VOCÊ JÁ VIU ONÇA PESCAR?
Era uma noite fria, devia ser mais ou
menos meia noite, o Araguaia corria com mansidão e serenidade; se não fosse o
inesperado da noticia que circulou, algum companheiro deveria estar, naquele
momento, empunhando um violão e cantando e desafogando as tristezas de algum
amor desfeito.
A noticia era a presença de uma onça que
estava rondando o acampamento, muitos “ouviram” os rugidos do animal; Tabaco, o
mais medroso de todos (ele havia “visto” a dita cuja), estava quase que mudo,
sentado em um canto, tentando afastar a meidorreia com uma pinguinha que trouxe
lá de Catalão.
A partir daí, ninguém mais dormiu, todos
querendo saber detalhes que o Tabaco não estava em condições de fornecer; com o
susto, ele que é um pretinho bem carregado na cor, ficou branco e não parava de
tremer; suas palavras saiam entrecortadas e lamuriosas.
Bié, que tinha fama de ter sido
caçador, continuou rondando, sozinho, pelas redondezas; depois de algum tempo
voltou para junto do grupo, que já estava ao redor da fogueira, trazendo a sua
versão do acontecimento:
- A acontecença é o seguinte, esta gata
deve estar parida porque, senão a bicha não arriscaria a chegar tão perto de um
mundéo de gente, indamais com tudo alumiado igual aqui; aliás, é por isso mesmo
que não acampo sem fogueira. É bão nóis ficá velhacos a modequê a danada pode
voltar! Não gosto de arriscar com onça pintada, como esta que esta por aqui,
são mais feróis que as pretas. Prá falá nos finalmente, das pretas não tenho
quase que nenhum medo, elas são quase que caseiras, esses olhos que a terra vai
comer, já viu coisa desta bicha que até Deus duvida.
Todos se viram, com certo olhar de
descrédito, para o Tabaco que havia descrito a onça como sendo preta!
Todos, inclusive os cachorros que
estavam deitados, também ao redor da fogueira, não despregavam os olhos do Bié;
Antonio Martins de imediato colocou a “rabinha” para ferver uma água para o
café espanta sono; não demorou, o aroma inconfundível, mostrou de onde vinha, a
chocolateira esmaltada, recém-tirada da mariquinha que o Antonio Martins
improvisou, circulou na roda; os dois perdigueiros da comitiva, parece que
atendendo a uma voz de comando, também deitaram de frente para o borralho,
espichando as duas patas dianteiras e delicadamente apoiaram os focinhos sobre
as mesmas, parece que também escutando os assuntos e aguardando a evolução dos
acontecimentos.
- Vosmiceis sabiam que onça pintada pesca?
Depois desta, até eu encostei ao
grupo para escutar mais esta estória do Bié.
- Pode acreditar, vi com estes olhos
que a terra vai comer, eu estava pescando no Araguaia, junto com o compadre
Izartino, que Deus o tenha, numa canoinha sem confiança, andando só beirando as
beiras do rio, fugindo dos paus de ingá, que acumo vocês sabem, dá umas gaiadas
dos infernos, forrando a flor d’água, obrigando o fregueis arriscar a
correnteza para desviar.
Como sempre acontecia com as suas
estórias, Bié fez uma pausa na narrativa, olhou de soslaio para todos, cortou o
fumo em rodelinha fina, sem muita pressa, porém com sequência.
- Num é de vê que um dia nóis viu uma
onça pintada deitada pro riba dum destes paus, com a barriga de chapa com a
água? Com o seu rabo fazendo um vorteado por riba da cabeça, começou a dar
pancada na água; os peixes, ouvindo o barulho, devem ter pensado que era alguma
fruta caindo e distampa a subir até a flor d’água e saltar pra riba, na procura
do alimento. Nesta hora, a danada, ligeira como é, dava uns pulos certeiros, pegava
o peixe no ar, caindo dentro d’água e logo nadava até a margem para comer os coitadinhos
no seco.
Reinou um silêncio profundo, alguém
deu uma pigarreada bem forte, um outro ensaiou um sorriso, tímido no início,
que paulatinamente tornou-se sonoro, contagiando a todos.
- Parece que alguns de vanceis num
quer acreditar, né? É uma pena o compadre Izartino já ter morrido, senão ele
provava tudinho. Se vosmicês quiser escutar sem zombaria, vou contar outro fato
acontecido, também com uma pintada, e que ví com estes meus olhos, que a terra
vai comer.
A pausa aqui foi maior, Bié
precisava, além de continuar a preparar seu cigarro de palha, sentir a
receptividade dos ouvintes.
- Quando o Araguaia se enche nas
cheias, desce, rodando pru riba dele, grande quantidade de trenheira e
tranqueira, galharada coberta de capim e aguapé, parecendo ilhas que flutuam. Um dia eu e meu cumpadre
Izartino, que Deus o tenha, vimos uma onça descendo o rio em cima duma destas “ilhas”,
brincando de pega ladrão com um peixe boi; ela aproveitava quando o bicho punha
o focinho para fora d’água, para respirar, para tentar agarrar ele com as patas.
De repente, numa destas saídas do peixe, ela deu um pulo certeiro na sua cabeça
e os dois afundaram umas duas ou três vezes, vi os dois saindo pra fora d’água
para respirar e voltar a afundar, dispois sumiram, dali um pouco vi uma onda muito
grande se aprochegando pra margem do rio, apontou primeiro o rabo da pintada,
dispois seu corpo, finalmente o peixe preso nas suas presas. Nesta hora, não aguentei, dei um tiro, matei
a danada da pintada e levei os dois para vender no comércio de Leopoldina.
A roda foi diminuindo, os peões foram
dormir, só ficou o Bié, contando para si mesmo, outras das suas estórias.