O MENINO E A OBRIGAÇÃO
O menino acordou com a movimentação de pessoas na cozinha, pelas gretas
da janela observou que ainda estava escuro lá fora; ao espichar as pernas percebeu,
como era de esperar, que o irmão mais novo ainda continuava dormindo no lado da
cama que está encostado na parede; levantou-se como era o costume e observou
que nas outras duas camas os outros irmãos continuavam imóveis debaixo dos
cobertores.
Após
pegar o sabonete, a escova de dente, a toalha, um espelhinho redondo e um pente
que estavam colocados em uma cadeira na beira da cama, com andar titubeante caminhou
alguns passos dentro do quarto e, como um autômato que vagava no escuro,
conseguiu desviar, instintivamente, de alguns objetos que faziam parte da
mobília (a segunda cadeira, um banco desmontável e uma canastra para as roupas),
encaminhou-se para a porta e se dirigiu para o ribeirão que se localizava a cerca
de 50 metros de distância.
Parece
que naquele dia a temperatura estava mais fria do que o costume, seus pés
descalçados, no contato com a grama molhada do sereno, provocou-lhe uma
sensação desagradável de desconforto que aumentava à medida que caminhava, só
melhorando ao chegar à beira do córrego quando pisou no solo arenoso que o circundava.
Colocou
os apetrechos que trouxera sobre um pequeno “jirau” e, ao mergulhar a ponta dos
dedos na água corrente e cristalina, parecia que estava tendo contato com uma
camada de gelo, inicialmente passou a palma da mão molhada pelo rosto, depois,
criou coragem e encheu as duas mãos, como se fosse uma concha e encharcou todo
o rosto; reagiu com um grito, como se estivesse assustando ou espantando o
frio, em seguida escovou os dentes, utilizando como dentifrício o próprio
sabonete, voltou a molhar o rosto e o ensaboou, molhou os cabelos e se enxugou
com a toalha que trouxera, mirou-se no espelho e passou o pente nos cabelos.
Em
seguida, de acordo com ritual que se repetia todos os dias, o menino observou,
por trás das árvores que povoavam seu mundo, que o sol, parece que também
despertando da longa noite de descanso, começava a derramar os seus primeiros
raios luminosos sobre a pequena serra, tão sua conhecida e que lhe pertencia,
principalmente os passarinhos que a habitavam.
Ainda
perdido nas elucubrações fantasiosas de todos os meninos, quis fazer a
programação que desenvolveria naquele dia, pois descobrira onde havia um ninho
de periquitos e gostaria de rever os filhotes, quando o grito da Margarida, já
postada na soleira da porta da sala, ecoou com ressonância e sem que ela tomasse
fôlego:
-
Meniiino, sua mãe pediu-lhe que apressasse, pois está quase na hora do trem
chegar à estação e o café e o leite com chocolate já estão no bule, prontos
para serem levados; estou indo na frente, junto com o Tutu, carregando as
quitandas, não enrole!
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Muitos
anos depois, ao ler o romance de Charles Dickens “Oliver Twist”, o que restou
do menino no presente, encontrou em umas das passagens do livro, alguma
semelhança com a cena que ele acabou de descrever:
“Oliver Twist foi
encaminhado para o quarto que lhe cabia ocupar na casa da pessoa que o comprara
de um orfanato. O quarto era muito escuro, Oliver colocou a lanterna em cima de
um banco, procurou enxergar o ambiente, porém, pouco viu; timidamente procurou
localizar a cama, onde se deitou e dormiu (...)”.
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Provavelmente Freud teria condições de
esclarecer ao menino de antigamente qual a razão destas duas imagens, tão
díspares (O menino que chegava e o que saia), conseguirem evocar relembranças
que já estavam arquivadas no subconsciente.
Se
meu amigo Edson Velano ainda estivesse por aqui repetiria para ele, a propósito
desta volta ao passado, aquela sentença que coloquei no meu livro de saudades e que ele gostava:
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“Não se arrisque a voltar ao passado se não
estiver bem seguro dos riscos que neste caminho irá enfrentar.
Volte consciente de que a marcha
do tempo é irrecorrível, aquela imagem guardada na nossa retina pode ter
sofrido deformação e não conseguirá focá-la de acordo com a nossa expectativa.
Aquela paisagem que habitava
nossa infância e que por algum motivo conseguimos reter nas nossas
reminiscências, não terá o mesmo significado para os circunstantes e
provavelmente nossa mente foi sobrecarregada de outras emoções durante a
existência e desfigurou o colorido que idealizamos durante todo este tempo.
Volte devagar, pé ante pé, pise
o chão com cautela, não procure encontrar antigas “margaridas” e “onze-horas”; elas murcharam e não foram
replantadas.
Os relevos geográficos que
povoavam sua infância foram, alguns modificados, outros que permaneceram não
assumem, nos dias atuais, a importância que você costumava dar-lhes.
Olhe em redor, aquele detalhe
que você julgava importante não desperta nenhuma emoção aos atuais viventes do
seu antigo mundo.
Não tente transmitir emoções que
são somente suas, ninguém irá entendê-las e senti-las.
Se
você tiver vontade de chorar, não se acanhe, faça-o, porém faça-o bem baixinho
e com discrição; não deixe que as lágrimas turvem sua visão a ponto de não
poder enxergar que as nuvens que você costumava observar, deitado de costas na
grama, continuam mudando constantemente de configuração”. (Entre o Sonho e a realidade, H.Moreira,
2001)
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O trem da Rede
Mineira de Viação chegou na hora, o menino, a Margarida e o amigo Tutu venderam
todos os quitutes que trouxeram; mais um dia que ficou no passado!