MINHAS CRÔNICAS

segunda-feira, 11 de março de 2013

O MENINO E A OBRIGAÇÃO






                            O menino acordou com a movimentação de pessoas na cozinha, pelas gretas da janela observou que ainda estava escuro lá fora; ao espichar as pernas percebeu, como era de esperar, que o irmão mais novo ainda continuava dormindo no lado da cama que está encostado na parede; levantou-se como era o costume e observou que nas outras duas camas os outros irmãos continuavam imóveis debaixo dos cobertores.
                               Após pegar o sabonete, a escova de dente, a toalha, um espelhinho redondo e um pente que estavam colocados em uma cadeira na beira da cama, com andar titubeante caminhou alguns passos dentro do quarto e, como um autômato que vagava no escuro, conseguiu desviar, instintivamente, de alguns objetos que faziam parte da mobília (a segunda cadeira, um banco desmontável e uma canastra para as roupas), encaminhou-se para a porta e se dirigiu para o ribeirão que se localizava a cerca de 50 metros de distância.
                               Parece que naquele dia a temperatura estava mais fria do que o costume, seus pés descalçados, no contato com a grama molhada do sereno, provocou-lhe uma sensação desagradável de desconforto que aumentava à medida que caminhava, só melhorando ao chegar à beira do córrego quando pisou no solo arenoso que o circundava.
                               Colocou os apetrechos que trouxera sobre um pequeno “jirau” e, ao mergulhar a ponta dos dedos na água corrente e cristalina, parecia que estava tendo contato com uma camada de gelo, inicialmente passou a palma da mão molhada pelo rosto, depois, criou coragem e encheu as duas mãos, como se fosse uma concha e encharcou todo o rosto; reagiu com um grito, como se estivesse assustando ou espantando o frio, em seguida escovou os dentes, utilizando como dentifrício o próprio sabonete, voltou a molhar o rosto e o ensaboou, molhou os cabelos e se enxugou com a toalha que trouxera, mirou-se no espelho e passou o pente nos cabelos.
                               Em seguida, de acordo com ritual que se repetia todos os dias, o menino observou, por trás das árvores que povoavam seu mundo, que o sol, parece que também despertando da longa noite de descanso, começava a derramar os seus primeiros raios luminosos sobre a pequena serra, tão sua conhecida e que lhe pertencia, principalmente os passarinhos que a habitavam.
                               Ainda perdido nas elucubrações fantasiosas de todos os meninos, quis fazer a programação que desenvolveria naquele dia, pois descobrira onde havia um ninho de periquitos e gostaria de rever os filhotes, quando o grito da Margarida, já postada na soleira da porta da sala, ecoou com ressonância e sem que ela tomasse fôlego:
                               - Meniiino, sua mãe pediu-lhe que apressasse, pois está quase na hora do trem chegar à estação e o café e o leite com chocolate já estão no bule, prontos para serem levados; estou indo na frente, junto com o Tutu, carregando as quitandas, não enrole!
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                                Muitos anos depois, ao ler o romance de Charles Dickens “Oliver Twist”, o que restou do menino no presente, encontrou em umas das passagens do livro, alguma semelhança com a cena que ele acabou de descrever:
                           “Oliver Twist foi encaminhado para o quarto que lhe cabia ocupar na casa da pessoa que o comprara de um orfanato. O quarto era muito escuro, Oliver colocou a lanterna em cima de um banco, procurou enxergar o ambiente, porém, pouco viu; timidamente procurou localizar a cama, onde se deitou e dormiu (...)”.
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                                 Provavelmente Freud teria condições de esclarecer ao menino de antigamente qual a razão destas duas imagens, tão díspares (O menino que chegava e o que saia), conseguirem evocar relembranças que já estavam arquivadas no subconsciente.
                               Se meu amigo Edson Velano ainda estivesse por aqui repetiria para ele, a propósito desta volta ao passado, aquela sentença que coloquei no meu livro de saudades  e que ele gostava:
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                Não se arrisque a voltar ao passado se não estiver bem seguro dos riscos que neste caminho irá enfrentar.
                Volte consciente de que a marcha do tempo é irrecorrível, aquela imagem guardada na nossa retina pode ter sofrido deformação e não conseguirá focá-la de acordo com a nossa expectativa.
                Aquela paisagem que habitava nossa infância e que por algum motivo conseguimos reter nas nossas reminiscências, não terá o mesmo significado para os circunstantes e provavelmente nossa mente foi sobrecarregada de outras emoções durante a existência e desfigurou o colorido que idealizamos durante todo este tempo.
                Volte devagar, pé ante pé, pise o chão com cautela, não procure encontrar antigas  “margaridas” e  “onze-horas”; elas murcharam e não foram replantadas.
                Os relevos geográficos que povoavam sua infância foram, alguns modificados, outros que permaneceram não assumem, nos dias atuais, a importância que você costumava dar-lhes.
                Olhe em redor, aquele detalhe que você julgava importante não desperta nenhuma emoção aos atuais viventes do seu antigo mundo.
                Não tente transmitir emoções que são somente suas, ninguém irá entendê-las e senti-las.
Se você tiver vontade de chorar, não se acanhe, faça-o, porém faça-o bem baixinho e com discrição; não deixe que as lágrimas turvem sua visão a ponto de não poder enxergar que as nuvens que você costumava observar, deitado de costas na grama, continuam mudando constantemente de configuração”. (Entre o Sonho e a realidade, H.Moreira, 2001)
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O trem da Rede Mineira de Viação chegou na hora, o menino, a Margarida e o amigo Tutu venderam todos os quitutes que trouxeram; mais um dia que ficou no passado!