dois grandes vasos e ali plantei, em cada um deles, mudas de samambaias e salgueiros-chorões; com o tempo as suas raízes foram se espalhando pelo “toco” e daí surgiram duas imagens maravilhosas que, vistas de longe, sugerem que as plantas estariam voando sem um aparente suporte; sob o clarão da lua e o vento batendo nas suas folhas, sugerem-nos zumbis.

A decisão de quais margaridas seriam “sacrificadas” não foi fácil, pois elas são ciumentas com a presença de vizinhas capazes, com a sua formosura, de atrair a atenção do jardineiro e este deixar de mirá-las (aqui sou eu quem acha, por quê? algum dia lhes contarei!); deixei, por faltar-me coragem para retirar todas, um aglomerado delas nas duas extremidades do canteiro, pouco atrás dos “zumbis”, porém perfeitamente visíveis.

Acreditem, tive oportunidade de ouvir! Suas folhas, ao tremularem ao vento, emitem um sussurro misterioso, somente audível por quem esteja interessado nos mistérios da natureza; seus caules por serem finos e compridos permitem-lhes, se desejarem ver quem está chegando, espreitar tanto para a direita como para a esquerda, desde que os torçam nestas direções, porém a natureza obriga-os a colocar a flor em posição de mirar o sol que se posta à sua frente.

Para não pensarem que escondi as margaridas, preciso dizer que estas, em qualquer lugar que se encontrem no jardim, são vistas com facilidade pela exuberância das suas cores.

Preparei, então, o centro do canteiro para o plantio das azaléias; antes disso, Décio ajudou-me a “fofar” a terra que foi misturada com esterco curtido de vaca; deixamos um espaço de mais ou menos cinquenta centímetros entre uma e outra muda, uma vez que a variedade que estávamos utilizando são as de pequeno porte.

Existe um detalhe que não deve ser esquecido, plante-as com carinho, converse bem baixinho com elas antes de colocá-las nas covas; a necessidade de baixar o tom da voz, no meu caso, é para que as margaridas que estão ao lado não escutem e fiquem enciumadas e, por serem sensíveis, como todas as mulheres são, poderão chorar. Porém que fora a vida se nela não houvera lágrimas?

Se acordo bem cedo, antes do orvalho ser derrotado pelos raios solares, costumo ver seu último vestígio, pequenas gotas balançando na extremidade da flor da azaléia; nestas horas lamento não ser poeta para ter a inspiração que meu amigo e confrade na Academia Goiana de Letras, Dr. Getulio Targino Lima teve, ao escrever recentemente:

Naquele amanhecer,/ A gota atravessou a brisa/E pousou suavemente/Na pétala macia da rosa,/Aberta/Em seu maior viço.

Escorreu até a borda/Arredondada/Daquele colchão./Contornou-o,/Deu a volta/E parou, extasiada.

...Mas o vento,/Enciumado,/Perguntou-lhe:/O que faz você aí,/Como se estivesse num trono?

E a gota: estou criando vínculo,/Me doando por inteiro/E recebendo a maciez da aceitação.../





sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

A FORÇA DA NARRATIVA NA LITERATURA FICCIONISTA

Não faz muito tempo, foi no ano passado, estive na companhia de Marilia, minha mulher, na Califórnia (USA) e, dentre nossas prioridades, constava uma visita a Monterey, local onde viveu grande parte da sua vida o escritor norteamericano, ganhador do prêmio Nobel de literatura em 1962, John Steinbeck.

Jamais esqueceremos aquela aventura, principalmente as caminhadas que fizemos pelo bairro de Cannery Row e que culminou com o encontro do busto daquele escritor nas imediações da Grande restinga, na extremidade da península; Marilia, com muita gentileza, pediu que me postasse ao lado da escultura e registrou aquele momento com fotografias que as conservo no meu acervo com muito carinho.

Como sabemos, John Steinbeck escreveu grande número de romances, crônicas e contos, porém, o livro de maior notoriedade é o intitulado “As Vinhas da Ira” pelo seu conteúdo polêmico, com discussão sobre o desajuste social, em uma época impensável de ser discutida pela sociedade norteamericana, como foi feito pelo autor.

O livro retrata com pincéis cinzentos a situação de uma família de lavradores miseráveis do estado de Oklahoma que viu como única possível salvação, a emigração para o rico estado da Califórnia; o autor descreve esta epopéia com emoção e realismo inacreditável.

Segundo alguns críticos literários a cena final deste maravilhoso romance é uma das mais famosas e pungentes de toda a literatura norteamericana, resumirei o prelúdio para entenderem o “grand finale”:

“Fugindo de um temporal, a família descobre um celeiro e todos correm para dentro do mesmo para se protegerem; encontraram ali um homem que estava quase morrendo de fome e uma criança que era seu filho, pois estavam sem comida já há vários dias. Uma das moças da família havia perdido o filho, porém, continuava com leite no seio”

Vejam comigo a descrição (resumida) feita por Steinbeck da cena que encerra o livro:

“A mãe olhou para Rosa de Sharon e disse – Eu sabia que você era capaz de fazê-lo; Rosa disse baixinho para a família, vocês são capazes de sair todos? Todos voltaram para a chuva!

Lentamente ela se dirigiu ao canto escuro e quedou-se a olhar o rosto devastado do desconhecido, de olhos arregaladas e cheio de temor. Então, vagarosamente deitou-se ao lado dele. O homem abanou vagamente a cabeça de um lado para o outro. Rosa de Sharon afastou o cobertor, deixando o seio a descoberto, colocou-o na sua boca - Tem de ser – disse, aproximando-se mais dele, e puxando-lhe a cabeça para si. Ora vá! Então! Apoiou-lhe a cabeça com a mão, e os seus dedos afagaram-lhe suavemente os cabelos. Ergueu os olhos e, deixou-os errar pelo barraco, enquanto os lábios se lhe arqueavam num misterioso sorriso”.

Os escritores que escrevem obra de ficção ficam extasiados, como fiquei, ao perceber a capacidade que tem Steinbeck de “segurar o tema”, mantendo os leitores presos à narrativa até a última linha do texto, com imagem simbólica inacreditável (a mulher pobre desnutrida, socorrendo o homem pobre desnutrido).

No entanto, nem todos os leitores olham os textos somente com olhos de encantamento, alguns procuram lê-los com lentes de aumento, abstraindo-se da necessária disposição para textualizá-lo no maravilhoso mundo do “faz de conta”, procuram nas cenas descritas situações não plausíveis, como aconteceu com a cena que acima transcrevi.

O Prof. John Sutherland, professor de literatura estrangeira e crítica literária no Colégio Universitário de Londres, autor do livro “Curiosities of Literature” pediu aos seus alunos que analisassem, criticamente, o citado trecho; para sua surpresa um dos alunos trouxe o seguinte comentário, que transcrevo resumidamente.

“Uma lactente e sadia mãe de primeiro filho, sem estresse e bem nutrida, secreta cerca de 700 ml de leite por dia; o valor calórico do leite materno é de 70 calorias para cada 100 ml (uma mamada), este valor preenche os requisitos de uma criança recém-nascida. A doadora (Rosa de Sharon) do leite para aquele homem do romance de Steinbeck, era uma mulher mal nutrida, quase entrando no mesmo estado de caquexia que o homem, além de estar em estado de depressão pós-natal (havia sido abandonada pelo marido).

Mesmo considerando que ela conseguiu fornecer os 100 ml de leite para aquele homem que estava morrendo de fome, este alimento equivaleria, em calorias, ao valor contido em uma geléia feita de duas jujubas e, se aceitarmos que ela continuou a amamentá-lo durante todo o dia (sete vezes, na média), forneceria no máximo 14 geléias que haveremos de concordar que não é suficiente para recuperar um homem em caquexia”.

Felizmente a pena adestrada do artista da escrita, ao narrar uma cena com tamanha sensibilidade como fez Steinbeck, não se preocupa em fazer cálculos de calorias, deseja apenas extravasar suas emoções.

O que diria aquele estudante inglês ao ler esta cena que escrevi no livro “Couto de Magalhães, o último desbravador do Império”?

“Tudo principiou com uma desgramada de uma ferpa que atingiu a veia-artéria do Pipoca, desandou uma sangria desatada, que não parava nem com reza brava. Coloquei picumã, fumo, pó de café com açúcar, esterco de vaca, apertei o local até dar câimbra no dedo e nada, a danada da veia-artéria esguichava longe, sem parar; só aí me lembrei de outro caso igual e que minha sabença deu resultado. Descobri um formigueiro de formiga cabo verde que é, como vancês tudo sabe, umas formigonas pretas e que medem o tamanho da metade do meu dedo minguinho, agarrei umas e coloquei dentro do chapéu, para escapar das ferroadas, e trouxe para perto da perna do Pipoca; agarrei uma formiga pela bundinha e fiz dar uma lacraiada com o ferrão bem na veia-artéria; a hora que senti firmeza que ela estava bem grudada, cortei o corpinho dela e deixei lá o ferrão apertando a veia artéria acudindo a sangueira. Parou”.