MINHAS CRÔNICAS

sexta-feira, 20 de maio de 2011

TOCANTINS – conversas ao redor da churrasqueira

(Dedicado ao confrade, escritor Mário Ribeiro Martins)
Estamos, Hélio Junior, Ramirinho, seus três filhos, Da. Serena, sua esposa e eu, sentados à varanda da casa da Fazenda Santo Antonio, encravada entre morros que formam gargantas na medida em que se aproximam um dos outros, às vezes estes espaços se estreitam, parece que com a intenção, exclusiva, de facilitar que a água do ribeirão “Formiga” flua com tranqüilidade, espalhando na sua caminhada, borrifadas de ósculos pela base da serra.

A água, na maior parte do tempo, desce silenciosa, mesmo porque lhe é indiferente se alguém escuta o seu ruído, ninguém lhe apressa o passo a não ser as reentrâncias do terreno que a margeia; de vez em quando embravece ao se sentir estrangulada pelas rochas que tentam impedir sua caminhada; nestas horas ela dá corcovos ao encontrar cotovelos, retrocede e “bufa” bolhas de espumas como se fossem miríades de estrelas que serão depositadas no declive próximo; ali, descansa da labuta que enfrentou e chora; as suas lágrimas são as vaporizações que formam arco iris ao serem beijadas pelas nesgas de raios solares que conseguem alcançar tal profundidade.

Começa a escurecer, o sol ainda pode ser visto entre os galhos das árvores que rodeiam a casa, porém, temos consciência de que, em breve, a serra que nos espreita irá engulí-lo trazendo em seu lugar a claridade da lua que, inicialmente, disputa sua onipresença com os últimos raios luminosos que teimam em permanecer emitindo sinais de vida; no entanto, o voo em bando das maritacas que passam acolá a caminho da árvore de pouso, sinaliza que a noite não demora.

Hélio Junior acende a churrasqueira, Ramirinho traz-me um copo de Whisky com algumas pedras de gelo; lembro do meu velho amigo Dr. Ursulino Leão; por que será? Estaria ele, nesta mesma hora, desfrutando das benesses da Fazenda São João em Crixás? Ou não seria a lembrança das nossas “tertúlias” pós-reunião administrativa da Academia Goiana de Letras, onde, normalmente nos saudamos mutuamente, com um honesto “Scotch on the rocks”?

Enquanto, a intervalos, a picanha é mudada de lado, é hora de “jogarmos conversa fora”; fazia-nos companhia um vizinho que mora a uns 10 quilômetros de distância e veio na garupa da moto do neto, pois, desejava uma consulta médica; Seu Chico da Isabé era o seu nome; já bem andado na idade (prá mais de 75, disse ele), nasceu em uma fazenda nas imediações de Catalão (GO) e vive “neste mundo velho sem porteira” do Tocantins há muitos anos (minha pensa não guarda a conta!).

Seu Chico da Isabé (não abreveia meu nome, porque tem muitos chicos pulando em árvores que não sou eu!) é um homem espigado, caminhando com desenvoltura, barba rala, com alguma concentração de fiapos de cabelos no queixo, fala mansa, bem concatenado com o tempo, calça listrada e um pouco curta, o que permite visualizar as botinas rangedeiras, camisa branca de mangas compridas e com o colarinho abotoado no pescoço, alguns dentes na arcada inferior, bigode espesso, quase entrando boca a dentro.

Antes da consulta, por minha instigação, ele conta “causos” da medicina de antigamente, tanto da sua antiga moradia como daqui do Tocantins e, também, alguns acontecimentos que ele presenciou quando menino, da passagem da “Coluna Prestes” pelo sul de Goiás (o espaço que me é reservado aqui no jornal, não me permite que os narre agora, talvez, em outra oportunidade eu o farei); prefiro ficar, no momento, na minha seara, ou seja, contar-lhes, pelo menos um dos acontecimentos que ouvi a respeito da medicina da roça antes da metade do século passado, até como modesta contribuição ao folclore regional.

Antes de nada, quero deixar bem claro que ao narrar este fato que ouvi, não escondo nenhuma intenção de, simplesmente, provocar risos ou mesmo espanto aos meus leitores; trata-se de fato que precisa ser analisado no contexto onde aconteceu e, principalmente, enaltecer a figura estóica do nosso caboclo, ainda hoje tão mal assistido pelas autoridades públicas do nosso país, embora, há que se reconhecer que esteja havendo mudanças, para melhor nos últimos quinze anos.

Seu Dotô, naquele tempo o recurso da medicina no sertão era quase que impossível, os conhecimentos eram passados pelos avós e assim por diante, as figuras do “rezador”, do “curandeiro” e da “parteira” eram muito comuns e necessárias; teve uma vez que deu sarampo na meninada da região e foi todo mundo para a cama, inclusive com várias mortes; usava-se, para seu tratamento, várias espécies de chá, feitos com raízes, cascas e folhas de determinadas árvores.

O pior destes chás era o feito com fezes de cachorro, conhecido como “chá de jasmim de cachorro”; não precisa se dizer que era o terror da meninada ter que tomá-lo; meu irmão menor estava com muita febre e já havia sido tentado todo tipo de remédio; de repente alguém se lembrou deste disgramado ingrediente e todo mundo passa a seguir a cachorrada na procura da salvação e nada de encontrar; depois que todo mundo desanimou e meu irmão vendo que a coisa estava ficando preta, resolveu ajudar:

Sem descobrir o rosto do cobertor que o cobria, disse com a voz desanimada: - Eu vi o sultão “estrumando” lá na curva da estrada, perto do espigão; trás só um pouquinho, porque ele exagerou na dose!

segunda-feira, 16 de maio de 2011

SERTÃO DO TOCANTINS – UM PEDAÇO DA MINHA VIDA!


(Dedicado à confreira, escritora Ana Braga)
Voltei ao Tocantins, mais especificamente, à Fazenda São Pedro, localizada nas imediações do povoado de Buritirana, nas bibocas entre as montanhas subsidiárias do espigão mestre da serra do Monte do Carmo; levei comigo a emoção e as recordações de um tempo que ficou para trás e, com elas, convivi durante os três dias que ali permaneci; a subida da serra, que se desenhava no azul do horizonte não é mais desafiadora como a conheci há mais de vinte anos: o asfalto com seu novo traçado substituiu a estrada mestra com seus “facões” provocados por erosões de anos de enxurradas morro abaixo, tornando difícil decidir entre enfrentá-los ou se aproximar da beirada do inacreditável desfiladeiro que ameaçava o motorista a cada curva.
                A travessia do ribeirão Piabanha continua sendo um grande desafio, sua ponte, localizada no fundo da garganta formada por duas montanhas, é um ponto de estrangulamento do progresso de toda aquela região, habitada por abnegados proprietários de sítios e fazendas, que sofrem para escoar suas produções e, principalmente, dificulta às crianças o acesso às escolas, obrigando-as a enfrentar longas caminhadas a pé, bicicletas ou a cavalos, sujeitando-se às intempéries.
Todo novo governo faz redobrar as esperanças; um vizinho, senhor de idade já avançada e que foi testemunha ocular de várias ocorrências graves naquele sitio, inclusive com mortes, continua esperançoso: o governador Siqueira agora vai fazer a nova ponte, ele não é de prosaria piquitita, como todos os outros, mas para quem fez o Estado do Tocantins no “peito e na coragem” esta ponte é “café pequeno”; vários outros peões que nos rodeavam apoiaram, esperançosos: - “Ôta! O velhinho enfrentou gente moça e graúda nesta eleição e meteu o pau neles todos e não vai ficar “pombeando” por ai”.
A grande novidade e que domina as conversas é a próxima chegada da luz elétrica para a região localizada do lado de cá do rio Piabanha, sinto até certa euforia nas discussões, quando os vizinhos tocam no assunto, cada um fazendo mais planos a respeito de como utilizá-la; nosso funcionário Ramirinho, auxiliado pelos filhos e pela esposa Da. Serena, decidiu pela compra de uma televisão, um ventilador e uma geladeira.
Todos os filhos possuem telefone celular e o pai um bom aparelho mp4 com mais de uma centena de músicas sertanejas e que carregam na energia quando vão ao lugarejo, os três filhos possuem bicicletas que, aliás, depois que o pai comprou uma moto, estão um pouco abandonadas; há cerca de um ano compraram um carro, ano de fabricação 1995, em prestações que se encaixam no ordenado do Ramirinho.
Na manhã seguinte ao da nossa chegada havíamos programado fazer a vacinação do gado, levantei-me bem cedo com o auxilio do despertador do sertão que cantava bem debaixo da nossa janela; peguei meu copo de leite com café e sentei-me à varanda na companhia do meu companheiro de viagem, meu filho Hélio Junior; de repente presenciamos uma cena inusitada, vários peões da redondeza que haviam sido adrede convidados a nos ajudar, foram chegando, quase que ao mesmo tempo, montados, não nos seus matungos, mas sim nas suas motos barulhentas, trajando vestimentas próprias de vaqueiros (chapéus, botas e calças rancheiras).
Os cavalos estão perdendo espaço como meio de transporte no sertão, ao invés da figura desgraciosa e mesmo estrangolada sobre a sela, oscilando o corpo ao sabor da marcha do animal que observa instintivamente onde pisa, vemos agora, independente da idade do condutor, uma figura esbelta e aprumada.
 Por outro lado, apesar do avanço do progresso, observo, até com certa surpresa, que os habitantes daqueles ermos, continuam cultivando as mesmas crendices que herdaram dos antepassados e, principalmente, as mesmas tradições folclóricas que aprenderam e que possivelmente, transmitirão aos filhos.
Devido às distâncias que os separa dos postos de atendimento da saúde, a medicina é a mais visada; ouvimos narrativas inacreditáveis de tratamentos alternativos para uma variada gama de intercorrências do cotidiano, levando-nos, muitas vezes, a duvidar que estas pessoas estejam vivendo na era da globalização.
Ramirinho conta-me a história da sua sogra que foi “ofendida” por uma cobra (era uma cascavoa!) e que foi curada, graças ao uso de um chá, feito com as folhas das árvores “batata de tiú”, além de banho no local da picada com “óleo de buriti”; naquele tempo, disse-me ele, uma viagem daqui até Taquarussú, em lombo de burro ou em “padiolas de lençol” durava mais de cinco dias; como ela estava sofrendo muito, decidimos usar os remédios que sempre deram certo. Ela ficou curada, apesar de ter ficado com uma paralisia na metade do corpo e a ferida do pé “azangou” tanto que ela acabou ficando cotó.
Não era motivo de riso, logicamente, porém, Ramirinho deu boas gargalhadas ao contar esta ocorrência, emendando, para explicar a razão deste seu comportamento:
- Pelo menos ela nunca mais correu atrás de mim quando eu bebia umas cachaças!



quarta-feira, 4 de maio de 2011

ASCENSÃO DO NAZISMO! O POVO ALEMÃO NÃO PERCEBEU?

É um fenômeno recorrente, a multidão é sempre arrastada, inconscientemente, ao encontro das idéias de grandes líderes ou mesmo, de correntes de idéias sociais da lavra de alguns deles; outro dia, lendo aqui no Diário da Manhã o texto “Reflexões sobre um tempo”, aliás, muito bem redigido, do Professor de História Marcantônio Dela Côrte, fiz uma interface com alguns trechos do livro que publiquei em 2001 ”Entre o Sonho e a realidade, do Brasil dos anos 60 à Rússia dos anos 90”.

Relato naquele meu livro, entre outras coisas, as peripécias que a juventude estudantil dos anos de 1960 enfrentou, nos sonhos do idealismo próprio dos jovens, muitas vezes sem entender, por completo, o fenômeno que nos arrastava, como um turbilhão, para as ideias socialistas; vejo similaridade entre alguns daqueles “meus” acontecimentos e os narrados pelo Prof. Marcantônio.

Hoje, vivendo na planície da minha existência e, modestamente, escudado no aprimoramento intelectual que hauri durante minha caminhada pela vida, acho que posso, modestamente, entender um pouco mais aquele fenômeno a que me referi.

Não faz muito tempo tive acesso a um livro, cuja leitura me permitiu sedimentar um pouco mais estas minhas ideias e passo aos meus leitores as conclusões a que cheguei; trata-se de “Adeus a Berlim” escrito pelo inglês Christopher Isherwood, em 1939.

Na verdade, o livro é uma coletânea de seis contos, cuja narrativa é continua pela interligação dos vários protagonistas de cada um deles, onde o autor narra na primeira pessoa, (dando o próprio nome ao “eu”) traça o perfil da cidade e dos habitantes de Berlim nos anos de 1930, onde seus personagens vivem os sintomas da inquietação política e social que agitava o país naquela época, culminando, como sabemos, com o nascimento do pesadelo nazista; só para curiosidade, um destes contos “Sally Bowles” serviu de base para o roteiro do famoso filme musical norte-americano ”Cabaret”, estrelado por Liza Minnelli.

O escritor Isherwood tinha vinte e seis anos de idade quando chegou à Berlim em 1930 com a intenção de aprender o alemão e, para se sustentar, dava aulas de inglês, tendo ali permanecido até 1934, quando viajou para Londres para fugir da repressão nazista; sua narrativa é um monumental documento social da época, principalmente, por ser estrangeiro captava as movimentações sem se envolver, como ele mesmo disse logo no inicio. “eu sou uma câmara fotográfica com o obturador aberto, bem passiva, que registra, não pensa”.

É interessante acompanhar o relato das histórias e ir notando a evolução das reações das pessoas, à medida que o tempo ia passando e a situação política ia-se modificando; no primeiro conto, escrito em 1930, vamos encontrá-lo se instalando em um apartamento familiar (Fraulein Schroeder, a proprietária), onde se hospedam outros quatro inquilinos (dois homens e duas mulheres); Isherwood parece se divertir ao descrever as atividades de cada um deles (um barman, uma garota de programa, um caixeiro viajante e uma cantora de cabaré que tem idéias nazistas).

Cada um destes personagens e mais alguns outros que foram sendo incorporados à narrativa, apresentam suas próprias idiossincrasias; segui-los pela linha do tempo é um exercício de incorporação de conhecimento social muito interessante; à medida que a ideologia nazista ia ganhando força dentro da sociedade alemã, não se percebe, em quase todos eles (exceção do narrador), qualquer sinal de preocupação com os rumos políticos do país; a luta era pela sobrevivência pessoal e, para tanto, iam se adaptando de acordo com a necessidade.

A personagem Frl. Schoroeder por exemplo, “foi rica e que ficou quase que na miséria após a superinflação desencadeada pela primeira guerra mundial, hoje, para se sustentar, dorme em um pequeno sofá na sala, para sobrar mais um quarto para alugar (...) agora é parte da classe pobre, como é a maioria da população alemã (...) ela aceita isto porque não tem escolha e, também, acredita que este estágio social é necessário para alcançar, segundo as promessas dos governantes, outro degrau social”

Estas ideias levavam a outra personagem (cantora de cabaré) a achar que os alemães eram superiores a outras raças, principalmente os Judeus, levando-a, inclusive, a aplaudir a famosa noite das “vidraças quebradas”, quando agitadores nazistas apedrejaram todas as lojas pertencentes a Judeus; por outro lado a “garota de programa” não se preocupava com o que Hitler fazia ou deixava de fazer, seu problema eram os homens e o dinheiro que possuíam.

Interessante que mesmo alguns Judeus ricos não percebiam esta transformação; o autor foi professor de uma moça (Hippi), filha da família Bersteins e ela contou-lhe que seu pai não deixava a esposa ir às compras utilizando o carro, porque corria o risco de apedrejarem –no, levando-o a ter prejuízo para consertá-lo (!!!); outra família Judia, proprietária de uma grande loja de departamentos, a “Landauer”, cuja filha (Natalie) tornou-se grande amiga de Isherwood e, por seu intermédio, ele se aproximou dos mesmos.

Antes de a fúria nazista ter levado-os à falência (com a presença de nazistas uniformizados nas portas da loja, impedindo que o povo entrasse para comprar, repetidos quebra-quebras de vitrines, além de inúmeros bilhetes oriundos dos nazistas, ameaçando-os de morte); parece que viviam em outro mundo, com evidente ostentação de riqueza.

Como curiosidade, é bom que se diga que a “Landauer” foi fundada em 1865 por Simon Landauer e, após a segunda guerra mundial, os seus descendentes (hoje na 4ª. geração) deram continuidade ao negócio e é possível encontrá-la em vários países da Europa e nos EE.UU., especialmente no estado de Nova York.

Um dia perguntei a um médico alemão, meu amigo: - por que o povo alemão não se indignava com as ocorrências cotidianas do regime nazista, principalmente a perseguição aos Judeus? Olhou-me nos olhos e disse: - A maioria não sabia disso!

“As pessoas podem duvidar do que você fala, mas acreditam no que você faz”

ESCREVER UM ROMANCE! PARECE SIMPLES, PORÉM...

O leitor, normalmente, não tem conhecimento das dificuldades que o escritor enfrenta quando resolve escrever uma obra ficcional (romance); alguns, segundo sei, costumam desenvolver todo o enredo da história na sua imaginação antes de passar para o papel; outros preferem fazer um diagrama, onde elaboram a participação dos principais personagens que serão utilizados, dentro do enredo que programaram.

O segundo passo é definir quem será o narrador, o próprio autor do livro ou um dos personagens? Poderá ser utilizada a estratégia que Machado de Assis usou em “Dom Casmurro” onde o personagem (Bentinho) é, também, o narrador da história? Como definir o herói ou a heroína principal, para dar-lhe maior relevo?

Outro dia, conversando com o acadêmico Dr. Eurico Barbosa, disse-me ele que tem o costume de escrever um texto, guardar na gaveta por algum tempo (adormecer) e só então, às vezes anos depois, voltar a enfrentar o desafio de continuar o que havia começado, agora sob a vigilância da autocensura mais aguçada e, também, possivelmente com maior experiência narrativa.

O escritor Inglês Colm Toibin afirma na sua resenha sobre “A importância dos tios nas novelas do século 19” que a figura da mãe está quase sempre ausente nas novelas escritas naquele período, estão “mortas” ou “desaparecidas”, são representadas apenas por memórias, ao invés de uma real presença, apesar da ênfase que a tradicional família inglesa daquela época, dava à posição da mãe no seio da família.



O escritor americano, depois naturalizado inglês no último ano de vida, Henry James, fez, em 1894, um rascunho do que seria o livro “As asas da Pomba”, publicado em 1902; o romance, em resumo, é a história de uma jovem que possuía uma doença incurável e que desejava viver pelo menos mais um pouco, quando conhece um jovem que já era namorado de outra jovem, cujo pai e “sua família” não aceitavam o casamento deles. A mente fértil de Henry James consegue, com artifícios da ficção, que as duas mulheres se conheçam e passem, as duas, a disputar o jovem.

O que chama atenção na trama é que em nenhum momento, como poderia acontecer, Henry James introduziu a figura da mãe de qualquer uma das duas personagens, como eu seria tentado a fazê-lo, para participar destas discussões e, provavelmente, tomar o partido da filha, principalmente da que estava doente.

Durante o tempo que Henry James maturou o enredo deste romance, mais ou menos seis anos, ele deve ter concentrado seus esforços narrativos para definir o que seria esta imagem “sua família” que, juntamente com o pai, não aceitava o casamento da filha, sem colocar na berlinda a figura na mãe.

Ainda segundo Colm Toibin, na maioria das grandes novelas de Henry James não existe a presença da mãe, quase sempre substituída pela figura de uma tia; o que poderá facilitar o entendimento deste seu procedimento (“matar” as mães e substituí-las por tias) é o fato de ele ser muito ligado à sua mãe e a uma sua tia de nome Kate, que vivia com eles; um dia ele resolve mudar-se para a Europa, provavelmente, para “fugir” da sua mãe, pois sentia estar muito dependente da mesma.

De longe ele continuava a devotar grande devoção filial e a morte dela foi um grande choque para ele; provavelmente esta sua relação tão próxima com ela tenha sido uma das razões dele “apagar” tantas mães nos seus melhores romances e substituí-las por tias, em alusão a sua tia Kate a que já nos referimos, consubstanciando um desvio de conduta a necessitar da ajuda da psicanálise.

A escritora inglesa Jane Austen também costuma colocar como heroína dos enredos dos seus romances uma personagem feminina órfã, possivelmente com o intuito de facilitar que a sua personalidade possa emergir com maior intensidade durante a narrativa.

No maravilhoso romance “Orgulho e Preconceito” verificamos, que apesar de haver a figura da mãe na trama, a autora colocou, também, duas tias, mostrando com isto, a sua genialidade, pois, ao invés de negar o poder e a influência da mãe sobre a personagem Elizabeth, como ela, Austen, provavelmente, desejava, neutraliza esta força colocando as duas tias, figuras cômicas e obtusas, para “contracenar” com ela.

É bom que se lembre que neste livro, Austen mostra, mais uma vez, seu estilo inconfundível; descreve seus personagens com ironia, caçoando das moças da sua geração (final do século 18) que investiam, como meta de vida, no casamento, tendo em vista que ela advogava uma educação liberal e independente para a mulher.

Em “Emma” e principalmente em “Orgulho e Preconceito” ela coloca na boca de algumas personagens esta sua posição: “Disse a Srta. Bingley, Eliza é uma dessas mocinhas que procuram chamar para si a atenção do outro sexo, menosprezando o seu próprio” ou “A imaginação das mulheres é muito veloz; salta da admiração para o amor, do amor para o matrimônio num piscar de olhos”.

É interessante, ao ler um livro, entender um pouco da personalidade do autor.

BISBILHOTANDO O DIÁRIO DE QUEM JÁ MORREU

Hoje em dia não é muito comum, porém, no final do século 19 e até a metade do século 20, era presente o costume de se possuir um “Diário”; quase todas as mocinhas, principalmente na época da adolescência, possuíam o seu amigo e confidente diário, onde anotavam, desde as peripécias escolares até “relatos daquele primeiro encontro”; ah! Quantos olhos amorteceram a poder de lágrimas, porém, que fora a vida, se nela não houvera lágrimas?

Poucas pessoas tinham acesso a este segredo,guardado debaixo do colchão, no fundo do velho guarda-roupa ou naquele baú que pertenceu aos antepassados e cuja chave era escondida em lugares inacessíveis ao irmão bisbilhoteiro.

A literatura, geralmente os livros encontrados em “sebos”, está repleta de “diários” de escritores e, quem se aventura como eu, a “garimpar” nas estantes empoeiradas e normalmente mal iluminadas, arriscando cair de escadas para alcançar as prateleiras mais altas, encontra algumas preciosidades que muitas vezes nos emocionam.

Tenho na minha biblioteca uma bela coleção destes exemplares; contemplo-os e “converso” com alguns deles, se a “lombada” me lembrar um título que me trouxe, tempos passados, a alegria de lê-lo, busco-o e, devagarzinho, às vezes mudando as páginas com carinho e cuidado para não rasgá-las, revivo, pelo menos em parte, as emoções de quem as escreveu.

Em uma oportunidade, o senhor Luiz Português, um grande amigo que me fora apresentado pelo Dr. Joffre Marcondes de Rezende e que era proprietário da hoje extinta livraria-sebo Ornabi, localizada à rua Benjamin Constant, nas imediações da Praça da Sé, a qual eu visitava sempre que tinha oportunidade de ir a São Paulo, telefonou-me, avisando, por saber do meu interesse por este tipo de livro, que ele conseguira dois livros muito interessantes e que iria guardá-los, para quando eu voltasse à sua livraria.

O primeiro deles é um exemplar de “As confissões de Jean-Jacques Rousseau – Tradução de Wilson Lousada para a Ed. José Olympio, 1948” e o outro é “A Corte de Luiz XIV, Memórias de um cortesão – Saint Simon, tradução de Miroel Silveira e Isa S. Leal para a Ed. José Olympio, 1944”

O livro de Rousseau é uma obra extraordinária, com quase 600 páginas de encantamento, são cinquenta anos da sua vida, contada no formato de um diário, que foi iniciado em 1764, quando ele contava 52 anos de idade, concluído em 1778 e publicado, pela primeira vez, em 1782, após sua morte.

Rousseau hoje está meio esquecido do meio literário, provavelmente, pelo hermetismo da sua obra, porém, ao ler estas “Confissões” somos surpreendidos pelo autodesnudamento do seu caráter, carregado de complexos, que o levou, inclusive, ao desequilíbrio psíquico no final da vida; transparece, também, o homem vaidoso que lhe adveio de um complexo de inferioridade que nunca o abandonou.

O outro livro, “A Corte de Luiz XIV – Memórias de um cortesão” trata-se, na verdade, de uma seleção de trechos mais interessantes dos Diários de Saint Simon que era constituído de 21 volumes, pois, seria impossível resumir obra tão avultosa em apenas um livro com pouco mais de 450 páginas.

Somos transportados, pelo ritmo sonoro da pena do escritor francês, para o interior da Corte Francesa do final do século 17, com descrição das roupas, de personagens, tanto dos pertencentes à realeza como dos cortesãos e, principalmente, dos hábitos de vida daquela época, não deixando, inclusive, de incluir nestas reminiscências, algumas indiscrições e, principalmente, relatos de prevaricações de figuras poderosas.

Saint Simon foi um observador privilegiado das movimentações da Corte, pois a frequentava com assiduidade, participava, inclusive, de reuniões no interior do aposento do Rei, na companhia de vários elementos da realeza, onde se ouviam músicas, jogavam-se bilhares,acompanhadas de refrescos, segundo seus relatos; suas descrições são fidedignas e, também, mordazes.

Saint Simon influenciou, segundo consta, com o seu estilo e maestria da escrita grandes escritores; os últimos parágrafos do seu “Diário” explicam este fascínio que exerceu sobre Tolstoi, Flaubert e Proust, dentre outros:

“Deverei finalmente falar do estilo, de sua negligência, das repetições próximas demais das mesmas palavras, às vezes dos sinônimos multiplicados, sobretudo da obscuridade que nasce com frequência da extensão das frases, talvez de algumas repetições, etc.”