MINHAS CRÔNICAS

terça-feira, 16 de julho de 2013

VOCÊ JÁ VIU ONÇA PESCAR?


Era uma noite fria, devia ser mais ou menos meia noite, o Araguaia corria com mansidão e serenidade; se não fosse o inesperado da noticia que circulou, algum companheiro deveria estar, naquele momento, empunhando um violão e cantando e desafogando as tristezas de algum amor desfeito.
 
 
A noticia era a presença de uma onça que estava rondando o acampamento, muitos “ouviram” os rugidos do animal; Tabaco, o mais medroso de todos (ele havia “visto” a dita cuja), estava quase que mudo, sentado em um canto, tentando afastar a meidorreia com uma pinguinha que trouxe lá de Catalão.
 A partir daí, ninguém mais dormiu, todos querendo saber detalhes que o Tabaco não estava em condições de fornecer; com o susto, ele que é um pretinho bem carregado na cor, ficou branco e não parava de tremer; suas palavras saiam entrecortadas e lamuriosas.
Bié, que tinha fama de ter sido caçador, continuou rondando, sozinho, pelas redondezas; depois de algum tempo voltou para junto do grupo, que já estava ao redor da fogueira, trazendo a sua versão do acontecimento:
- A acontecença é o seguinte, esta gata deve estar parida porque, senão a bicha não arriscaria a chegar tão perto de um mundéo de gente, indamais com tudo alumiado igual aqui; aliás, é por isso mesmo que não acampo sem fogueira. É bão nóis ficá velhacos a modequê a danada pode voltar! Não gosto de arriscar com onça pintada, como esta que esta por aqui, são mais feróis que as pretas. Prá falá nos finalmente, das pretas não tenho quase que nenhum medo, elas são quase que caseiras, esses olhos que a terra vai comer, já viu coisa desta bicha que até Deus duvida.
Todos se viram, com certo olhar de descrédito, para o Tabaco que havia descrito a onça como sendo preta!
Todos, inclusive os cachorros que estavam deitados, também ao redor da fogueira, não despregavam os olhos do Bié; Antonio Martins de imediato colocou a “rabinha” para ferver uma água para o café espanta sono; não demorou, o aroma inconfundível, mostrou de onde vinha, a chocolateira esmaltada, recém-tirada da mariquinha que o Antonio Martins improvisou, circulou na roda; os dois perdigueiros da comitiva, parece que atendendo a uma voz de comando, também deitaram de frente para o borralho, espichando as duas patas dianteiras e delicadamente apoiaram os focinhos sobre as mesmas, parece que também escutando os assuntos e aguardando a evolução dos acontecimentos.
- Vosmiceis sabiam que onça pintada pesca?
Depois desta, até eu encostei ao grupo para escutar mais esta estória do Bié.
- Pode acreditar, vi com estes olhos que a terra vai comer, eu estava pescando no Araguaia, junto com o compadre Izartino, que Deus o tenha, numa canoinha sem confiança, andando só beirando as beiras do rio, fugindo dos paus de ingá, que acumo vocês sabem, dá umas gaiadas dos infernos, forrando a flor d’água, obrigando o fregueis arriscar a correnteza para desviar.
Como sempre acontecia com as suas estórias, Bié fez uma pausa na narrativa, olhou de soslaio para todos, cortou o fumo em rodelinha fina, sem muita pressa, porém com sequência.
- Num é de vê que um dia nóis viu uma onça pintada deitada pro riba dum destes paus, com a barriga de chapa com a água? Com o seu rabo fazendo um vorteado por riba da cabeça, começou a dar pancada na água; os peixes, ouvindo o barulho, devem ter pensado que era alguma fruta caindo e distampa a subir até a flor d’água e saltar pra riba, na procura do alimento. Nesta hora, a danada, ligeira como é, dava uns pulos certeiros, pegava o peixe no ar, caindo dentro d’água e logo nadava até a margem para comer os coitadinhos no seco.
Reinou um silêncio profundo, alguém deu uma pigarreada bem forte, um outro ensaiou um sorriso, tímido no início, que paulatinamente tornou-se sonoro, contagiando a todos.
- Parece que alguns de vanceis num quer acreditar, né? É uma pena o compadre Izartino já ter morrido, senão ele provava tudinho. Se vosmicês quiser escutar sem zombaria, vou contar outro fato acontecido, também com uma pintada, e que ví com estes meus olhos, que a terra vai comer.
A pausa aqui foi maior, Bié precisava, além de continuar a preparar seu cigarro de palha, sentir a receptividade dos ouvintes.
- Quando o Araguaia se enche nas cheias, desce, rodando pru riba dele, grande quantidade de trenheira e tranqueira, galharada coberta de capim e aguapé, parecendo  ilhas que flutuam. Um dia eu e meu cumpadre Izartino, que Deus o tenha, vimos uma onça descendo o rio em cima duma destas “ilhas”, brincando de pega ladrão com um peixe boi; ela aproveitava quando o bicho punha o focinho para fora d’água, para respirar, para tentar agarrar ele com as patas. De repente, numa destas saídas do peixe, ela deu um pulo certeiro na sua cabeça e os dois afundaram umas duas ou três vezes, vi os dois saindo pra fora d’água para respirar e voltar a afundar, dispois sumiram, dali um pouco vi uma onda muito grande se aprochegando pra margem do rio, apontou primeiro o rabo da pintada, dispois seu corpo, finalmente o peixe preso nas suas presas.  Nesta hora, não aguentei, dei um tiro, matei a danada da pintada e levei os dois para vender no comércio de Leopoldina.
A roda foi diminuindo, os peões foram dormir, só ficou o Bié, contando para si mesmo, outras das suas estórias.